O jornalista e escritor Dave Cullen: 'Como
os alunos terão confiança em um professor que a qualquer momento pode
apontar uma arma para a cabeça deles e ameaçar dar um tiro?' (Claudio
Gatti/.)
Jornalista americano que é o maior especialista em massacres juvenis fala do horror em Columbine, desmonta lugares-comuns e diz como evitar essas tragédias
Na manhã de 20 de abril de 1999, quando os jovens Eric Harris e
Dylan Klebold deram o tiro que deu início ao mais famoso massacre dos
Estados Unidos, o jornalista e escritor Dave Cullen almoçava perto da
escola Columbine High School. Ao saber do tiroteio, correu para lá. A
partir daí, dedicaria a vida ao massacre: foi o primeiro jornalista a
entrar na escola, virou confidente dos sobreviventes e conversou com
centenas de testemunhas para montar o quebra-cabeça da tragédia. Em
2009, lançou o relato mais completo do episódio: Columbine
(Editora DarkSide) — que chega ao Brasil em versão atualizada, com os
diários dos assassinos. Cullen, de 58 anos, foi afetado pelo objeto de
estudo: o massacre o levou à depressão. Na entrevista concedida durante
passagem por São Paulo, chorou ao exibir as pulseiras que ganhou de
sobreviventes. Ele fala sobre as causas e lições de Columbine e
atentados similares — até mesmo do massacre ocorrido em Suzano, em março
deste ano.
Vinte anos após Columbine, o massacre ainda é a mais famosa
tragédia do gênero e inspira novos atiradores em vários países. O que
explica isso? A crueldade, o planejamento, a tática utilizada
pelos dois adolescentes assassinos, Eric Harris e Dylan Klebold, foram
inéditos. Mesmo após outras dezenas de tiroteios, não houve nenhum tão
espetacular. O episódio já não está entre os dez mais letais dos Estados
Unidos. Mas Columbine é visto como um exemplo a ser seguido e superado.
Podemos dizer que foi a mãe de todos os massacres.
Por que os tiroteios em escolas se tornaram tão frequentes?
As pessoas me perguntam o motivo dos tiroteios e quando isso vai
acabar. A verdade é que estamos vivendo um momento em que elas mesmas se
interessam por isso. A TV é inundada de programas sobre crimes reais e
tiroteios semelhantes. As pessoas estão usando traumas reais como
entretenimento. É um novo tipo de banalização da maldade, e isso é muito
perigoso.
O senhor costuma questionar a imprensa e até fez um mea-culpa
por ter ajudado a colocar os assassinos sob os holofotes. Mas noticiar
os fatos não é dever do jornalismo? Ajudar a propagar sua fama
foi, infelizmente, um erro da imprensa. Isso começou lá atrás, mas
depois vieram os muitos filhotes de Columbine. São jovens que planejam e
executam massacres com o intuito de imitar Eric e Dylan. Foi o que
ocorreu no Brasil neste ano, em Suzano. O rosto dos jovens matadores foi
reproduzido no noticiário em diversas línguas. É essa exposição que
eles almejam. Devemos omitir no noticiário o nome e as imagens de quem
comete esse tipo de atentado. Em vez disso, é melhor chamá-los pelo que
eles são: assassinos, atiradores, criminosos.
Como um dos primeiros a chegar à cena do massacre de Columbine, quando notou a magnitude do ocorrido?
Levou dias para cair a ficha. Ninguém estava preparado para aquela
barbárie. A crueldade dos atiradores era chocante: eles atiravam em
qualquer um para matar. Os corpos ainda estavam dentro da escola, e a
lista de mortos não tinha saído. As pessoas choravam e diziam não saber
por quem chorar, pois não sabiam quem estava vivo ou morto. O carro de
uma das vítimas virou um ponto de homenagem e orações. Era o único
veículo que estava fora da barreira policial, e os alunos não tinham um
corpo para velar. O automóvel, soubemos depois, era de uma garota que
foi a primeira vítima dos atiradores.
“Nós pintamos a imagem da escola monstruosa que teria
levado esses jovens com problemas a matar treze pessoas. Mas os
assassinos de Columbine fizeram o que fizeram
por vontade própria”
Há uma tendência a apontar primeiro os pais como culpados pelos atiradores juvenis. É justo?
Os pais não são os culpados. Eles não puxam o gatilho. As pessoas
precisam culpar alguém. Elas necessitam de um vilão, e muitas vezes os
familiares dos atiradores são colocados nesses papéis. Na maioria dos
casos, contudo, não há sinais de que os pais tenham feito algo errado na
educação dos filhos. Tom e Sue Klebold, pais de Dylan, eram ótimos e
muito presentes.
Não caberia aos pais farejar sinais de desvio? Um
pai e uma mãe nunca vão achar que o filho deles é um psicopata.
Psicopatas manipulam as pessoas, os amigos, a família. Podemos ver tudo
na nossa frente, menos um psicopata. Os pais, geralmente, não sabem o
que é um psicopata de verdade, não sabem quais são os sinais. E, para
falar a verdade, não há um sinal de que o filho se tornará um assassino.
Você passa o dia com ele, cuida dele, ensina-o a ser uma boa pessoa. E,
quando vê, ele está na televisão atirando nos colegas de classe com
armas e munições que possivelmente estavam escondidas dentro da sua
casa. Gosto de usar Dylan como exemplo. Ele às vezes chegava em casa
deprimido, sem vontade de fazer as coisas. Mas isso acontece na vida de
mais da metade dos alunos de um colégio. São sinais inequívocos de que o
jovem vai matar treze pessoas e cometer suicídio em seguida?
No Brasil, os atiradores de Suzano usaram a deep web para planejar o massacre. A internet tem sua parcela de culpa nesse tipo de crime?
Sim. No Canadá, potenciais atiradores se conheceram pela internet com o
objetivo de perpetrar um ataque. Era um trio que incluía gente de
cidades diferentes. Todos os três foram presos antes que pudessem pôr o
projeto em ação. Não acho, naturalmente, que a internet seja capaz de
produzir assassinos. No refúgio da deep web, no entanto, ficou
mais fácil montar grupos de pessoas que comungam da ideia de que cometer
atentados em massa é uma coisa legal.
A tragédia de Columbine desencadeou um debate sobre o porte
de armas nos Estados Unidos, mas quase nada mudou. O senhor está entre
os que acreditam que dificultar a compra de armas evitaria os massacres?
Na verdade, retrocedemos nesse ponto. Nem todo mundo deveria ter
direito de portar armas de fogo. Hoje, qualquer um com mais de 21 anos
pode comprar uma arma sem apresentar atestado médico ou de antecedentes
criminais. As pessoas que em teoria não têm condições de comprar armas
deveriam estar em uma lista on-line de incapazes. Se os atiradores usam a
internet a favor deles, por que nós não a estamos usando ainda a favor
da vida? Os Estados Unidos são o único país em que ocorrem massacres
quase todos os anos, e nada acontece. A Austrália tinha leis de armas
liberais até o tiroteio em Port Arthur. Desde então, decidiu controlar
todo o processo de venda de armas de fogo. Tudo o que os governantes são
capazes de produzir são ideias que podem piorar as coisas, como armar
os professores.
Depois do massacre de Suzano, a ideia também foi defendida
por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Não é uma medida razoável?
O presidente brasileiro adora imitar as coisas que Trump faz. A ideia
de armar os professores é a proposta mais idiota que já ouvi sobre o
assunto. Estaríamos apenas adicionando mais potencial de violência à
rotina de adolescentes. Eles não precisam de mais gatilhos, e sim de
aconselhamento, de supervisão. O trabalho de um professor é educar para o
futuro — e isso funciona à base de confiança. Como os alunos terão
confiança em um professor que a qualquer momento pode apontar uma arma
para a cabeça deles e ameaçar dar um tiro?
Costuma-se citar o bullying como um dos motivos dos massacres. Ele é mesmo o grande vilão?
Creio que não. Falou-se muito que o ambiente da escola de Columbine era
tóxico e que havia bullying. Mas era um ambiente normal de ensino
médio. Vi vários sites culpando os sobreviventes, porque aqueles dois
pobres adolescentes supostamente sofriam muito com o bullying. É
mentira. Eric e Dylan mais cometiam do que eram vítimas de bullying.
Eles queriam matar da maneira mais cruel a maior quantidade de alunos
possível para entrar para a história e ser reconhecidos. Eles escolheram
fazer aquilo.
A escola, então, não era um ambiente propício à violência?
Quem escreve num diário que quer estuprar pessoas e arrancar a cabeça
de uma menina é um coitado? Pois foi isso que Eric escreveu antes de
matar treze pessoas em Columbine. Ele era um psicopata que queria fazer
coisas ruins aos outros. Nós pintamos a imagem da escola monstruosa que
teria levado esses jovens com problemas a matar treze pessoas. Mas eles
fizeram o que fizeram por vontade própria.
“O presidente brasileiro adora imitar Trump. A ideia de
armar os professores é a proposta mais idiota que já ouvi sobre o
assunto. Só adicionaria violência à rotina dos jovens”
É possível traçar um perfil preciso de um atirador de massa?
Normalmente, esses jovens são pessoas cabisbaixas, tristes, que não são
aceitas nos grupos principais do colégio e não se sentem amadas por
ninguém. Chega um momento em que eles se cansam de andar nas sombras.
Eles precisam se mostrar e ser vistos. Muitos sofrem de depressão e
exibem tendências suicidas. “Por que me matar se eu posso matar a todos
que não me amam e me maltratam de alguma forma? E o mundo saberá quem eu
sou”, eles pensam. Um erro que muitas pessoas cometem é chamar todos de
psicopatas. Nem todo atirador é psicopata, nem todo atirador sofreu
bullying na escola. Eu os divido em dois grupos: os criativos e os que
ambicionam provocar o maior número de baixas. Eric, infelizmente, era as
duas coisas em um só. Criativo na hora de planejar o atentado com
crueldade e focado na meta de elevar a contagem de mortos.
De que forma o senhor foi afetado emocionalmente ao passar uma década imerso no massacre de Columbine?
Sempre que há novos massacres, tento me desligar. Busco não ouvir nem
ver nada sobre aquilo, porque se transformou em algo muito difícil para
mim. E o problema maior é que isso se transformou também no meu
trabalho, porque acabei me tornando um especialista em tiroteios em
massa. Mas convivo com a depressão. Tive duas recaídas durante a
elaboração do livro — no capítulo do funeral de Dylan e ao descrever a
morte lenta do treinador da escola, que agonizou por três duras horas.
Tomo remédios controlados e vou a um psicólogo pelo menos duas vezes por
semana. Na época, um agente do FBI foi designado para me proteger em
razão das ameaças que eu recebia de jovens que idolatravam os
atiradores. Vivi na escuridão nesses vinte anos. É uma escuridão
profunda, na qual não se consegue discernir um fiapo de luz.
Como o senhor superou o baque? Só consegui de fato
me libertar recentemente, com a ajuda de sobreviventes do atentado. Eles
me mostraram que há esperança. É possível reerguer-se após a tragédia.
Se eles, que estavam lá, se reergueram, por que não eu? Estou me curando
aos poucos. Sinto alegria ao saber que aqueles jovens também estão
conseguindo superar a dor. Essas crianças são extraordinárias, assim
como a garotada de Suzano.
---------------------
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655
Fonte: https://veja.abril.com.br/mundo/dave-cullen-armar-professores-e-a-proposta-mais-idiota-que-ouvi/
Nenhum comentário:
Postar um comentário