Paulo Roberto Pires*
Simone Weil em foto de 1936, na Guerra Civil da Espanha Apic/Getty
Images
Morta em 1943, a filósofa francesa que se lançou
com destemor nos conflitos de seu tempo ressurge em livro de Patti Smith, em
novas edições e até em podcast
Em junho de 2016, Patti Smith estava em Paris para uma maratona de
lançamento de Linha M, seu segundo livro de memórias. Numa folga, foi
parar em Ashford, no condado de Kent, na Inglaterra. Perambulando pelo
cemitério Bybrook, diz ter contado com a intuição e, acredita, a ajuda de Todd,
seu irmão já morto, para localizar a lápide de pedra simples, rente ao chão,
com o nome que buscava acima de duas datas, grafadas em francês:
Simone Weil
3 février 1909 - 24 août 1943
3 février 1909 - 24 août 1943
A peripécia está contada em Devoção, livrinho que a Companhia das
Letras lança neste mês, reunindo um conto e dois relatos sobre processo
criativo. Eugenia, a protagonista da história, é diretamente inspirada em
Simone Weil — em sua aparência física, ideias e biografia sobressaltada. Vira e
mexe, a enigmática mistura de militância socialista, pacifismo e misticismo
cristão de Weil transborda dos círculos acadêmicos para se mostrar em sintonia
com momentos de dúvida e crise generalizadas.
Não foi por outro motivo, aliás, que a rádio France Culture dedicou a
ela quatro capítulos da série Les Chemins de la Philosophie. Disponível
em podcast, “Simone Weil, filósofa em todos os fronts” foi ao ar em dezembro,
tendo como pano de fundo a França convulsa pelos coletes amarelos, a
truculência do Estado, a consolidação da extrema direita — a confusão
ideológica, enfim. Adèle Van Reeth, editora e apresentadora do programa, não
hesitou em entremear entrevistas de vetustos acadêmicos com trechos de “London
Calling” e “Working Class Hero”, numa insuspeita e harmoniosa reunião da
filósofa com The Clash e John Lennon.
Marciana
Não, Simone Weil não é pop, mas são muitos e muito variados os caminhos
que levam a ela. O que os aproxima, sem unificá-los, é a importância atemporal
de um pensamento de insurreição, da defesa apaixonada dos menos favorecidos e
do combate a todos os níveis de desumanização. Weil é intrigante a partir de
sua curta biografia: a menina prodígio, filha de judeus não religiosos e imersa
em leituras e jogos intelectuais com o irmão mais velho — André Weil, que se
tornaria um célebre matemático —, começa a estudar filosofia aos quinze anos.
Para ela, a formação clássica é um caminho bifurcado entre a atração
irresistível pela política e as tortuosas questões da fé. O filósofo Alain, que
a tinha como uma de suas melhores alunas, a apelidara “a Marciana”.
“A fome devastara a China e tinham contado que, ao saber dessa desgraça,
ela chorara: essas lágrimas, mais do que seus dons filosóficos, forçaram meu
respeito. Eu invejava um coração capaz de bater através do universo inteiro”,
escreveu Simone de Beauvoir ao evocar, em Memórias de uma moça
bem-comportada, a “inteligência de grande reputação” e “o modo estranho de
se vestir” de sua xará, colega na Sorbonne quando as duas não tinham nem vinte
anos. Ao tentar uma conversa, ouviu que o único tema relevante seria “a
Revolução que daria de comer a todos”. Discordou e levou um fora: “Ela mediu-me
dos pés à cabeça e disse: ‘Bem se vê que nunca teve fome’. Nossas relações não
foram além. Compreendi que me catalogara: ‘Uma pequeno-burguesa
espiritualista’”.
Abandonou o ensino da filosofia para empregar-se como
operária e sentir
na própria pele as condições
da classe trabalhadora
A reprovação partia de alguém que sempre negou o que a vida lhe dera
pronto, dos valores dominantes à própria condição social. Não via sentido em
apartar as ideias da experiência e tampouco de sustentar uma militância
distante dos desvalidos. Única mulher formada em sua turma da École Normale
Supérieure, abandonou o ensino da filosofia para empregar-se como operária e
sentir na própria pele as condições da classe trabalhadora, que então discutia
com sindicalistas e intelectuais. Em 1933, aos 24 anos, chegou a debater
algumas dessas questões com o próprio Trótski, hóspede de seus pais. Exasperado,
ele sugeriu: “Por que você não entra para o Exército de Salvação?”.
A saúde frágil que logo interromperia a vida na fábrica não impediu que,
em 1936, desembarcasse em Barcelona para lutar ao lado dos republicanos na
Guerra Civil da Espanha. Revia assim, pela justiça da causa, suas mais
arraigadas convicções pacifistas. Derrotada por uma prosaica queimadura de
azeite, afastou-se do front, mas não do combate arraigado, nas páginas de
jornais e revistas, contra a ascensão do totalitarismo. Via com a mesma repulsa
Hitler e Stálin, ainda que não reduzisse os valores e princípios do socialismo
à barbárie soviética.
Em 1940, os Weil começam um périplo pela França, para sobreviver da
melhor forma possível à ocupação nazista. Weil estuda sânscrito e grego e
publica “Ilíada ou o poema da força”. Nesse ensaio, central para sua visão de
mundo, afirma que o uso da força é o que permite ler criticamente a sociedade.
Quando um indivíduo aponta uma arma para outro, argumenta, ambos perdem o que é
neles essencial, pois o recurso à força é sinônimo da desumanização. A lógica
da força, bem clara numa guerra, também preside de outra forma a fábrica ou o
Estado; na melhor das hipóteses, é o fundamento da lei e da ordem.
Resistência
Em 1942 a família se transfere para Nova York, mas a segurança do exílio
seria para Weil pura angústia diante da situação cada vez mais difícil da
Europa. No fim do ano, sozinha, cruza o Atlântico de volta, atendendo ao London
calling. E, da Inglaterra, se engaja no France Libre, o movimento
internacional de resistência. Escreve um de seus livros mais impressionantes, O
enraizamento, e insiste em voltar para o front. Cada vez mais debilitada,
sucumbe à tuberculose em 1943, aos 34 anos, num sanatório de Ashford.
Cada linha que escreveu é, de alguma forma, uma defesa da singularidade,
do que é irredutível em cada um e da necessidade de conciliar essas diferenças
sem esmagá-las. A fábrica dramatiza didaticamente essa tensão, à medida que
opõe a cadência das máquinas, que estabelece a velocidade da produção, ao ritmo
dos operários, ao tempo que lhes é próprio, que nos é próprio. A luta por uma
vida mais justa é, para ela, uma luta complexa que começa pelos movimentos
sociais e jamais deve excluir a utopia de uma convivência possível entre os
ritmos sempre variados da existência com a cadência homogeneizadora.
“Ela não tinha preconceito contra nada, só contra a crueldade e a
baixeza, o que dá no mesmo. Ela não desprezava nada a não ser o próprio
desprezo. E ao lê-la nos dizemos que a frivolidade foi a única coisa de que sua
surpreendente inteligência foi incapaz”, escreveu Albert Camus em 1949, quando
começou a publicar Weil na Espoir, coleção que então dirigia na Gallimard.
Ainda hoje, 76 anos depois de sua morte, a editora francesa segue publicando a
“obra completa” da escritora, que deverá preencher dezesseis volumes. Colóquios
internacionais discutem sua herança, revalorizada à esquerda com a qual ela se
identificava criticamente e também apropriada pela direita.
Esse legado póstumo não exclui, é claro, boa dose de mistificação. Em
1979, Roberto Calasso registra que, àquela altura, a simples menção do nome de
Simone Weil suscitava “rostos contritos” em respeito a uma “santa de nosso
tempo”. Em diapasão bem diferente e duas décadas antes, Georges Bataille fez
dela personagem de O azul do céu, novela estranhíssima, ambientada na
Guerra Civil da Espanha. No livro, escrito em 1935 e só publicado em 1957, o
dissoluto e frívolo narrador assim a descreve, rebatizada como Lazare: “Ela
causava mal-estar: falava lentamente com a serenidade de um espírito estranho a
tudo; a doença, o cansaço, a privação ou a morte não significavam nada aos seus
olhos. O que supunha por antecipação, nos outros, era a mais calma indiferença.
Exercia um fascínio, tanto por sua lucidez como por seu pensamento de
alucinada”.
Quando um indivíduo aponta uma arma para outro ambos perdem o que é
neles essencial, pois o recurso à força
é sinônimo da desumanização
No emaranhado de aproximações de personagem e obra tão complexas, fico
com a Susan Sontag mais certeira, a dos anos 1960, que numa resenha para a New
York Review of Books filia Simone Weil a um heterogêneo grupo de escritores
que impressionam “pelo senso de agudo rigor pessoal e intelectual” e cuja vida
exemplar não convida à imitação, mas a um olhar distante “com uma mistura de
repulsão, piedade e reverência”.
Para ela, os gestos políticos de Weil são “nobres e ridículos” e não há
o que invejar em sua aparência ou no “elaborado espírito de sacrifício”. Sua
presença é, no entanto, o lembrete de uma seriedade austera que nos faz ler o
mundo sem complacência, reafirmando que “não é possível ter fé em ideias
expressas em tons impessoais de sanidade”.
“Há eras que são demasiado complexas”, escreve Sontag, “demasiado
aturdidas por experiências históricas e intelectuais contraditórias para
ouvirmos a voz da sanidade.”
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