sexta-feira, 4 de outubro de 2019

As utopias de Simone Weil


Paulo Roberto Pires*
 
 Simone Weil em foto de 1936, na Guerra Civil da Espanha Apic/Getty Images

Morta em 1943, a filósofa francesa que se lançou com destemor nos conflitos de seu tempo ressurge em livro de Patti Smith, em novas edições e até em podcast

Em junho de 2016, Patti Smith estava em Paris para uma maratona de lançamento de Linha M, seu segundo livro de memórias. Numa folga, foi parar em Ashford, no condado de Kent, na Inglaterra. Perambulando pelo cemitério Bybrook, diz ter contado com a intuição e, acredita, a ajuda de Todd, seu irmão já morto, para localizar a lápide de pedra simples, rente ao chão, com o nome que buscava acima de duas datas, grafadas em francês:

Simone Weil
3 février 1909 - 24 août 1943

A peripécia está contada em Devoção, livrinho que a Companhia das Letras lança neste mês, reunindo um conto e dois relatos sobre processo criativo. Eugenia, a protagonista da história, é diretamente inspirada em Simone Weil — em sua aparência física, ideias e biografia sobressaltada. Vira e mexe, a enigmática mistura de militância socialista, pacifismo e misticismo cristão de Weil transborda dos círculos acadêmicos para se mostrar em sintonia com momentos de dúvida e crise generalizadas.

Não foi por outro motivo, aliás, que a rádio France Culture dedicou a ela quatro capítulos da série Les Chemins de la Philosophie. Disponível em podcast, “Simone Weil, filósofa em todos os fronts” foi ao ar em dezembro, tendo como pano de fundo a França convulsa pelos coletes amarelos, a truculência do Estado, a consolidação da extrema direita — a confusão ideológica, enfim. Adèle Van Reeth, editora e apresentadora do programa, não hesitou em entremear entrevistas de vetustos acadêmicos com trechos de “London Calling” e “Working Class Hero”, numa insuspeita e harmoniosa reunião da filósofa com The Clash e John Lennon. 

Marciana

Não, Simone Weil não é pop, mas são muitos e muito variados os caminhos que levam a ela. O que os aproxima, sem unificá-los, é a importância atemporal de um pensamento de insurreição, da defesa apaixonada dos menos favorecidos e do combate a todos os níveis de desumanização. Weil é intrigante a partir de sua curta biografia: a menina prodígio, filha de judeus não religiosos e imersa em leituras e jogos intelectuais com o irmão mais velho — André Weil, que se tornaria um célebre matemático —, começa a estudar filosofia aos quinze anos. Para ela, a formação clássica é um caminho bifurcado entre a atração irresistível pela política e as tortuosas questões da fé. O filósofo Alain, que a tinha como uma de suas melhores alunas, a apelidara “a Marciana”. 

“A fome devastara a China e tinham contado que, ao saber dessa desgraça, ela chorara: essas lágrimas, mais do que seus dons filosóficos, forçaram meu respeito. Eu invejava um coração capaz de bater através do universo inteiro”, escreveu Simone de Beauvoir ao evocar, em Memórias de uma moça bem-comportada, a “inteligência de grande reputação” e “o modo estranho de se vestir” de sua xará, colega na Sorbonne quando as duas não tinham nem vinte anos. Ao tentar uma conversa, ouviu que o único tema relevante seria “a Revolução que daria de comer a todos”. Discordou e levou um fora: “Ela mediu-me dos pés à cabeça e disse: ‘Bem se vê que nunca teve fome’. Nossas relações não foram além. Compreendi que me catalogara: ‘Uma pequeno-burguesa espiritualista’”. 

Abandonou o ensino da filosofia para empregar-se como 
operária e sentir na própria pele as condições 
da classe trabalhadora 

A reprovação partia de alguém que sempre negou o que a vida lhe dera pronto, dos valores dominantes à própria condição social. Não via sentido em apartar as ideias da experiência e tampouco de sustentar uma militância distante dos desvalidos. Única mulher formada em sua turma da École Normale Supérieure, abandonou o ensino da filosofia para empregar-se como operária e sentir na própria pele as condições da classe trabalhadora, que então discutia com sindicalistas e intelectuais. Em 1933, aos 24 anos, chegou a debater algumas dessas questões com o próprio Trótski, hóspede de seus pais. Exasperado, ele sugeriu: “Por que você não entra para o Exército de Salvação?”. 

A saúde frágil que logo interromperia a vida na fábrica não impediu que, em 1936, desembarcasse em Barcelona para lutar ao lado dos republicanos na Guerra Civil da Espanha. Revia assim, pela justiça da causa, suas mais arraigadas convicções pacifistas. Derrotada por uma prosaica queimadura de azeite, afastou-se do front, mas não do combate arraigado, nas páginas de jornais e revistas, contra a ascensão do totalitarismo. Via com a mesma repulsa Hitler e Stálin, ainda que não reduzisse os valores e princípios do socialismo à barbárie soviética.

Em 1940, os Weil começam um périplo pela França, para sobreviver da melhor forma possível à ocupação nazista. Weil estuda sânscrito e grego e publica “Ilíada ou o poema da força”. Nesse ensaio, central para sua visão de mundo, afirma que o uso da força é o que permite ler criticamente a sociedade. Quando um indivíduo aponta uma arma para outro, argumenta, ambos perdem o que é neles essencial, pois o recurso à força é sinônimo da desumanização. A lógica da força, bem clara numa guerra, também preside de outra forma a fábrica ou o Estado; na melhor das hipóteses, é o fundamento da lei e da ordem.

Resistência

Em 1942 a família se transfere para Nova York, mas a segurança do exílio seria para Weil pura angústia diante da situação cada vez mais difícil da Europa. No fim do ano, sozinha, cruza o Atlântico de volta, atendendo ao London calling. E, da Inglaterra, se engaja no France Libre, o movimento internacional de resistência. Escreve um de seus livros mais impressionantes, O enraizamento, e insiste em voltar para o front. Cada vez mais debilitada, sucumbe à tuberculose em 1943, aos 34 anos, num sanatório de Ashford.   

Cada linha que escreveu é, de alguma forma, uma defesa da singularidade, do que é irredutível em cada um e da necessidade de conciliar essas diferenças sem esmagá-las. A fábrica dramatiza didaticamente essa tensão, à medida que opõe a cadência das máquinas, que estabelece a velocidade da produção, ao ritmo dos operários, ao tempo que lhes é próprio, que nos é próprio. A luta por uma vida mais justa é, para ela, uma luta complexa que começa pelos movimentos sociais e jamais deve excluir a utopia de uma convivência possível entre os ritmos sempre variados da existência com a cadência homogeneizadora.

“Ela não tinha preconceito contra nada, só contra a crueldade e a baixeza, o que dá no mesmo. Ela não desprezava nada a não ser o próprio desprezo. E ao lê-la nos dizemos que a frivolidade foi a única coisa de que sua surpreendente inteligência foi incapaz”, escreveu Albert Camus em 1949, quando começou a publicar Weil na Espoir, coleção que então dirigia na Gallimard. Ainda hoje, 76 anos depois de sua morte, a editora francesa segue publicando a “obra completa” da escritora, que deverá preencher dezesseis volumes. Colóquios internacionais discutem sua herança, revalorizada à esquerda com a qual ela se identificava criticamente e também apropriada pela direita.

Esse legado póstumo não exclui, é claro, boa dose de mistificação. Em 1979, Roberto Calasso registra que, àquela altura, a simples menção do nome de Simone Weil suscitava “rostos contritos” em respeito a uma “santa de nosso tempo”. Em diapasão bem diferente e duas décadas antes, Georges Bataille fez dela personagem de O azul do céu, novela estranhíssima, ambientada na Guerra Civil da Espanha. No livro, escrito em 1935 e só publicado em 1957, o dissoluto e frívolo narrador assim a descreve, rebatizada como Lazare: “Ela causava mal-estar: falava lentamente com a serenidade de um espírito estranho a tudo; a doença, o cansaço, a privação ou a morte não significavam nada aos seus olhos. O que supunha por antecipação, nos outros, era a mais calma indiferença. Exercia um fascínio, tanto por sua lucidez como por seu pensamento de alucinada”.

Quando um indivíduo aponta uma arma para outro ambos perdem o que é neles essencial, pois o recurso à força 
é sinônimo da desumanização

No emaranhado de aproximações de personagem e obra tão complexas, fico com a Susan Sontag mais certeira, a dos anos 1960, que numa resenha para a New York Review of Books filia Simone Weil a um heterogêneo grupo de escritores que impressionam “pelo senso de agudo rigor pessoal e intelectual” e cuja vida exemplar não convida à imitação, mas a um olhar distante “com uma mistura de repulsão, piedade e reverência”. 

Para ela, os gestos políticos de Weil são “nobres e ridículos” e não há o que invejar em sua aparência ou no “elaborado espírito de sacrifício”. Sua presença é, no entanto, o lembrete de uma seriedade austera que nos faz ler o mundo sem complacência, reafirmando que “não é possível ter fé em ideias expressas em tons impessoais de sanidade”. 

“Há eras que são demasiado complexas”, escreve Sontag, “demasiado aturdidas por experiências históricas e intelectuais contraditórias para ouvirmos a voz da sanidade.”  
___________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário