Leandro Karnal*
Para seduzir o grande público, seria necessário reduzir a mensagem?
No ano 2000, houve a exposição celebrativa dos 500 anos do
“descobrimento do Brasil” no Ibirapuera. No módulo dedicado ao Barroco, Bia
Lessa colocou 200 mil flores que chamavam atenção. As imagens estavam lá,
belas, plantadas como imenso tapete de procissão com alegoria floral. Muitos
condenaram o impacto cinematográfico que poderia desviar do objeto da
exposição. Ainda não era a idade de ouro das selfies. As pessoas iam a museus
sem postar nada, acreditem, jovem leitora e jovem leitor. A exposição foi um
imenso sucesso. Os recursos “teatrais” funcionaram e muita gente que nunca
tinha visitado algo similar esteve lá, especialmente pessoas sem o hábito de
visitar mostras culturais.
O debate se repete e se amplia sempre. Um vídeo de 15 minutos sobre
Nietzsche? Impossível captar todas as ideias do pensador, todavia, ele será
visto por muita gente. Já fiz dezenas de palestras sobre temas complexos e, com
frequência, ouvi que eram superficiais. Concordo inteiramente, pois o objetivo
era a divulgação e não o debate acadêmico. Os temas universitários são de outra
espécie. Já vivi a experiência contrária. Um curioso entra na sala da
pós-graduação na Unicamp. O tema? A leitura lacaniana de Michel de Certeau
sobre o transe místico. O curioso fica uma hora, mais ou menos. É visível que
não está acompanhando o desenvolvimento da ideia que, entre outras coisas,
implicava um texto complexo em francês como base da aula. Ele esperava o
Leandro que via no YouTube, encontrou o acadêmico. Quase sempre desaparecem no
intervalo, um pouco incomodados. Não podendo dizer de outra forma, um
interessado outsider disse-me após uma aula sobre os processos de Loudun no
século 17: “Por que o senhor não fala engraçado e fácil como nas
palestras?”.
Para seduzir o grande público, seria necessário reduzir a mensagem?
Outro exemplo: fui contactado para ser curador de uma mostra que trataria de
ícones em um museu de São Paulo. O evento acabou não ocorrendo, porém quero
destacar o debate inicial. Tínhamos de escolher um título. Os ícones apresentam
Jesus, Maria e os santos. Pensei em expressões como “Memória do sagrado”;
“Imagens do divino”; “Deus visível” e coisas afins. O cenógrafo sugeriu que o
melhor título seria “Sacrou?”. O neologismo combinaria o sacro com a gíria
“sacar”, compreender. Atrairia muitos jovens e conteria um humor com conteúdo.
O debate retoma o desafio: seduzir é reduzir?
Na universidade, o compromisso com o lúdico é menor. Ou melhor:
imaginamos que a sedução esteja na beleza do tema, na precisão do recorte ou no
uso exato dos conceitos. A mesma exposição “Sacrou” seria, em uma aula da pós:
“Leituras iconográficas e iconológicas do imaginário bizantino isáurida”.
Promotores de megaexposições amam contabilizar números; acadêmicos admiram
títulos complexos para um pequeno grupo de alunos.
Para vender, muitos livros recebem títulos atrativos. Sempre tem boa
“pegada” coisas como “Os tiranos mais cruéis da história”; “As princesas mais
loucas da Europa” ou “Os dez homens mais ricos do planeta”. Tais temas indicam
algo claro, com um conhecimento fácil de ser repetido e com um tom anedótico
informativo que nunca se esgota.
Estamos falando de dois processos distintos. Um seria um recurso de
exposição, como o de Bia Lessa, que não deixa de exibir a riqueza do Barroco
colonial, entretanto, adiciona estratégias visuais que podem fazer parte do
encantamento. O impacto de Bia é parte da exposição, pois mostra um pouco do
chamado “excesso” que alguns identificam no Barroco. Além de seduzir, ela
ampliou a possibilidade, trazendo algo belo e até bem-humorado. Se a exposição
voltasse hoje, seria trend topic e totalmente “instagramável”.
Existe outra maneira, a que está em livros com títulos chamativos e
conteúdos esquemáticos. No caso, o objetivo está no mercado apenas e não é um
recurso, trata-se da obra em si.
Muitos intelectuais e formadores de opinião não gostam da ideia de
divulgação. Preferem o eterno elitismo de iluminados que têm pleno domínio
retórico e hermético. São os que amam catálogos de arte em que cada parágrafo
necessita explicação de um especialista em semiótica. Certas ideias são muito
complexas mesmo e inúmeros autores não podem ser facilmente divulgados. Isso
não impede que mostremos camadas, as mais claras possíveis, e que iniciados e
iniciantes possam acessar algo que os conduza a um desejo de saber mais.
Todo processo didático e de ampliação envolve incontáveis desafios.
Escrevi isso pensando no mau humor de alguns doutos diante das filas para
selfies no Abaporu, da exposição blockbuster de Tarsila do Amaral, no Masp.
Tenho certeza de que alguns prefeririam meia dúzia de notáveis com gola rulê
preta olhando para a imagem e pronunciando sentenças sobre as releituras da
antropofagia como metáfora da nossa epistemologia associativa mestiça. Sempre
imaginei que exista espaço para muitos apreciadores da arte ou do conhecimento.
O comedor de homens não pertence ao intelectual ou ao adolescente segurando o
celular. Aliás, o Abaporu é de um argentino. Uns reduzem bastante, outros
aprofundam muito e há os que compram tudo... É preciso ter muita esperança e,
talvez, algum dinheiro.
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*Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em história da América
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,quem-seduz-reduz,70003033174Imagem da Internet
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