Brasil planejou ser polo econômico, mas após Lula deu as costas para a região, que deve encolher 0,2% este ano
Jair Bolsonaro disse em 26 de outubro que
se preocupa com a situação política na América Latina. E citou dois
casos. A Argentina, que um dia depois votaria para presidente dona de
forte sentimento contrário ao neoliberal Mauricio Macri, e o Chile, a
pátria inaugural do neoliberalismo, há dias em convulsão social.
“Estamos colaborando, na medida do possível, com a estabilidade
democrática. O Brasil é muito importante para a América do Sul”, afirmou
o presidente.
Além de Argentina e Chile, o
continente vê turbulências político-sociais também no Equador e no Peru.
O governo equatoriano teve de recuar de um pacote de medidas
neoliberais após protestos populares liderados por indígenas. Já o
presidente peruano, Martín Vizcarra, dissolveu o Congresso e convocou
eleições legislativas em uma crise que tem a Operação Lava Jato como
ingrediente.
“Apesar das diferentes motivações em cada
país, os acontecimentos na América do Sul, como no Equador e no Chile,
têm causas comuns”, afirma o cientista político Gaspard Estrada, diretor
de estudos sobre América Latina no Instituto de Estudos Políticos de
Paris (Scienses Po).
“Há baixo crescimento econômico,
desigualdades sociais persistentes e desconfiança da população com as
elites políticas e econômicas”, completa o acadêmico.
A América do Sul deve encolher 0,2% este
ano e crescer 1,8% em 2020, conforme previsões de outubro do Fundo
Monetário Internacional (FMI). Um número bastante influenciado pela
ruína na Venezuela, onde a entidade projeta uma retração de 35% este ano
e de 10% em 2020. Outros projeções do FMI: Brasil (0,9% em 2019 e 2% em
2020), Argentina (-3,1% e -1,3%), Equador (-0,5% e 0,5%), Paraguai (1% e
4%), Uruguai (0,4% e 2,3%), Chile (2,5% e 3%), Peru (2,6% e 3,6%),
Colômbia (3,4% e 3,6%), Bolívia (3,9% e 3,8%).
Para a América Latina, as estimativas são
de expansão de 0,2% em 2019 e de 1,8% em 2020, menores do que o próprio
fundo havia divulgado em julho (0,6% e 2,3%). Números incapazes de
reduzir a pobreza e a concentração de renda históricas na região.
De cada dez latino-americanos, três vivem
na pobreza, informa um relatório de janeiro da Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (Cepal). Eram 184 milhões de pobres, de um
total de 600 milhões de habitantes na região. Uma pobreza de perfil bem
definido: camponeses, mulheres, crianças, adolescentes e indígenas.
A miséria (pobreza extrema) atingia 62
milhões de latino-americanos. Isso equivale a 10,2% da população
continental. É o maior patamar visto desde 2008 e crescente desde 2015,
ano em que o neoliberalismo ganhou fôlego nas duas maiores economias
sul-americanas.
No Brasil, Dilma Rousseff foi reeleita em outubro de 2014 e no mês seguinte nomeou um neoliberal para ministro da Fazenda de seu abortado segundo mandato, o Chicago Boy Joaquim Levy. Macri elegeu-se na Argentina em novembro de 2015, com uma plataforma neoliberal.
Por aqui, essa rota custou uma queda de
3,5% do PIB em 2015 e outra de 3,6% em 2016. Depois, crescimento
medíocre de 1% em 2017 e de 1% em 2018, anos de Michel Temer. Em 2019,
já com Bolsonaro no poder, não passará de 1%, segundo o FMI.
A obra de Macri é digna do Brasil.
Retração da economia argentina de 2,3% em 2016, alta de 2,9% em 2017,
queda de 2,5% em 2018 e, segundo o FMI, 2019 será de encolhimento
também, de 3,1%.
Diante dessa obra econômica, Macri foi
para a reeleição “bolsonarizado”, a atacar corrupção, criminalidade,
fantasmas comunistas. “Se há uma área em que o Brasil tem sim impacto na
América do Sul hoje, é no discurso. O Bolsonaro ajudou a liberar
palavras extremistas, a defesa de valores ultraconservadores”, afirma
Gaspar Estrada.
Na eleição chilena de 2017, além do
neoliberal Sebastián Piñera, que se elegeu presidente, havia um
candidato de extrema-direita a la Bolsonaro, José Antonio Kast, fã do
ditador Augusto Pinochet, cuja Constituição que deixou de herança não
foi enterrada depois que ele deixou o poder. Kast dizia à época que o
governo de então do Chile, da socialista Michelle Bachelet, se curvava a
uma ‘ditadura gay”. Teve 8% dos votos.
No Peru, diz Estrada, há políticos
interessados em uma aproximação com Bolsonaro. É um país cujo poder
divide-se hoje entre a direita tradicional, representada pelo presidente
Vizcarra, e pela extrema-direita que domina o Congresso através do
grupo do ex-presidente Alberto Fujimori. Vizcarra tenta usar o combate à
corrupção para dobrar o fujimorismo, e a Lava Jato ajuda nisso.
Keiko Fujimori, filha do ex-presidente e
principal líder da oposição, é acusada de ter recebido dinheiro da
Odebrecht. A “Lava Jato peruana” investiga três presidentes e levou um
quarto, Alan Garcia, ao suicídio, em abril de 2019. Vizcarra dissolveu o
Congresso pois cabe ao parlamento nomear juízes da Suprema Corte, o que
dificultaria o avanço das investigações.
No Equador, a Lava Jato também se prestou
à exploração política. Lenín Moreno foi eleito em 2017 como nome do
grupo político do ex-presidente progressista Rafael Correa. Rompeu com
ele e usa o combate à corrupção para perseguir “correístas” e adotar
medidas neoliberais sem resistência. Mesmo assim, protestos populares,
indígenas à frente, obrigaram-no a recuar de um pacote acertado com o
FMI, que entre outras coisas dobrou o preço da gasolina e do diesel.
Na polêmica e recente eleição
presidencial na Bolívia, havia um candidato “bolsonarista”, o pastor
evangélico Chi Hyun Chung. Entre os bolivianos que moram no Brasil,
Chung recebeu 16% dos votos. Foi o segundo colocado, na frente do
vice-líder geral da eleição, o direitissta tradicional Carlos Mesa.
Diante das turbulências na América do
Sul, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o
uruguaio Luis Almagro, divulgou um comunicado em 16 de outubro a botar a
culpa nas “ditaduras bolivariana [venezuelana] e cubana”, que fomentariam as insurgências.
A OEA está à vontade para expressar esse
tipo de opinião graças à derrocada da União de Nações Sul Americanas
(Unasul). Criada em 2008 por iniciativa de governos progressistas como
Lula, Hugo Chavez, Rafael Correa e Nestor Kirchner (Argentina), a Unasul
nasceu como uma tentativa de contraponto à OEA, vista como alinhada
automática dos Estados Unidos, onde está sediada.
A Unasul pressionou a OEA a aceitar a
participação de Cuba nas periódicas cúpulas da Américas, por exemplo, e
conseguiu. A ilha esteve no encontro de 2015, realizado no Panamá. Hoje a
Unasul só existe no papel. O governo Bolsonaro tirou o Brasil da
entidade.
Brasil saiu de cena
Depois dos governos Lula, o Brasil deu as
costas ao continente, diz Estrada. Um processo iniciado com Dilma
Rousseff, que não tinha o mesmo interesse por diplomacia e geopolítica
do antecessor, e que foi reforçada pelos rumos conservadores e
neoliberais de Temer e Bolsonaro.
Se postura do Brasil fosse outra, a crise
na Venezuela talvez não tivesse chegado ao ponto em que chegou, nem a
ruína econômica. Recorde-se: em 2003, seu primeiro no poder, Lula ajudou
a criar o grupo “amigos da Venezuela”, para mediar conflitos que já
existiam por lá; já Bolsonaro, em seu primeiro ano no poder, botou o
Brasil para ajudar os EUA na tentativa de derrubar Nicolás Maduro.
Um diplomata brasileiro que viveu a
política externa da era petista diz: a integração sul-americana
arquitetada na era Lula tinha como premissa o Brasil ser o polo
econômico em torno do qual orbitariam os vizinhos. Agora, segue esse
diplomata, virou um cada um por si na América do Sul, com cada nação a
buscar pontos de apoio diferentes (Estados Unidos, China, Europa),
devido ao que aconteceu diplomática e economicamente com o Brasil nos
últimos anos.
Em um artigo recente sobre “O
protagonismo do Brasil na integração sul-americana”, um pesquisador e
dois bolsistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
examinaram as relações comerciais na América do Sul de 2000 a 2018.
“Entre 2000 e 2011, houve forte expansão das exportações e importações
brasileiras com seus vizinhos”, escrevem Pedro Silva Barros, o
pesquisador, e Sofía Escobar Samurio e Luciano Wexell Severo, os
bolsistas. “Nos últimos anos, porém, a América do Sul tem perdido
importância relativa no comércio exterior brasileiro.”
O total comercializado na América do Sul
pelo Brasil encolheu 18 bilhões de dólares de 2011 a 2018, tendo sido de
57 bilhões no ano passado. A queda foi causada sobretudo pelas
transações com Venezuela e Argentina. Os pesquisadores não identificam
iniciativas brasileiras para reverter essa situação, ao contrário do que
aconteceu em outras ocasiões, “prevalecendo um quadro de omissão”.
Barros debruça-se agora sobre 2019 e já
constata “o pior momento do comércio interregional desde que há
estatísticas”. Dois exemplos: até setembro, as exportações do Brasil
para o Chile tinham caído 17% e para a Argentina, 38%. Ex-diretor da
Unasul, Barros acredita que as turbulências políticas recentes na
América do Sul apontam o início de um ciclo de instabilidade na região.
Mudanças à vista?
Será também o prenúncio de um novo ciclo
de governos progressista na América do Sul? A adoção do neoliberalismo e
do Consenso de Washington na região na década de 1990 daria origem às
vitórias de líderes progressistas logo em seguida: Chavez na Venezuela
(1999), Lula (2003), Kierchner na Argentina (2003), Evo Morales na
Bolívia (2006), Correa no Equador (2007).
Há, porém, uma diferença geopolítica
entre o neoliberalismo dos anos 1990 e o de agora, comenta um diplomata.
Antes, a Casa Branca patrocinava medidas neoliberais. O ex-presidente
Bill Clinton, no poder de 1992 a 2000, fez isso. Donald Trump não. Sua
guerra econômica com a China é feita à base medidas heterodoxas, como o
aumento de tarifas comerciais.
Por outro lado, Trump pode até não ter
uma política externa clara para a América Latina, conforme anota
Estrada, mas ressuscitou a chamada “doutrina Monroe”, aquela da “América
para os americanos”. Trump citou Monroe em seu discurso na Assembleia
Geral da ONU de 2018.
“Desde o Presidente Monroe, é
política formal de nosso país que rejeitemos a interferência de nações
estrangeiras neste hemisfério e em nossos próprios assuntos. Os Estados
Unidos reforçaram recentemente nossas leis para rastrear melhor os
investimentos estrangeiros em nosso país em busca de ameaças à segurança
nacional, e agradecemos a cooperação com os países dessa região e do
mundo que desejam fazer o mesmo. Você precisa fazer isso para sua
própria proteção”, disse.
O avanço político de forças progressistas
na América do Sul na década passada foi possível graças a uma espécie
de cochilo dos EUA. Em um debate Brasília em 24 de outubro, o sociólogo
português Boaventura de Souza Santos disse que os americanos
concentraram-se nos desdobramentos do ataque de 11 de setembro de 2001,
como a guerra no Iraque e ao mundo islâmico, e deixaram de lado seu
“quintal” tradicional, a América do Sul.
“Os Estados Unidos acordaram tarde. Hoje a
China é o maior investidor na América Central, é o maior parceiro
comercial do Brasil”, afirmou Boaventura. O que acontece agora,
prosseguiu, é uma tentativa de “controle estrito de seus aliados
sul-americanos” por parte de Washington.
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Reportagem Por André Barrocal 28 de outubro de 2019
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/mundo/economia-e-brasil-ajudam-a-explicar-turbulencias-na-america-do-sul/?utm_campaign=novo_layout_newsletter_-_28102019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
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