quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

A última rena

Juremir Machado da Silva*
 
Diante da possibilidade da extinção das renas o mundo científico se mobilizou. Só havia uma rena. Seria possível clonar a última rena para salvar a espécie e garantir o transporte do Papai Noel? Crianças do planeta inteiro enviaram cartas à Fundação Nobel para que premiasse o salvador das renas. A carta de Chico, menino brasileiro, chamou a atenção:

– Eu não sei se é possível de uma rena fazer muitas renas, machos e fêmeas. Tomara que sim. Sei que a ciência não pode tudo, mas pode muito. Papai Noel não precisa me trazer presente neste ano. Já tenho um carrinho e uma bola. Salvem as renas. Peço encarecidamente aos lobos, aos corvos e às águias que se encontrarem alguma reninha perdida por aí, pode acontecer, não comam os olhos dela nem devorem ela mesmo que seja natural. Precisamos de lobos, corvos, águias, renas e até de baratas, acho, mesmo que minha tenha medo de baratas e sempre fale mal delas pra todo mundo.

Outra carta, de uma menina baiana, Julinha, de sete anos, aproveitou para fazer muitas perguntas e dar uma sugestão bastante polêmica.

– Quero que salvem as renas, mas me preocupo.

Será que elas sofrem puxando o trenó? Também tenho pena do Papai Noel. Faz calor aqui na Bahia. Não seria possível permitir que ele tire a barba e use outra roupa: sandálias, bermuda e camiseta regata? Só que fico em dúvida: sem barba e sem sua roupa, seria ainda o Papai Noel? Quando uma coisa deixa de ser o que é?

Chegaram cartas até nos escritórios da NASA. Os especialistas descobriram que havia cartas de adultos sem filhos nem sobrinhos. Percebeu-se que a crença no Papai Noel ressurge depois de certa idade sob a forma de nostalgia. A saudade pode ser tanta que a pessoa passa a fazer tudo o que era comum na sua infância: deixa os chinelos na porta ou na janela e escreve ao Bom Velhinho. Os pedidos desses adultos são ainda mais difíceis de atender. João Silvério, por exemplo, além de se manifestar em favor da salvação das renas, pediu ao Papai Noel algo bastante singelo:

– Papai Noel, por favor, traga de volta a minha infância.

Cientistas propuseram que as renas fossem substituídas por um algoritmo. Foram desaprovados por crianças e idosos. Ambientalistas saíram em defesa da salvação das renas e da libertação delas. Foi no ano de 3034. O mundo estava diferente. O Natal era o laço do presente com o passado. Adultos viviam na esfera especial de racionalidade, exceto pelo desespero consumista, que era considerado por eles mesmos como essencial para a sustentação do sistema. Crianças e idosos ocupavam outra esfera, a do imaginário, um espaço de sonho, jogo, ficção, cores e brincadeiras. Não havia mais carros individuais. Só transporte público gratuito. Robôs faziam todas as tarefas repetitivas.
Todo mundo recebia um salário.

Adultos cuidavam do corpo, escreviam poesia, pintavam, praticavam esportes e cuidavam uns dos outros. Papai Noel era o nexo com o passado. A extinção das renas poderia cortar definitivamente esse vínculo. Sem elas, por alguma razão simbólica fundamental e sublime, nada seria como antes.
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* Jornalista. Sociólogo. Escritor. 
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/12/11440/a-ultima-rena/ 
Imagem da Internet

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