Para o filósofo, provocador e rebelde, sistema busca “uma brutalização
generalizada da vida política” em todas as partes do mundo. E falta, ainda, uma
recomposição da esquerda
Por Leneide
Duarte-Plon, em Carta Capital
Especialista
de Platão, de quem traduziu do grego “A República”, o ex-maoísta Alain Badiou é
hoje um dos filósofos franceses mais lidos e estudados no mundo. Apaixonado por
política, ele publicou em 2016 um curto ensaio sobre os atentados de 13 de
novembro de 2015 em Paris, intitulado “Notre mal vient de plus loin”. Suas
posições contra a política colonialista de Israel e em defesa de um Estado
palestino fizeram dele alvo de sionistas franceses, que chegaram a acusá-lo de
antissemitismo. Ele respondeu com um livro, escrito com o editor judeu Éric
Hazan, “L’antisémitisme partout-Aujourd’hui en France” [“O antissemitismo em
toda parte — Hoje na França”].
A imprensa mais à esquerda o respeita e lhe abre espaço em longas
entrevistas, como recentemente no “Libération”. Ou lhe oferece páginas
inteiras, como em julho no “Le Monde”, onde ele assinou o artigo “Le
capitalisme, seul responsable de l’exploitation destructrice de la nature”
[“Capitalismo, único responsável pela exploração destrutiva da natureza”]. Em
1985, ele se engajou na defesa da regularização de trabalhadores estrangeiros
em situação irregular na França.
As novas gerações de insubmissos veem nele um “maître à penser”. Seu
seminário na prestigiosa École Normale Supérieure – que ele suspendeu no ano
passado – era tão frequentado que nos maiores anfiteatros, para centenas de
pessoas, não cabiam tantos jovens e menos jovens interessados em Platão ou na
sua crítica pertinente à dominação do “capitalo-parlamentarismo”.
Alain Badiou considera que fenômenos como o gulag ou a “revolução
cultural” chinesa não devem justificar a rejeição em bloco do comunismo — seria
“jogar o bebê com a água do banho” Para ele, atualmente, a democracia
transformou-se em instrumento de propaganda do capitalismo.
Com sua jovial generosidade, Alain Badiou me recebeu para essa
entrevista exclusiva, em seu apartamento em Paris, onde eu já o tinha
entrevistado quando lançara o livro sobre Sarkozy.
Toqueville dizia que “a França tem a paixão pela igualdade”. Como
explicar que as páginas sobre as lutas sociais quase desapareceram mesmo dos
jornais de esquerda, com exceção do comunista “L’Humanité” ?
Tenho uma visão histórica um pouco diferente. A questão da igualdade foi
colocada em pauta na França pela Revolução Francesa e isso criou uma corrente
francesa indubitável, reconhecida no mundo inteiro, em torno das idéias de
liberdade, igualdade e fraternidade, incluindo a igualdade como um dado
fundamental. Mas isso é apenas um aspecto da França. Ela foi também de maneira
persistente um país contra-revolucionário extremamente violento. A França são
também os 30 mil mortos da Comuna de Paris, a capitulação de Pétain e o
antissemitismo oficial do Estado Francês durante a Segunda Guerra Mundial, é
também o governo para os ricos sob Napoleão III, durante 20 anos, e é também
Macron hoje. Tudo isso com um pano de fundo do colonialismo, que conta no
inconsciente francês.
Não há uma França única, há duas. Há a França dos episódios
revolucionários mas que são minoritários e limitados no tempo, inclusive da
Revolução Francesa a Maio de 68. E depois há uma França contínua, estável, uma
base que é profundamente reacionária, profundamente hostil às manifestações de
igualdade. A gente subestima sempre essa França por causa da glória da França
revolucionária. As duas coexistem mas a continuidade pertence mais à França
reacionária que à outra. Esta representa momentos descontínuos e particulares,
como o Front Populaire de 1936, ou o governo do pós-guerra, composto por
resistentes e que adotaram medidas sociais muito importantes. Houve também um
grande Partido Comunista. É verdade que houve tudo isso. Mas por baixo há a
França colonial, reacionária, pró-capitalista, submissa aos americanos. Tudo
isso é uma França real. Por isso, é preciso ver as coisas com suas divisões e
pode-se dizer :”os franceses têm a paixão da igualdade, excetuando-se os
que têm a paixão da desigualdade”.
A pluralidade da imprensa francesa está ameaçada pelo fato de que
grandes grupos capitalistas tenham comprado jornais importantes ? Penso no
Figaro, no Libération, no Le Monde e no Les Échos,
sem falar nas redes de TV.
A pluralidade está ameaçada, em estado crítico. Na França, fala-se de
pensamento único e penso que estamos próximos da informação única. Os números
comprovam. A imprensa escrita foi comprada por grandes grupos capitalistas
(exceto o L’Humanité) e quanto às TVs é a mesma coisa. Os canais de
informação dirigidos à população em geral estão nas mãos da oligarquia
financeira. Você lê um jornal ou um outro e vai encontrar os mesmos temas, as
mesmas idéias. Vão lhe dizer que Maduro é um ditador, que quem não defende
Israel é um antissemita, que o liberalismo é a melhor alternativa, que é
preciso privatizar as empresas porque a economia coletiva não funciona, “abaixo
o comunismo”. É isso que vamos ver em quase toda a imprensa. Em dado momento,
propus a expressão “totalitarismo parlamentar”. No nosso país existe um
totalitarismo parlamentar. Sim, temos um Parlamento, eleições, mas a economia
está nas mãos de um pequeno grupo, idem para a informação. No fim das contas, a
lei é a privatização generalizada de tudo e num certo sentido existe um
“totalitarismo parlamentar”. E tratam de ditadores os presidentes que não
agradam ao Ocidente. Por isso digo que ser eleito é uma coisa mas é preciso ser
o eleito dos Estados Unidos.
A informação é totalmente controlada e não há necessidade de censura. Eu
diria que uma auto-censura é bem melhor que uma censura. A censura é difícil.
Enquanto que não convidar aos programas de TV ou não publicar nos jornais
entrevistas com pessoas com opiniões antagônicas é melhor. Quando me convidam,
sempre tenho a impressão de estar servindo para o “folclore vermelho”, o
filósofo comunista.
Foi esse o problema de Lula, ele não era o “eleito” dos Estados Unidos… Lula, um ex-metalúrgico eleito presidente duas vezes, nunca foi
aceito pelas elites dominantes do Brasil. Nem ele nem as políticas sociais dele
para diminuir as desigualdades. Com o golpe disfarçado de impeachment que
acabou levando à prisão de Lula depois de um processo stalinista, a direita
voltou ao poder para privatizar as empresas estatais e abrir a exploração do
petróleo brasileiro às multinacionais. O ex-ministro das Relações Exteriores de
Lula, Celso Amorim, disse em Paris, em junho, que os Estados Unidos não querem
Lula no governo mas também não querem o retorno dos militares. A potência
hegemônica vê a América Latina como seu quintal. O país mais populoso e mais
rico do continente não pode decidir seu futuro sobreturo se for para ir formar
o BRICS, entre outras iniciativas que desagradaram Washington. O senhor
acompanha com interesse o que se passa na América Latina?
Sim, me interesso muito pelo que se passa na América do Sul, sobretudo
porque durante um momento houve a idéia para o pensamento de esquerda mundial
que aconteciam coisas muito interessantes na América Latina. E a catástrofe
atual nos atinge também, não somente porque ela representa um enfraquecimento
mundial mas também por sua violência e radicalidade.
É impressionante ver o que se passa com Lula e com sua política
atualmente no Brasil. É uma inversão brutal de algo que acompanhávamos com
simpatia, mesmo se tivéssemos críticas aqui e ali. Víamos com simpatia alguém
tirar uma grande parte da população brasileira da miséria extrema, alguém que
tinha propostas interessantes, o primeiro que tirou da propriedade privada e universalizou
o tratamento da Aids e dessa forma salvou milhões de africanos da morte. Por
todas essas razões, o que se passa no Brasil, na Argentina e na Venezuela é
para nós algo que tem uma significação estratégica mundial. Não são somente as
coisas horríveis que atingem os povos desses países, tudo tem uma significação
mundial. E precisamos estar informados, precisamos compreender o que se passa
na América do Sul.
Não é realmente o que se vê, uma informação clara…
Lendo a imprensa francesa não compreendemos nada. Por isso, lhe digo que
temos o dever de informar o que se passa realmente na América Latina pois isso
tem relação com o que se passa no mundo.
Donald Trump disse que não excluía a opção militar na Venezuela. Isso
não chocou a Europa. Por que? Macron e os jornais franceses tratam Maduro de
ditador e isso não choca muita gente…
Mesmo Libération e Le Monde fazem campanha contra os
venezuelanos. É o sinal da submissão dos vassalos europeus aos Estados Unidos,
que se manifesta mais uma vez em relação à América Latina. A informação dada
sobre essa região é uma informação americana. O uso do vocabulário, “ditador”
etc. Nós temos necessidade de uma visão clara do que se passa, do papel dos
Estados Unidos nesses acontecimentos, qual a natureza exata desses processos
políticos. Por exemplo, não se explicou aqui que o que aconteceu no Brasil foi
um golpe de Estado. Todo mundo repete aqui : “Sim, Lula se corrompeu”.
Eles seguem a narrativa da imprensa mais reacionária brasileira, dos
políticos corruptos que tomaram o poder e colocaram Lula na prisão com o
objetivo de realizarem a política que os Estados Unidos desejam.
Exatamente. E isso faz parte da perda de referência das populações
quando se trata de conhecer os processos políticos reais. Contam à população
apenas a fábula dominante.
De que Macron é o nome, isto é, o que ele representa?
Macron é um personagem destinado a integrar, mais ainda, a França no
neoliberalismo mundial. As forças políticas francesas, a direita e depois a
esquerda, estavam em crise. A direita estava enfraquecida e a esquerda mostrara
que não fazia algo de muito diferente da direita. Os partidos tradicionais do
Parlamento estavam muito enfraquecidos. Foi preciso aos grupos dirigentes
encontrar uma alternativa e Macron, que já tinha tido uma pequena carreira de
ministro da Economia, era esse personagem. O programa dele é essencialmente
negativo. Ele quer destruir a totalidade das conquistas sociais do pós-guerra,
nos anos 1940-1950. Trata-se de privatizar a totalidade dos setores que
escaparam à privatização e no nível internacional trata-se de encontrar um
acordo com a Alemanha para empurrar a Europa mais ainda para o campo liberal.
Macron é uma figura em total acordo com a situação mundial. É a figura
francesa do vasto movimento de liberalismo desenfreado que vemos em todo o
mundo ocidental hoje e ele está na tradição francesa que faz com que um homem
providencial apareça, quando os partidos tradicionais estão em crise. Foi o
caso de Napoleão III, foi o caso de De Gaulle em 1958, em plena guerra da
Argélia. Macron é uma figura um pouco menor… mas tem a mesma função. E vivemos
uma espécie de ditadura política dos grandes grupos financeiros e industriais
nacionais, mas também midiáticos. Macron é isso, é muito claro.
O que significa para o mundo a eleição de um businessman para governar
os Estados Unidos?
É um símbolo. A potência dominante de todo o capitalismo ocidental
escolheu um personagem como Trump, um personagem anormal. Porque no interior do
Partido Republicano mesmo, a direita tradicional dos Estados Unidos, ele não
era uma figura dentro da norma. Eu me interesso e me preocupo com o fato de
que, em muitos lugares do mundo, o poder político tende a ser diretamente
colocado nas mãos de personagens que não são políticos profissionais, são
representantes diretos da oligarquia mais limitada, mais violenta.
Desse ponto de vista, vejo a democracia parlamentar em crise no mundo
inteiro porque não é mais o regime dos grandes partidos tradicionais
republicanos e democratas, socialistas e conservadores, aquela que dominou no
mundo nos anos do pós-guerra. Verifica-se um deslocamento para personalidades
patológicas, que representam interesses financeiros os mais violentos e que têm
como programa reformas extremamente brutais de destruição de conquistas
sociais, de racialismos renovados, hostilidade aos estrangeiros…
Esse fenômeno é típico, simbólico de uma situação mundial modificada na
qual se percebe uma fraqueza extraordinária da esquerda tradicional sob todos
os aspectos. Isso é impressionante. A esquerda existia de uma maneira diferente
de um país a outro. Na França, havia o Partido Socialista e os restos do
Partido Comunista. No Brasil, havia Lula e o que ele representava, Kirschner na
Argentina, Obama, apesar de tudo, nos Estados Unidos. Agora, há uma
brutalização generalizada da vida política, como se o capitalismo mundial
tivesse necessidade de uma nova etapa de sua ditadura. A que isso
corresponde é uma pergunta aberta. Qual o sentido exato dessa orientação é
uma pergunta que me faço. Ainda não tenho uma resposta.
Como as nações podem resistir à implantação no mundo inteiro do
neoliberalismo que Trump e Macron representam, com estilos diferentes?
O problema é que não parece que se possa, por enquanto, pelo menos na
Europa, se apoiar ou confiar no que subsiste das organizações da esquerda
tradicional. Elas parecem realmente derrotadas. Elas não viram se aproximar
esse fenômeno, não souberam enfrentá-lo, não têm mais crédito junto às
populações. É preciso recomeçar tudo. Do ponto de vista de uma política que não
seja uma política dominante, estamos no início de uma recomposição ainda
obscura. Há uma crise mundial da esquerda e é uma crise ideológica, uma crise
de visão do mundo, qual o caminho que as massas podem seguir para se opor ao liberalismo
violento, cujos resultados nos esmagam. E, infelizmente, penso que essa
situação não vai ser resolvida rapidamente. Acho que estamos no início de um
longo caminho.
Quando se quer desqualificar um homem político diz-se que “é um
populista”. Os filósofos Chantal Mouffe e Ernesto Laclau teorizaram o
“populismo de esquerda”, que afirma que a crise democrática é também uma
oportunidade para radicalizar a democracia. O que o senhor pensa disso?
O uso da palavra populismo para desacreditar um homem político, isto é,
a identificação que se faz de populismo à extrema-direita como se fosse a mesma
coisa é um uso contestável. Se populismo quer dizer uma política que se refere
ao povo, não vejo por que seria uma injúria. Concordo com Laclau e Mouffe
quanto ao fato que o populismo pode, ao contrário, ser tomado com significação
positiva, de uma política que se preocupa em estar em ligação orgânica com a
vontade popular.
O segundo ponto é que precisamos saber que a crise atual é a crise das
representações políticas, em quase toda parte. Mas, às vezes, ela é confundida
com a ideia de que estaríamos numa crise grave do próprio capitalismo. Ora, não
o creio. Quando se fala de crise, precisamos saber de que estamos falando. Há
qualquer coisa que não funciona mais de forma clara na relação entre a
dominação econômica e a dominação política. Os Estados parlamentares estão
desorganizados e então vemos aparecer coisas como Trump, como Macron ou como os
poderes de extrema-direita nos países da Europa do Leste. É uma crise política.
Mas como pano de fundo de tudo isso há mutações agressivas e ambiciosas do
capitalismo moderno.
O problema, nada simples, é como utilizar para uma recomposição política
de esquerda, positiva, essa crise. Sou obrigado a constatar que na França, os movimentos
populares recentes, a greve dos ferroviários, a ocupação das faculdades, etc,
representam um movimento desorganizado, sem perspectiva política clara e
unicamente defensivos. Gostaria de pensar o que pode ser uma ofensiva política
hoje para as forças populares, de esquerda. Para mim, isso supõe, antes de mais
nada, uma reorganização estratégica do pensamento, da ideia. O que
queremos ? Tenho a impressão que “o que queremos” tem como resposta, na
Europa ocidental em particular, uma coisa estritamente defensiva. Nós queremos
manter as vantagens e as posições sociais que foram conquistadas nos anos 1950
e 1960. Não tenho certeza de que isso é suficiente. Por enquanto, o adversário
está bem decidido a destruir tudo e ele avança. É ele quem avança…
Como um tsunami…
Exatamente. Logo, estamos encurralados e na defensiva mas em política há
sempre um momento em que a defensiva não é suficiente. As pessoas têm
necessidade de saber qual é a perspectiva para além da defensiva.
Mas na França, com a France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, e
seus 20% de votos no primeiro turno da eleição presidencial do ano passado, não
foi uma onda importante que se levantou?
Não, por uma razão muito simples: as perspectivas reais da France
Insoumise são confusas. Mélenchon ainda é um personagem muito ligado à
velha esquerda, vem da velha esquerda. E dela guardou muitas características,
inclusive o fato que sua visão ideológica e programática não é clara.
E o que é a nova esquerda ? Ela já existe na França?
Não, por enquanto. Honestamente, não saberia citar um só exemplo no
mundo inteiro. São períodos vazios, que já existiram na história. São momentos
de esvaziamento, face a uma ofensiva do inimigo muito violenta e face a uma
espécie de enfraquecimento das velhas idéias, das velhas maneiras de fazer. E
nesses casos, é preciso reafirmar um certo número de princípios, é preciso
fazer uma análise precisa das manobras e ambições do adversário. É preciso
identificá-las, apontá-las.
Quando converso com pessoas comuns, de boa vontade, tenho a impressão
que elas não conhecem o mundo no qual vivem. Desconhecem as leis reais do mundo
em que vivem. É preciso fazer um esforço, pôr à disposição das pessoas uma
descrição real, concreta do mundo em que vivemos. Você começa por uma pergunta,
“Quem é Macron?” Muitíssimas pessoas não sabem quem é Macron, que forças
representa, por quem ele fala. As pessoas dizem : “Ele é jovem”. É preciso
propor coisas simples para começar, fazer uma descrição precisa dos interesses
que estão em jogo, quem representa o quê. O que é exatamente a ofensiva
liberal. O que representa Macron ou por que na Argentina e no Brasil houve a
possibilidade de uma contra-ofensiva tão brutal, tão violenta da casta
dirigente mais reacionária e mais sanguinária. É preciso explicar isso tudo, é
preciso que saibam em que mundo vivem.
Como explicar a vitória da direita na França em 1969, depois das ilusões
revolucionárias de Maio de 68?
Explica-se pelo que acabo de falar: a existência de duas Franças. A
primeira França estava mobilizada, nas fábricas, nas universidades, fazia
manifestações, colocava a bandeira vermelha nas janelas… A segunda França
esperava, tinha medo… Eu tinha uma parte da minha família que pertencia à outra
França. Eles saíram para a manifestação do Arco do Triunfo. É preciso que
lembremos que uma das maiores manifestações de Maio de 68 foi uma manifestação
contra-revolutionária. E eles deram o troco no momento do voto.
O que indica que o voto é um meio ambivalente. Os movimentos e o voto
não são a mesma coisa, não coincidem. Lembro sempre a quem me escuta que um dos
meios utilizados pelos patrões para quebrar uma greve é organizar um escrutínio
com voto secreto. O voto também tem uma longa história repressiva e não somente
de emancipação, que ele também tem. Pessoalmente, eu era um jovem ativista na
época mas estava suficientemente consciente que havia um país por trás que
olhava tudo com apreensão. Por isso, não me surpreendi com o resultado de 1969.
Muitos de meus amigos ficaram estupefatos. Eu lembrava a eles que todos não
estavam nas ruas… Havia um milhão de pessoas nas ruas mas muitos milhões que
não estavam…
Um dos slogans de Maio de 68 dizia : “Élections, piège à cons”,
algo como “Eleições, armadilha para otários”. O senhor não vota. Por quê?
Decidi não votar desde junho de 1968. Para mim, a lição de Maio de 68 e
dos dez anos que se seguiram, nos quais fui um ativista militante, é que com
poucas exceções, que até existem, as eleições são feitas para consolidar o
poder estabelecido. Há exceções. Mas isso quer dizer que você está seguro, sabe
que se candidatar vai na direção de uma situação no país, na população, que lhe
dá chances reais de ganhar. Mas em geral não é esse o caso. Em geral, a eleição
é um sistema que só pôde ser posto em prática porque a classe dirigente sabia
que jamais iriam tirá-la por uma eleição.
Lembro-me bem que quando a esquerda chegou ao poder com Mitterrand, em
1981, Roger Peyrrefite, um escritor gaullista, disse no momento das primeiras
nacionalizações, que só durou dois anos : “As eleições são feitas para
mudar de governo, não são feitas para mudar o modelo social”. E ele tinha
razão. Todos sabemos que é assim. Se olharmos a história parlamentar francesa,
os períodos nos quais as eleições tiveram resultados que permitiram reformas
são exceção. Pode-se citar a eleição da Frente Popular, em 1936, mas isso durou
um ano e meio. E o governo da Frente Popular recusou-se a ajudar os
republicanos na Guerra da Espanha. Depois, houve um governo da Libertação, no
pós-guerra, no qual foram feitas reformas sociais e, posteriormente, os dois
primeiros anos do governo de Mitterrand. Mas em dois séculos isso representa
cinco ou seis anos. Os casos de traição da esquerda são muitos. Durante a
Guerra da Argélia, os socialistas fizeram campanha com o slogan, “Paz na Argélia”.
Um mês depois da chegada ao poder, eles mobilizaram o contingente para
continuar a guerra e a tortura.
Com a chegada ao poder da extrema-direita em vários países da União
Européia, a Europa está ameaçada em sua própria existência?
Acho que o projeto europeu ficou um tanto obscuro. Mas o que era
ele ? Era um projeto constituído no pós-guerra que tinha um duplo
objetivo : criar as condições de uma paz fundamental na Europa, depois de
duas guerras mundiais atrozes e, por isso, o cerne era uma reconciliação
franco-alemã que poria um ponto final a um século de guerras e hostilidades. Em
segundo lugar, era também uma aliança com os norte-americanos, para constituir
uma barreira à expansão soviética. Havia um aspecto de criar uma zona de paz e
um aspecto que não era exatamente pacífico de constituir uma barreira ao
comunismo da época. O que criou uma situação um pouco particular foi que esta
paz européia existiu, apesar de tudo. Houve a reconciliação franco-alemã mas
ficamos completamente ligados aos Estados Unidos do ponto de vista dos
interesses mundiais, do ponto de vista da guerra fria, para a defesa. Uma
dependência econômica, militar e financeira.
Mas na atual situação, quais os objetivos exatos da construção européia?
Não são claros e não foram clarificados pela incorporação à Europa de uma parte
da antiga zona soviética (Polônia, Tchecoslováquia, Hungria etc) na qual há
forças nacionalistas reativas, religiosas e que representam uma cultura
política completamente diferente da dos países ocidentais como a França e a
Inglaterra. Há, pois, uma crise européia grave na qual as discussões e querelas
sobre a questão dos migrantes, dos estrangeiros é um sintoma mas que não é o
único. A Europa está em crise e que essa crise vai durar porque não vejo uma
idéia forte do que seria um projeto europeu.
Como se explica isso?
Por uma razão simples. Um projeto europeu forte suporia que os Estados
europeus estejam prestes a afirmar sua independência em relação aos Estados
Unidos. Ora, não creio que eles estejam prontos. As dependências ainda são
consideráveis. Não existe uma defesa européia comum, não há nenhum aparelho
militar suficiente para garantir essa independência, ainda existe uma
dependência monetária extremamente forte em relação ao dólar. Recentemente,
quase todos os grandes grupos europeus foram obrigados a obedecer aos Estados
Unidos quanto ao comércio com o Irã. Isso prova que a dependência é muito
forte.
Em 2002 e 2017, os franceses votaram maciçamente em Chirac e em Macron
para barrar o Front National. A França está imunizada contra a extrema-direita?
Não penso que ela esteja imunizada. Acho que essa história é uma
escroqueria. Colocar Macron no poder para resistir à extrema-direita é colocar
no poder um neoliberalismo de extrema-direita soft para evitar o neoliberalismo
hard. É uma forma de encurralar os franceses. O segundo turno presidencial era
lamentável. Uma escolha entre Marine Le Pen e Macron não representa nada
realmente interessante para o povo. A extrema-direita tem uma dupla função na
Europa hoje: a função de representar o reaparecimento de correntes
nacionalistas reacionárias, sem futuro, porque o nacionalismo húgaro ou o
tcheco não são uma força importante.
É um neofascismo?
Sim mas o neofascismo tcheco ou húngaro na Europa de hoje não tem grande
futuro. Eles vão acabar integrando o neoliberalismo geral. A primeira função
deles é o reaparecimento de uma reação nacional porque o fato que exista essa
reação nacionalista nos setores populares e não simplesmente dos poderes
burgueses e oligárquicos está ligado à fraqueza da esquerda. Se ela tivesse
proposições firmes, verdadeiras, não haveria tantas pessoas apoiando a
extrema-direita. As pessoas se enganam ao considerar a reação nacionalista como
anti-liberal. A segunda função da extrema-direita na França é o que
vemos : “Cuidado, olhe a extrema-direita, vote Macron”. E nos apontam o
homem que é o representante direto dos grandes grupos multinacionais e do
capitalismo mundializado para resistir à extrema-direita. Tudo isso é o preço
da fraqueza orgânica das forças de esquerda.
Em que o reconhecimento pelos Estados Unidos de Jerusalém como capital
de Israel muda a resolução da ONU que em 1947, por ocasião da Partilha da
Palestina, declarou “Jerusalém como entidade à parte” (definindo um regime
internacional para Jerusalém que seria administrada pelo Conselho de tutela das
Nações Unidas) e Jerusalém-Leste como capital do Estado Palestino?
É a ilegalidade internacional total. Isso é um sinal de que na realidade
o tipo de apoio americano ao Estado de Israel se faz agora de forma direta
contra a própria existência dos palestinos. Nem mesmo Macron acompanhou os
americanos nessa medida! Isso é prova do caráter excessivo dessa declaração. O
pequeno Macron deve ter-se dito : “Não, agora você exagerou”. Ao mesmo
tempo, estou inquieto com a situação na Palestina. Tenho a impressão que o
Estado de Israel não pára de caminhar na violência e ilegalidade e se beneficia
com Trump de um apoio incondicional a tudo o que faz — é a impunidade total. Os
métodos são de uma violência considerável. O caso de Gaza é terrível. A reação
internacional é fraca demais, quase inexistente. Imagino que o governo
israelense vê que com as orientações dominantes no mundo hoje ele pode agir com
total impunidade.
E não ficaria surpreso que, aproveitando-se dessa contra-revolução
planetária ele tente, o que ele já faz, ganhar novas posições. Ele está de fato
recuperando a Cisjordânia, a parte Leste de Jerusalém, depois de ter instalado
colônias por todo lado, o que impede sequer a hipótese de um Estado Palestino.
Precisamos reconhecer que o povo palestino não tem as organizações que
mereceria. Nem o Fatah nem os outros estão à altura da situação. Estou muito
preocupado com a situação do povo palestino.
Essa aliança inédita dos Estados Unidos com a Arábia Saudita e Israel
contra o Irã é um novo dado geopolítico. O que significa?
Isso mostra que de certa forma uma das grandes dificuldades do povo
palestino foi nunca ter podido contar, desde a guerra de 1947-1948, de maneira
estável, com o apoio das nações árabes. Basta ver as condições nas quais o
Egito fez um acordo com Israel num dado momento. Vê-se hoje que a Arábia
Saudita, que financiava o movimento palestino, se entrega a uma manobra
geopolítica porque o inimigo principal é o Irã. Infelizmente, temos no Oriente
Médio uma situação de isolamento dramático do povo palestino. O que deve nos
levar a apoiá-lo tanto quanto for possível.
No pequeno livro que o senhor assina com Eric Hazan, “L’antisémitisme
partout -Aujourd’hui en France”, vocês terminam com uma afirmação sobre a
acusação de antissemitismo : “Não se pode, não devemos nos defender. A
única reação eficaz é o ataque. É preciso desmontar o sistema, mostrar de que
colina falam os acusadores, qual é o passado deles, quais suas razões
políticas, seus laços e suas cumplicidades”. Na França, não se pode criticar
Israel sem ser acusado de antissemitismo?
É preciso manter nossas posições. Eu sempre disse: “Quem me acusar de
antissemitismo levará uma bofetada”. E dei uma no Philippe Sollers. Pouco tempo
depois de ele ter dito num comitê de redação na Gallimard que, finalmente, eu
era um antissemita. Como essas coisas se sabem sempre, havia alguém lá que me
contou. Conheço-o há muito tempo e uma vez cruzei com ele nos bastidores de um
programa de TV. Ele me disse: “Bom dia, Alain, como vai ?”. Respondi: “Eu
devo a você uma bofetada uma vez que você disse que eu era antissemita.” E lhe
dei a bofetada, de leve, diante de todo mundo. Agora estamos quites.
Ele é judeu?
Não e nem é fanaticamente pró-israelense, às vezes é oportunista. E lá
devia ter audiência para ele. Foi Sollers quem publicou Éric Marty, que fez um
livro para explicar que eu era antissemita. Não devemos ceder à intimidação,
devemos dizer o que querem os que declaram que criticar Israel é ser
antissemita. Sempre critiquei muito mais violentamente a política do governo
francês que a de Israel. Por acaso sou “antifrancês”?
Emmanuel Macron ajudou os que caçam antissemitas por todo lado. Ele
disse que o antissionismo é uma nova forma de antissemitismo.
Na realidade o fato de dizer que o antissionismo é igual ao
antissemitismo é uma coisa que a ideologia dominante tenta instalar. Entre os
jovens judeus americanos há um movimento que preocupa muito Israel. Eles
protestaram contra os massacres recentes em Gaza. Existe nos Estados Unidos um
movimento de judeus antissionistas. Mas essa questão é muito complicada na
França. O movimento pró-Israel é muito forte aqui. E ficou forte porque o
principal partido da esquerda, o Partido Socialista, sempre foi muito
pró-Israel. É preciso ser firme contra a chantagem do antissemitismo. Digo
sempre que não tolerarei que me acusem de antissemitismo e que darei uma
bofetada em quem me acusar.
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