sábado, 22 de dezembro de 2018

O que a ciência já sabe sobre fé em curas espirituais


 
 Seguidores de João de Deus defendem o médium, durante um protesto em Abadiânia (GO)

Métodos usados por João de Deus têm sido chamados de truques para impressionar pacientes. Autor defende que crenças estão ligadas à produção de dopamina no cérebro

A prisão de João Teixeira de Faria, o João de Deus, no domingo (16), sob a acusação de ter cometido uma série de abusos sexuais enquanto oferecia atendimento na Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), reacendeu a discussão sobre a efetividade de seus métodos.

O médium, que nega as acusações, prometia aos pacientes a cura de doenças graves por meio de cirurgias espirituais.

Muitas delas eram feitas com facas e outros instrumentos cirúrgicos. As intervenções envolviam cortes e, por isso, o ambiente onde elas eram realizadas exigiria, por lei, alvará sanitário, emitido pela Vigilância Sanitária, por causa do risco de contaminação. Mas o local não tinha o documento e nunca foi fiscalizado devido a uma falha na legislação, que não obriga a vistoria em casas de cura espiritual.

Internacionalmente famoso, João de Deus já foi entrevistado, em 2012, pela apresentadora de TV dos Estados Unidos Oprah Winfrey e atendeu políticos e personalidades, como os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, o atual presidente, Michel Temer, a apresentadora Xuxa Meneghel e o ex-jogador de futebol Ronaldo Nazário.

A atividade do médium não era chancelada pela Federação Espírita Brasileira, com a qual ele não tinha vínculo. De acordo com a entidade, o serviço espiritual não deve ocorrer isoladamente, apenas com a presença do médium e da pessoa assistida, e jamais deve ser confundido com a atuação da medicina. “Trata-se de atendimento espiritual, auxílio, consolo, esclarecimento e orientação para que o indivíduo conquiste o equilíbrio e seja feliz”, afirmou a federação ao jornal Folha de S.Paulo.

Os métodos de João de Deus têm sido questionados há mais de uma década por pessoas que, do ponto de vista da ciência, duvidam de sua eficácia.

As cirurgias espirituais

Conhecido nos Estados Unidos por investigar casos sobrenaturais e desmascarar charlatões, o mágico James Randi foi chamado em 2005 pela rede TV americana ABC para comentar o trabalho do médium brasileiro. Ele analisou vídeos e depoimentos de pessoas que diziam ter passado pelo tratamento espiritual em Abadiânia.

Segundo ele, João de Deus usa truques conhecidos de mágicos para impressionar os pacientes, como introduzir um fórceps (espécie de pinça) no nariz das pessoas, por um canal que acessa o fundo da garganta. Mágicos costumam colocar pregos ali em suas apresentações.

“Lembre-se, essas pessoas foram lá por causa desse tipo bizarro de tratamento. Se tivessem de admitir, ‘Não, eu não fui ajudado por isso, eu fui ludibriado’, eles teriam de dizer: ‘Eu fui tonto de ter ido lá e pensado que enfiar algo dentro do meu nariz fosse curar minhas costas’”, disse no programa.

O médium também raspava os olhos dos pacientes com uma faca. Segundo o mágico, a esclera, que é a parte branca do olho, é relativamente insensível ao toque, ao contrário da córnea. Devido à ausência de nervos no local, o truque não causa ferimentos. Ele próprio já testou em si mesmo a raspagem.

Instintivamente, as pessoas também evitam olhar para cenas em que o globo ocular é tocado, por aflição. Por isso, nem sempre se pode provar que João de Deus fez alguma intervenção nos olhos no paciente, afirma Randi.

Para explicar a falta de dor nas operações, o mágico diz que, durante o tratamento, os pacientes são tomados pela adrenalina, o que os faz esquecer momentaneamente da dor. Isso acontecia também quando João de Deus fazia cortes superficiais na pele dos pacientes, com facas.

“Quando investiguei vítimas de curandeiros espirituais, apesar de todos alegarem que foram curados, constatei que eles se enquadravam em três tipos de classe: aqueles que nunca tiveram a doença que diziam ter, aqueles que continuavam doentes e aqueles que morreram da doença após eu os ter entrevistado. Foram 104 pessoas”, disse neste depoimento.

Para Randi, é impossível que João de Deus tenha curado 15 milhões de pessoas em 35 anos de atuação, como o médium alega. “Trabalhando oito horas por dia, sem pausa para o almoço, seis dias por semana, por 35 anos, e sem férias, ele teria que ter curado uma pessoa a cada 21 segundos, sem tempo livre e sem falhar. Você realmente acredita nisso?”, questiona.

Efeito placebo

Em 2006, João de Deus fez uma viagem a Atlanta, nos Estados Unidos, para demonstrar sua técnica. Pesquisador de um comitê de céticos americano, Joe Nickell foi contratado pela National Geographic Television para ir até o local conhecer os métodos do brasileiro. Segundo ele, o médium evitou fazer suas cirurgias no evento.

Nickell chama, neste texto, o procedimento no nariz de um “velho truque de circo”. “Ocasionalmente sangra o nariz, mas o próprio mecanismo de cura do corpo irá reparar o pequeno ferimento. O ponto principal é que os procedimentos são pseudocirurgias que não têm outro benefício médico além do bem conhecido efeito placebo”, afirma.

Ele também levou a água benta distribuída pelo médium a um laboratório em Washington, que constatou que se tratava de um líquido comum sem nenhuma substância especial.

O médium receita aos pacientes, como tratamento para as doenças, a passiflora, um calmante natural produzido por seu grupo e comercializado na casa onde atendia. Apesar de ser indicada por ele para vários problemas de saúde, Joe Nickell diz que a substância serve como um sedativo e contesta sua capacidade de cura. “Médicos dizem que ela conforta o sistema nervoso e produz sonos tranquilos”, diz.

Sobre as possíveis curas alegadas pelos pacientes, Nickell diz que elas podem ter sido causadas por vários fatores como diagnósticos incorretos, remissão espontânea, condições psicossomáticas, tratamento médico prévio e o poder de cura do corpo, entre outros.

As crenças

Psicólogo e historiador da ciência, o americano Michael Shermer defende, em seu livro “Cérebro e Crença”, de 2011, que nossos cérebros são máquinas de produzir crenças e que buscamos posteriormente evidências para confirmá-las. Esse efeito está relacionado à dopamina, uma substância química transmissora fundamental para a comunicação dos neurônios e músculos e para o aprendizado por associação.

A dopamina gera sensação de prazer assim que um objetivo é alcançado, o que faz o organismo querer repetir a ação. Mas, segundo ele, existe uma desvantagem na dopamina, que é a dependência dela. “Ela reforça comportamentos, crenças e a padronicidade, e é portanto uma das primordiais drogas da crença”, escreve.

Para ele, as crenças surgem “rápida e naturalmente”, “enquanto o ceticismo é lento e inatural, e a maioria das pessoas tem baixa tolerância à ambiguidade”. Quando a ciência diz que uma afirmação não é verdadeira, por exemplo, ela contraria a tendência natural que as pessoas têm de aceitar aquilo que podem compreender rapidamente.

“No entanto, a maioria das instituições sociais – notavelmente no campo da religião, da política e da economia – recompensa a crença em doutrinas de fé ou de ideologia, pune aqueles que desafiam a autoridade dos líderes e desencoraja a incerteza e, principalmente, o ceticismo”, escreve.

Devido à essa tendência que temos em confirmar nossas crenças e ao mecanismo da dopamina, procuramos e encontramos evidências que reafirmem o que já acreditamos. Ao mesmo tempo, ignoramos ou reinterpretamos evidências que neguem nossas crenças.

“Quanto mais tempo mantemos uma crença, mais investimos nela; quanto mais nos comprometemos publicamente com ela, mais lhe atribuímos valor e menor probabilidade temos de abrir mão dela”, afirma Shermer.

O Nexo conversou com o professor Frederico Leão, coordenador do Programa de Saúde e Espiritualidade do IPq (Instituto de Psiquiatria), da USP, sobre como a ciência encara a cura espiritual.

Como a ciência vê as iniciativas de cura espiritual?
FREDERICO LEÃO Falar em como a ciência vê a cura espiritual é uma questão bastante abrangente, porque ciência tem a ver com método científico, com medir, pesar e fazer cálculo. Isso é uma ciência mais quantitativa. Tem também uma ciência mais qualitativa que tenta compreender melhor os fenômenos, mas não é tão valorizada como a outra. A ciência tem um método de observar as coisas. Quando se está lidando com os fenômenos espirituais, há algumas barreiras bem difíceis. Temos assistido recentemente a um crescimento do interesse da comunidade científica de olhar para essas questões. Tem havido mais pesquisas para tentar entender o que acontece com essa dimensão religiosa, espiritual, com os valores, as experiências místicas. Tudo isso a ciência tenta colocar no escrutínio do método científico e ver como tem afetado as pessoas.

As pesquisas que estão sendo feitas têm mostrado que as pessoas valorizam a conexão do que elas acreditam, a sua fé, com seu sofrimento. Tanto no sentido de significar 
aquele sofrimento como lidar com ele.

A grande questão é que as pessoas sofrem e têm crenças e estão inseridas numa cultura religiosa e espiritual, principalmente aqui nas Américas. No Brasil, as pessoas nascem e crescem inseridas nessa cultura. As pesquisas que estão sendo feitas têm mostrado que as pessoas valorizam a conexão do que elas acreditam, a sua fé, com seu sofrimento. Tanto no sentido de significar aquele sofrimento como lidar com ele.

A ciência também tem avançado com vacinas, antibióticos, procedimentos, medicamentos, que ajudam a aliviar o sofrimento. Aí temos um problema. O avanço da ciência implica custos que não estão ao alcance da população, mas a maioria da população está ao alcance das crenças religiosas, das coisas espirituais. Aí já tem um “gap”.

A maior parte da população, no mundo, primeiramente procura as curas espirituais e acaba procurando uma ajuda científica e médica quando aquela cura espiritual não resolve. E mesmo quando busca uma ajuda, às vezes busca as duas coisas. Dado que a ciência produz ações médicas muito caras que não alcançam toda a população, em vez de ficar só desqualificando, como foi feito numa certa época, é melhor buscar parcerias. A OMS [Organização Mundial da Saúde] está com essa perspectiva, assim como o governo brasileiro. Os governos começam a olhar para determinadas práticas, como a medicina tradicional chinesa, a acupuntura, a medicina ayurvédica, a hindu, as práticas cristãs, a meditação, entre outras.

Mas essas práticas que o senhor citou não têm benefícios comprovados, ao contrário das curas espirituais?
FREDERICO LEÃO Essas práticas são milenares. Algumas são mais recentes, mas as principais vêm de longa tradição, e as pessoas que as executam não estavam sob esse treinamento, sob essa escrutínio científico. 

Não existe um método para verificar que a acupuntura é melhor do que 
tomar um passe. Depende da sensibilidade da metodologia

Como você vai avaliar a eficácia de uma prática ou de outra, do ponto de vista científico, que é um processo de construção? Não existe um método para verificar que a acupuntura é melhor do que tomar um passe. Depende da sensibilidade da metodologia. É muito difícil.

A ciência tem mostrado que as pessoas têm crenças e que, para algumas pessoas movidas por crenças, algumas práticas trazem benefícios. Você hierarquizar e dizer que essa aqui está autorizada, essa aqui não, não há sustentação científica para isso ainda. Existem trabalhos científicos que mostram o benefícios da acupuntura, da homeopatia, da meditação, da oração, da fé. Aí tem que fazer uma contraposição com o efeito placebo, que é o efeito causado no indivíduo por ele acreditar naquilo. Você dá um substância, fala que é um analgésico, ele está com dor, mas dá água com açúcar. Se ele acreditar que é um analgésico potente, pode aliviar a dor.

A cura espiritual se aproxima desse efeito?
FREDERICO LEÃO Você não pode dizer que toda cura espiritual é um efeito placebo, que atinge em torno de 25% dos grupos estudados. As práticas espirituais atingem níveis maiores que esse. Não se pode falar que é só efeito placebo. Tem o efeito da fé? Tem o efeito da fé. Mas tem indivíduos que não acreditam em nada, que são agnósticos, ateus, mas numa situação de sofrimento, de desespero, são levados para uma prática e, a partir daquele momento, acontece uma transformação na vida do sujeito.

Não se pode nem falar que é só a fé. Ela traria alguma predisposição, ela ajuda, mas também dizer que tem que ter fé pra receber um benefício não dá.

A ciência não tem verdades absolutas, diferente das religiões que falam em verdades absolutas. Ela é uma grande construção. Por exemplo: comer um ovo. Tem hora que é bom, que é ruim, tem hora que pode a clara, mas não a gema. Se você vai mudando a metodologia, vai encontrando diferentes resultados científicos.

Então, qual é a opinião da ciência [sobre a cura espiritual]? Se for verdadeira, é um fenômeno que precisa ser mais estudado, mais investigado, que traz benefícios que a ciência ainda não alcança, mas está interessada em investigar.

A OMS, por buscar essas parcerias para alcançar essa população que não tem acesso à medicina tradicional e cara, busca parceria com curandeiros, com pessoas que defendem determinadas práticas, mas aí começa a ser um problema. Ela orientou os governos a utilizar essas práticas, aí governos, como o brasileiro, instituíram algumas práticas no SUS [Sistema Único de Saúde], que hoje tem 29 terapias integrativas e complementares, como o reiki, a acupuntura, o tai chi chuan, a dança de roda. A grande questão é: você pode gastar dinheiro público com uma prática que você ainda não tem comprovação científica, embora tenha evidência científica e cultural que traz benefícios?

Mas não é melhor o governo ter um controle do que deixar ser aplicada de qualquer forma e trazer riscos? 
FREDERICO LEÃO O problema é como fazer o controle, como avaliar o grau de desenvolvimento daquela pessoas naquela prática. Quando a pessoa faz um curso de medicina, de fisioterapia, de nutrição, há um treinamento do aluno, ele faz uma prova, é colocado numa prática e tem como avaliar se ele foi treinado adequadamente.

Como avaliar um indivíduo que entra num estado de transe e, a partir daquele estado, promove transformações físicas e emocionais em outro indivíduo? Você não tem técnica para isso. A gente está tateando isso.

Antes era fácil dizer que isso era coisa de primitivo, de gente atrasada, que o correto é tomar remédio, mas existe uma camada enorme da população que não tem acesso a remédios e procedimentos. Por isso que, hoje, a gente precisa de parcerias para ir avaliando. Dá pra usar no SUS, contratar, usar dinheiro público? Quais são as evidências para provar que traz benefícios e não é uma fraude?

A ciência não consegue descartar, de pronto, que uma prática não funciona? 
FREDERICO LEÃO Ela não tem esse poder. Usei o exemplo do ovo. Você não pode dizer, com certeza definitiva, que ele faz mal ou bem pra saúde. Só pode dizer que, sobre comer ovo, hoje, tem mais trabalho mostrando que tem benefícios, mas que existe trabalho apontando que tem malefício. O que existe é uma coleção de experimentos de que aquilo é bom ou ruim. É um processo em construção que tem a ver com quantidade e qualidade de pesquisas científicas, por que hoje em dia a gente valoriza o que a gente chama de estudo sistemático, para levantar um banco de dados. Aquela comunidade científica está apontando para qual direção?

Há um interesse maior, desde a década de 1980, um interesse em buscar evidências científicas para saber se essas práticas [espirituais] trazem benefícios ou malefícios. Há muito trabalho apontando as duas, mas a maioria mostra que traz benefícios. A maior parte traz mais benefícios que malefícios.

Mas os benefícios são diretos? Uma pessoa com um câncer que busca uma cura espiritual pode ter outro benefício que não a cura da doença?
FREDERICO LEÃO É isso mesmo. Existem os benefícios primários, diretos, e os secundários. A pessoa, ao ser exposta ao tratamento, e isso acontece com os procedimentos médicos também, tem um tumor, vai fazer ou cirurgia, ou quimioterapia, ou radioterapia, isso pode resolver o problema ou apenas atenuá-lo. A gente fala em cuidados paliativos quando a medicina não consegue mais resolver e diz: “Vamos transformar a vida dessa pessoa na melhor possível, uma vez que não temos o controle sobre esse câncer”.

Existem alguns casos de pessoas que relatam que se curaram. Se não se curaram, tiveram uma capacidade melhor de enfrentar aquele sofrimento, que viveram com mais coragem. A pessoa tem uma fé, um sofrimento, busca ajuda espiritual e aquilo dá certo. Aí tem uma compreensão que foi ajudada por Deus. Mas às vezes não dá certo, e ela aceita que não deu certo porque fazia parte da missão de vida dela, que ela tem que se transformar, compreender melhor. Às vezes não aceita, acha que Deus não existe ou, se existe, não tem poder de curar, não se interessa por ela, não vai se interessar. Esse é o lado negativo.

A ciência tem se interessado por isso mais por motivos práticos, porque essas práticas existem na sociedade, e é preciso compreender melhor para separar as boas das más práticas.
Mas o que faz as pessoas acreditarem que vai dar certo um método não comprovado cientificamente?
FREDERICO LEÃO Existem várias explicações que não explicam cientificamente isso. São hipóteses culturais, que são inseridas naquela cultura. A pessoa cresce com esse tipo de treinamento, já faz naturalmente essa conexão.

Outra explicação é que existe um lugar no cérebro que é ativado. Pessoas estimulando determinadas áreas cerebrais começam a ter experiências místicas.

Tem a ver com a dopamina?
FREDERICO LEÃO A dopamina é um neurotransmissor. Tem a ver com cognição, com humor. Essa substância tem no cérebro. Quando fazemos uma avaliação crítica, um raciocínio da realidade, a dopamina está pressionando. Quando existe alteração nesses receptores, há alucinações, interpretações equivocadas da realidade, tudo isso tem a ver.

Estudos têm mostrado que existe diferença entre pacientes psicóticos alucinados e delirando e uma pessoa que tem a mente estruturada, mas, dentro de um contexto sociorreligioso, entra num estado de transe. Não dá pra reduzir ao efeito da dopamina.
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Reportagem Por Estêvão Bertoni 19 Dez 2018   
Foto: Adriano Machado/Reuters

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