FHC diz que eleição explodiu o sistema, afirma que “fascismo” e “comunismo” são apenas fantasmas e que partido sem conexão com a sociedade estará liquidado
30 nov 2018
Prestes a terminar o quarto volume de suas
memórias do período em que ocupou a Presidência da República
(1995-2002), Fernando Henrique Cardoso, de 87 anos, acredita que o
momento político do Brasil requer “paciência histórica”. Diz que o país
vive um período de transição, com o fim de um ciclo iniciado na
Constituição de 1988, em que os partidos criados falharam em representar
os anseios da sociedade. FHC afirma ser exagero ligar o governo
Bolsonaro a um movimento “fascista”, apesar da migração das forças
políticas para a direita. O tucano prega a construção de um “centro
radical” para se opor a medidas extremas e declara que, se o PSDB não
ocupar esse papel, ele não vê razões para continuar no partido.
“Se o
PSDB virar uma sublegenda do governo,
qualquer governo, estou fora.”
O senhor tentou, no período eleitoral, criar uma força democrática de centro, e não deu certo. O que aconteceu?
Não houve interesse do eleitor em escolher o centro porque ele achou
melhor botar ordem na casa. Quem simbolizou segurança, ordem e combate à
corrupção ganhou. Não houve discussão econômica.
Como ocorreu essa tentativa de costurar uma frente?
Estou mais fora da política do que as pessoas pensam. Mas eu acho o
seguinte: quando há uma polarização como houve no Brasil, o medo
prevalece acima de tudo. A razão perde sentido prático. As pessoas que
querem ser razoáveis, como é meu caso, ficam sem espaço. Uns dizem “Eu
sou o bem e quero extirpar o mal”. E, quando você diz “Cuidado, o bem e o
mal são relativos, é preciso conviver”, você fala sozinho.
Mas o senhor chegou a fazer um movimento concreto nesse sentido?
Eu falei com algumas pessoas, fiz uma ou outra reunião. Mas não estou
no cotidiano do partido e acho também que não tinha mais espaço. A
polarização não depende de você querer. Ela acontece. Quando a população
descobriu as bases podres do poder, ficou contra o poder e quem o
simboliza. Acho um absurdo que alguns tenham sido derrotados, gente
séria, competente. Mas é assim que funciona. Política não é uma escolha
de quem é mais competente, quem é melhor. É de quem, naquele momento,
bate com o sentimento do eleitor.
Como chegamos a esse estado de coisas? Nossa visão
do mundo político nasceu no século XIX e se consolidou no XX. Havia as
classes, não necessariamente opostas umas às outras, e os partidos, que
representavam uma ideologia pertinente aos interesses e valores dessas
camadas. O mundo atual rompeu isso porque a mobilidade social aumentou, a
coesão entre esses grupos diminuiu e há fluxos de dinheiro e
comunicação muito grandes. O primeiro sociólogo que viu esse movimento
chama-se Manuel Castells, meu colega em 1968 em Nanterre (na
Universidade Paris X, na França, onde FHC lecionou) e meu amigo até
hoje. A Sociedade em Rede, livro que Castells lançou em 1996,
é, no fundo, isso. Estamos em um momento de transição, e a nova
sociedade é dos que estão conectados. Essa conexão salta estruturas e
até instituições nacionais.
“Os dois lados estão inventando fantasmas. Um vê
fascismo, o outro acha que o comunismo está à porta. Há uma guerra de
narrativas. E narrativas em que não entra o povo”
O Brasil vive um momento de desmonte das estruturas, ou, como o senhor diz em seu último livro, “uma nova era”?
Sociologicamente, eu diria que, nestas eleições, “a história se
manifestou estourando tudo de maneira cega”. Há momentos em que há
explosões, e aqui houve uma explosão limitada, mas foi uma explosão do
sistema anterior. Então, há um processo geral que permeia todas as
sociedades que estão conectadas. É preciso agregar a tremenda corrupção
que houve ao horror que ela produziu. O povo se assustou e disse
“basta!”.
Houve uma “direitização” do Brasil? No espectro
direita-esquerda, é claro que estas eleições foram mais para a direita.
Antes, os partidos polares eram o PT e o PSDB, e quem fazia o meio de
campo era o PMDB, que era o partido de Estado, das estruturas políticas.
Na verdade, PT-PSDB foi uma polarização forçada. O PT dizia que a
direita era o PSDB. Agora viu que não é. A sociedade mudou muito, e
aqueles que se supunham progressistas não foram capazes de simbolizar
algo que o povo aceitasse. Isso quer dizer que o país é conservador?
Pode ser. A tendência dos países em geral é se conservar. Todo mundo
fala em mudança, em evolução, mas as pessoas têm medo de mudar. Aqui,
vão conservar o quê? Não está claro, porque o governo não existe ainda.
A campanha eleitoral foi amparada em valores mais conservadores, como Igreja, família.
Nesse aspecto, seria um conservadorismo que eu diria que a maioria dos
brasileiros aceita. Mas a verdade é que o mundo contemporâneo tem muita
diversidade. O que se entendia como família era marido, mulher e filhos.
Os líderes hoje — não é o meu caso — têm ou tiveram várias mulheres.
Como compatibilizar isso com um valor tradicional? Não sei. Porque a
realidade mudou, a diversidade passou a ser parte da vida. Como impedir a
diversidade? Pode falar que vai, mas, na hora de fazer, não é tão
simples.
O Brasil nunca foi território de êxito para posições
fanáticas. Considerando-se o acirramento dos ânimos nas eleições, o
senhor acha que esse traço da sociedade brasileira pode se transformar
em fascismo diluído? Não. Olha, os dois lados estão inventando
fantasmas. Um vê fascismo, o outro acha que o comunismo está à porta.
Isso era na época da Guerra Fria, quando o comunismo existia, havia a
União Soviética. Onde está isso hoje? Na China? A China está vendendo,
comprando, utilizando os instrumentos de mercado para tomar conta do
mundo. Na Coreia? A Coreia do Norte é força que imanta alguém? Não. E o
fascismo? O fascismo era uma organização que tinha um pensamento, uma
concepção corporativa e que se opunha ao comunismo. Então, o que se vê
frequentemente são duas imagens do passado. Há uma guerra de narrativas.
E narrativas em que não entra o povo, que não está em uma nem em outra.
O povo quer trabalho, proteção contra a violência, essas coisas mais
normais.
Seria, então, um movimento cíclico de alternância de poder?
De certa forma, porque Jair Bolsonaro representou o encerramento de um
ciclo. Talvez o que tenha terminado agora seja o ciclo que inauguramos
na Constituição de 1988, quando tivemos uma visão de pluralidade
partidária mas acabamos não criando partidos, e sim corporações de
interesses de grupos, de pessoas. Mas isso quer dizer que o novo ciclo
vai ser permanentemente como ele é hoje? Não. O importante é entender
que o momento que vivemos não tem nada a ver com o que ocorreu em 1964. É
outro momento. As Forças Armadas não estão pressionando pelo
autoritarismo.
“O PSDB ganha quando ele não é ideológico, quando tem
pragmatismo com valores. Será que o PSDB vai ser capaz de se reorganizar
de forma mais equilibrada?
Se não for, estou fora”
Há declarações de generais sugerindo temor de politização dos quartéis.
Mas eles tentam controlar também. E nem sei se vai haver, porque, na
verdade, depende um pouco do que o governo faça e de como a sociedade
reaja ao que ele fizer. Não há uma teorização de que chegou a hora de
quebrar o Estado e fazer outro.
O senhor vê alguma tendência de autoritarismo, como ocorre na Hungria?
Creio que não. O que não quer dizer que eu não tenha preocupação.
Acredito que democracia não é dada para sempre, é preciso que ela esteja
ativa. Mas nós vivemos uma situação em que, primeiro, eu não votei em
quem ganhou, e quem ganhou, ganhou eleitoralmente. Não tem golpe aí.
Segundo, a imprensa continua existindo como ela é. Com sua natureza
crítica. Em uma sociedade aberta, a imprensa só sobrevive criticando.
Diante das mudanças de estruturas, que papel deverá ter a oposição no novo governo?
Há espaço para o PT? Primeiro, temos de ver o que sobra nesses
escombros. Não creio que o PT vá sumir, porque ele expressa setores da
sociedade. É preciso que todos os partidos que quiserem sobreviver
entendam que o resultado eleitoral é consequência de atos também deles.
Essa repulsa é porque os partidos não funcionaram. Mas, mais que uma
oposição, é necessário o fortalecimento do que eu chamo de “centro
radical”.
O que seria um “centro radical”? Um centro que não
seja amorfo, mas que tenha posições, e que elas não sejam extremadas. E
mais: não adianta juntar apenas deputados. Ou tem a sociedade no meio —
líderes empresariais, sindicais, religiosos e universitários — ou não
existe. Se for mantida a separação entre política e sociedade, a rede
vai acabar ligando a sociedade e a política ficará de fora.
Como fazer essa ligação em meio a tanta frustração com a política?
Esses movimentos que apareceram nestas eleições, o Agora, o RenovaBR, o
Acredito, são muito importantes, porque é uma nova geração que surge. E
chegou o momento em que a geração que estava no mando precisa passar o
bastão — não a geração à qual eu pertenço, que já está há muito tempo
fora. Mas isso não é uma decisão pessoal, é preciso que a geração
seguinte queira pegar o bastão, que tenha energia para isso. Mas tem de
dar um pouco de tempo ao tempo. Não se muda de repente tudo. Tem de ter o
que eu chamei, num artigo que escrevi, de paciência histórica. Sei que é
fácil dizer isso para quem não está no jogo. Mas é necessário.
O PSDB não sabe se ficará no governo ou se será oposição. O senhor antevê um racha e a criação de uma nova legenda?
É possível, mas não é conveniente. Se o PSDB cometer o erro de ser uma
sublegenda do governo, acabou. É mais um. Se ele fizer, pelo lado
contrário, oposição sistemática estilo PT, também acabou. Ou ele atua
realmente como centro radical, na forma como eu defini, ou ele não tem
mais sentido. Acho que o PSDB ganha quando ele não é ideológico, quando
ele tem pragmatismo com valores, não o pragmatismo do oportunismo
clientelístico. Mas neste momento isso não é aceito, porque o pessoal
não está equilibrado. Será que o PSDB vai ser capaz de se reorganizar de
uma forma mais equilibrada? Se ele não for, eu estou fora.
O senhor sairá do partido se houver adesão ao governo? Se o PSDB virar uma sublegenda do governo, qualquer governo, estou fora.
O senhor se desfiliará? Por enquanto não, por
enquanto estou fora da posição, mas vamos ver, não sei qual vai ser a
dinâmica no PSDB. Perdemos a eleição por erros também nossos. Temos de
ser capazes de fazer autocrítica. Sobreviver porque vai ter um
carguinho, sobrevive-se, mas com migalhas. Não com voto da maioria, não
com o coração nem com a mente da maioria. Ah, para que vou me meter
nisso a esta altura da vida?
Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611
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Fonte: https://veja.abril.com.br/politica/o-centro-radical/ Acesso 05/12/2018
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