O estudo que venceu o Prémio Ciência 2018 do
Conselho de Prevenção da Corrupção parece ficção científica, mas o
perigo existe e já é real. Carla e Miguel Pais-Vieira querem ajudar o
legislador a prevenir riscos de uma tecnologia que vai crescer muito nos
próximos anos.
Já ouviu falar de interfaces cérebro-máquina?
Se não ouviu, fique a saber que este tipo de engenho, que pode ser
usado dentro ou fora do seu corpo, é já hoje a solução para muitos
problemas de saúde, como situações relacionadas com a doença de
Parkinson ou deficiências motoras graves. Nesta matéria, o futuro já
começou: eles são uma realidade em grande expansão que em breve terá
tantas outras aplicações quantas permitam a ciência, a imaginação e o
mercado. Mas, como em tudo, existem riscos associados – e não são
pequenos. Se não forem rodeados de muitos cuidados, eles podem “roubar”
informação do seu cérebro e manipular os seus comportamentos.
Podem, por exemplo, fazer de si um corrupto – e foi por causa disso
que dois investigadores, o casal Carla e Miguel Pais-Vieira, do Centro
de Investigação Interdisciplinar em Saúde da Universidade Católica
Portuguesa, desenvolveram um trabalho para informar o legislador desses
riscos e dar-lhe ferramentas para poder legislar atempada e eficazmente.
E com ele venceram a 1.ª edição do Prémio Ciência do Conselho de
Prevenção da Corrupção (CPC), que vão receber na quarta-feira, durante a
conferência Integridade na Gestão Pública, que se realiza na Fundação
Champalimaud para assinalar os dez anos daquela estrutura do Tribunal de
Contas.
Parece ficção científica, mas não é. Actualmente, os interfaces cérebro-máquina são utilizados para corrigir problemas clínicos de mobilidade, de visão e de comunicação.
Há pessoas que, tendo perdido, por exemplo, a capacidade de movimentar
um braço ou uma perna, ou tendo perdido um membro que acabou por ser
substituído por uma prótese, receberam um destes engenhos para permitir
que a informação dada pelo cérebro chegue aos terminais danificados.
Doentes de Parkinson têm também visto a sua qualidade de vida melhorar
consideravelmente através da estimulação cerebral profunda através deste
tipo de interfaces.
No entanto, é precisamente nestes últimos casos que se têm verificado
alterações já bem documentadas que vão do riso e alterações de humor à
depressão, crises de hipomania, episódios psicóticos e ideias suicidas.
Alterações que não acontecem apenas no período pós-cirúrgico, mas que em
alguns casos se mantêm ao longo do tempo.
“Estas novas tecnologias associadas à manipulação e utilização de
dados com origem na actividade cerebral - as interfaces cérebro-máquina –
apresentam um potencial de negócio de 1,24 mil milhões de euros até
2020”, escrevem os autores no resumo do trabalho. O benefício destes
engenhos é tão grande que há muitos grupos de investigação e
multinacionais a investir neste sector. “Empresários como Elon Musk e
Mark Zuckerberg têm já departamentos/companhias grandes dedicados aos
interfaces cérebro-máquina”, afirma ao PÚBLICO Miguel Pais-Vieira.
No entanto, estes interfaces são particularmente susceptíveis à intrusão ("hacking")
por terceiros: “Estas intrusões, a possibilidade de vantagem indevida, e
os abusos de poder daí decorrentes, podem ocorrer através da extracção
de dados relevantes ou através da manipulação de zonas cerebrais que
levem os utilizadores a realizar tarefas sem o seu conhecimento ou
consentimento”, escrevem os autores. Sim, o cérebro pode ser pirateado
como qualquer outro dispositivo informático.
Precisamente porque trabalham no estudo do cérebro e no
desenvolvimento de interfaces cérebro-máquina e têm consciência destes
riscos, Miguel e Carla Pais Vieira quiseram chamar a atenção das
entidades responsáveis e propor algum tipo de terapia preventiva – não
ao nível tecnológico, porque a tecnologia é o que o homem faz dela, mas
ao nível legal. “Consideramos que é da nossa responsabilidade discutir
as implicações éticas dos resultados e avanços que produzimos, em larga
medida, com o financiamento público”, e contribuir para “estabelecer de
linhas gerais de orientação para a elaboração de um adequado
enquadramento legal”.
É disso que trata o trabalho premiado pelo
CPC: fornece ao legislador a informação relativa a riscos concretos
desta tecnologia e soluções legais para os prevenir. Desde logo,
defende-se que “a comercialização de toda e qualquer interface
cérebro-máquina deverá ser regulamentada e sujeita a um processo de
legalização e aprovação prévia”, com “pareceres de uma equipa clínica e
uma equipa de ciências da computação acerca da segurança clínica (por
exemplo, interacções com fármacos ou outras terapias) e segurança
informática dos algoritmos, processamento e meios envolvidos”. Para que
não aconteça como aconteceu com a Internet e as redes sociais, com o
legislador a correr atrás do prejuízo.
-------Reportagem Por
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