Juremir Machado da Silva*
Você só quer ser feliz. É tudo.
Tem bons argumentos: não pediu para nascer, não escolheu onde vir à
luz e não se queixa do destino. Mas, já que está aqui, considera ter
direito à felicidade. O que pode fazer? O francês Jean de La Bruyère
(1645-1696) foi um homem de estilo e de teses. Escrevia bem, com ritmo,
para ser lido em voz alta. Emplacou um clássico: “Personagens ou
costumes do século”. Ele sabia dar respostas a questões complexas como
esta: o que é a felicidade? Só que se permitia fazer isso exigindo a
interpretação de cada leitor. Nunca se aprende tão bem como quando se
aprende usando a inteligência.
La Bruyère podia ir direto ao ponto ou indicar o caminho para
responder a pergunta assim: quem pode ser feliz? A vida dele foi
resumida em poucos caracteres apesar de não ter sido monótona: nasceu em
1639, foi preceptor de um príncipe (Louis III de Bourbon-Condé),
publicou seu livro em 1689, entrou para a Academia Francesa em 1693,
morreu de apoplexia em 1696. Eis tudo o que Jean-Baptiste Antoine Suard,
que também seria acadêmico, encontrou para dizer de essencial sobre o
grande satirista. Foi feliz? Parece. Entre livros e amigos. Feliz apesar
dos inimigos feitos por sua pena venenosa e precisa como um dardo
disparado por certos nativos de florestas indevassáveis.
A felicidade para La Bruyère era acima de tudo a capacidade de
adaptar-se às oportunidades oferecidas pela vida. O problema está em se
alcançar a necessária grandeza ou o desprendimento fundamental: “Quem
afirma que não é feliz, poderia sê-lo com a felicidade do próximo, se a
inveja lhe não tirasse esse último recurso”. Ele procurou se adaptar,
depois de um roubo que lhe deixou sem recursos, à atividade de preceptor
de um adolescente de 16 anos, epilético e pouco interessado em estudar.
O jovem foi convenientemente casado com uma menina de 11 anos, a
senhorita de Nantes, filha bastarda de Luís XIV. Coube ao preceptor
completar a educação dos dois. Uma tarefa enorme.
La Bruyère tinha ideias claras sobre a escuridão vida: “Para o homem,
há apenas três acontecimentos: nascer, viver e morrer. Ele não sente o
nascer, sofre ao morrer e esquece-se de viver”. Um olhar penetrante
sobre as nossas contradições mais duradouras: “Há uma certa vergonha em
sermos felizes perante certas misérias”. Uma leitura certeira da
psicologia social individualizada: “A maioria dos homens emprega a
melhor parte de sua vida a tornar o outro miserável”. Parece pouco? É
muito. Revela o que quase todos ainda somos: concorrentes. A experiência
na corte deu-lhe as ocasiões de observar homens e mulheres em ação na
constante luta por poder, glória, amor, sexo e atenção.
O educador precisava dizer aos seus dois alunos nobres o que pensar
sobre a vida. A primeira lição talvez pudesse ser resumida assim:
dominar a inveja, valorizar as qualidades alheias, alegrar-se com
alegria dos outros. Princípios difíceis de cultivar num ambiente de
extrema competição. La Bruyère investiu 24 anos da sua existência para
escrever as 1.120 observações ou máximas que compõem a sua obra,
apresentada como continuação ao trabalho de Teofrasto, aluno de
Aristóteles. O leitor pode se afastar desta conversa imaginando que se
trata de assunto para poucos. Nada disso. O homem era apegado a
tradições e princípios morais. Queria colocar o dedo em feridas para
ajudar a curar os espíritos de suas fraquezas, hesitações e erros.
Prazer e formação – Há atualidade na sua pedagogia:
educar pelo prazer. Ele escreveu sobre mérito pessoal, mulheres,
coração, a vida em sociedade e a importância de saber conversar, moda,
comportamento, a corte, etiqueta, capacidade de julgar, costumes,
espíritos fortes e outros assuntos desse tipo. Ser feliz não lhe parece
difícil. Basta ser decidido e ter mérito pessoal. O método de La Bruyère
é de choque. Ele provoca: “Quem poderá, com os mais raros talentos e
mais excelente mérito, deixar de se convencer da própria inutilidade
quando verifica que deixa, ao morrer, um mundo que não lhe sente a perda
e no qual se acha tanta gente para substituí-lo?” Visão pessimista?
Não. Realista.
Pode-se brilhar e ser feliz ou ser feliz discretamente. Modéstia em
excesso, trava conquistas. Falta de modéstia, produz fiascos. O
importante é não se tomar pelo que não se é. Alguns são; outros poderiam
ser; outros, ainda, poderiam ter sido. É preciso foco: “A maior parte
dos homens utiliza a melhor parte da vida para tornar a outra infeliz”. O
que se deve fazer? Arranjar uma boa ocupação: “Os homens deveriam
empregar os primeiros anos da vida em se tornarem tais, pelos seus
estudos e trabalhos, que a própria república precisasse da sua
inteligência e das suas luzes”. Dessa forma, seriam como “uma peça
necessária a todo o seu edifício” fazendo com que a nação se “visse na
contingência de, para sua própria vantagem, fazer-lhes a fortuna ou
aumentá-la”. Não ficou claro? Aí vai: “Devemos trabalhar para nos
tornarmos muito dignos de qualquer emprego. O resto não é conosco, é com
os outros”. Máxima não dita: torna-te necessário!
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/12/11415/la-bruyere-torna-te-necessario/
Imagem da Internet: La Bruyère
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