LUIS FERNANDO VERÍSSIMO*
Cícero era o cara. Orador brilhante,
político atuante, filósofo, poeta, republicano exemplar... Foi o
intelectual que dominou duas eras de transição, a do ocaso do mundo
pré-cristão e a da passagem do grego para o latim como língua
civilizatória. Li em algum lugar que, se não fossem as traduções que
Cícero fez do grego para a língua de Roma, a história do mundo teria
sido outra. Uma especulação "un po exaggerata", diriam em Roma.
Shakespeare botou Cícero na sua peça Júlio César, mas
como um coadjuvante que pouco aparece, embora seja muito citado. Os
conspiradores que se preparam pra assassinar César e frear sua ambição
autocrática discutem se Cícero deve ser convidado para o golpe. Afinal,
nenhum romano era mais republicano do que ele. Mas a razão para
convocá-lo não seria sua oratória inflamadora ou sua predisposição para
derrubar possíveis tiranos.
"Vamos chamá-lo porque seus cabelos prateados nos
comprarão boas opiniões e vozes que elogiarão nossos feitos", diz um dos
conspiradores. "Dirão que o julgamento dele guiou nossas mãos e que
nossa juventude e loucura não aparecerão, pois estarão enterradas na sua
gravidade." Cabelos prateados e gravidade é o que Cícero, que está
vivendo seu próprio ocaso, tem para oferecer aos conspiradores, que não o
convidam para ajudar a matar César. Mas, mesmo não participando do
golpe, Cícero não escapa da terrível vingança de Antônio, que pede para
lhe trazerem a cabeça e as mãos do poeta decepadas.
Cícero foi um exemplo do perigo de incorporar virtudes
cívicas quando todos à sua volta só querem é poder, e a emprestar seu
prestígio - ou seus cabelos brancos - a causas incertas. A redescoberta
da era clássica pela Renascença resgatou Cícero da obscuridade, mas é
outro Cícero que aparece agora, o inspirador da República das Letras,
que surgirá para compensar os horrores de um mundo em ebulição e
defender um humanismo transnacional. Infelizmente, um ideal que depende
da política como uma atividade de cavalheiros, governos de uns poucos
iluminados e todas as práticas antidemocráticas que você pode imaginar.
Esse Cícero não nos serve.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=bdad32300cee64091dd5b5e7e91d7849
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