Leandro Karnal*
A cada leitura, uma nova descoberta e uma nuance percebida de forma distinta
Há
livros que jazem em grutas cerebrais obscuras. Estão lá e mandam
mensagens da sua possibilidade de existência de quando em vez. Clamam
pela matéria impressa e querem ultrapassar a barreira para o mundo
externo. Por um mistério profundo, seu nascimento é adiado.
Meu texto sobre o Hamlet foi assim. Era algo como 1988 e, na pós-graduação da USP, fiz um trabalho sobre a Tempestade
de Shakespeare. Ao discuti-lo, pensei que eu deveria escrever sobre a
obra Hamlet. A água fluiu sob a ponte. Dei palestras, muitas, sobre o
príncipe dinamarquês. Participei de debates e fui professor em curso de
tradução e interpretação. Encenei Hamlet com alunos. Na
Unicamp, há uns 15 anos ou mais, Shakespeare foi um dos meus cursos mais
populares. Vi todos os filmes e muitas, muitas, muitas representações
teatrais. Só para registro, em festival teatral na França, vi Hamlet
em cambojano. Não captei uma sílaba do que foi falado e sabia o que
estava ocorrendo a cada cena. O príncipe pedia para sair da minha mente e
eu preferia ler mais Bloom, uma pitada de Updike e pletoras de Bárbara
Heliodora. O manto de Penélope das preliminares shakespearianas é quase
infinito. O Graal implica sacrifícios.
pressão interna aumentou. Em janeiro, sozinho em Stratford-upon-Avon,
tomei da pena (agora denominada tablet) e escrevi a primeira frase do
livro, diante do túmulo do Bardo. O primeiro dedo do príncipe cruzava o
umbral da existência. Iniciei lá o texto O Que Eu Aprendi com Hamlet.
A
ideia não era colocar uma pedra nova na colina dos bardólatras, os
amantes incondicionais do poeta. Não queria estudar um aspecto com
erudição, ainda que eu admire o conhecimento técnico sobre as
referências históricas de Shakespeare. Eu queria pensar algo direto:
como eu mudei, cresci, questionei e vivi lendo e relendo a obra máxima
do teatro elisabetano.
Minha vaidade é grande, porém não deliro
sempre. Precisei de ajuda e só poderia ter vindo de uma grande amiga
tradutora e, como eu, fascinada pela verve do dramaturgo. Valderez
Carneiro da Silva aceitou e foi fundamental. Nossas conversas
prosseguiram entre vinhos e risadas. Val resgatou Gertrudes e Ofélia de
forma original. A ideia de dividir tematicamente foi substituída por uma
divisão em cinco atos, ou seja, a própria subdivisão da peça. O novo
formato nasceu de conversas com outro amigo, Luiz Estevam de Oliveira
Fernandes, que colaborou muito para que o dinamarquês saísse um pouco
mais da penumbra.
Qual a ideia? Pegar os temas da peça e refletir
sobre como eles podem ser entendidos e até como podem fornecer uma base
para pensar a vida e o mundo. Afinal, lendo há anos e vendo a peça, o
que eu conseguira pensar sobre os monólogos, os devaneios, as
ambiguidades e até as grosserias de Hamlet? Sim, o herdeiro de
Elsinore está longe da perfeição. Escrevi no livro que ele “foge de
padrões maniqueístas tão presentes na ficção de ontem e de hoje. O vilão
típico, Cláudio, matou uma pessoa; o herói Hamlet, muitas mais”.
As
perguntas são inúmeras. Hamlet as encara frontalmente. Como tolerar os
desmandos do governo e a corrupção dos poderosos? Como conviver com a
cena da falsidade do mundo e a busca permanente de gente venal como
Polônio, Rosencrantz e Guildenstern? Como lidar com o desejo que foge do
controle como o da mãe pelo tio? Existiria equilíbrio entre dever e
vontade? É possível dialogar com os fantasmas das nossas muralhas? Quais
os parâmetros da verdadeira amizade? Qual o papel da arte e do teatro
na crônica do tempo? Como o feminino sobrevive em ambiente de
masculinidade tóxica? Afinal, a mais dramática das reflexões da obra: se
todos viraremos caveiras e alimentaremos vermes, qual o sentido do
esforço em busca das coisas? O que existe além dos valores aparentes e
possíveis que a convenção social impôs como válidos? O que é a loucura e
quando nos fingimos de loucos para viver?
Precisei imaginar um leitor ou leitora que não conhecesse Hamlet, entremeando o enredo da peça às questões que buscava responder em forma de ensaio. Para quem já leu e releu Hamlet,
no original, em traduções variadas, a estratégia não afetaria em nada,
apenas daria mais sabor ao texto. Mas para o incauto que jamais abriu um
volume de Shakespeare, meus pensamentos serviriam como um convite para
que se visitasse o original. Dessa forma, o livro que ficou pronto é um
registro de minha leitura de Hamlet e do que aprendi com ele.
De maneira a equilibrar ego e humildade, tentei manter meus aprendizados
numa órbita mais universal que apenas a do meu umbigo. Seria fácil para
mim, inútil a qualquer leitor e um desfavor à humanidade escrever uma
obra autobiográfica que fizesse Shakespeare servir de lastro para minha
finitude e pequenez.
Optei pelo inverso. O Bardo de Avon criou
uma obra clássica. Clássicos devem ser revisitados. A cada leitura, uma
nova descoberta e uma nuance percebida de forma distinta. Como afirmo no
início do livro, é possível lê-lo buscando sentidos originais, mas a
magia de uma obra que explode seu confinamento espaço-temporal reside
justamente na atualização possível e infinita das questões que ela é
capaz de nos colocar. As respostas que damos a elas caducam. Hamlet
renasce a cada leitura. Eis uma, pela editora Leya: O Que Aprendi com Hamlet – Porque o Mundo É Um Teatro. É preciso ter esperança.
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* Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em História da América.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/colunas/leandro-karnal 06/12/2018
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