Juremir Machado da Silva*
O fabuloso
Foi assim que Zé Filonomeno voltou a Palomas.
Numa tarde de agosto. Chovia muito. Ventava como nunca. Ele vinha com um
plano costurado ao longo dos últimos anos. Descarregou sua tralha na
casa velha. Encheu três peças e um galpão com livros. Gastaria seis
meses catalogando tudo e organizando as prateleiras para jamais se
perder. Quando precisava de um livro, era como se necessitasse de um
rivotril sublingual. Tinha urgência. Se não achava, morria um pouco.
Sentiu-se assim quando levou uma semana para localizar “O processo”, de
Kafka. Podia pegar na internet, mas isso feria a regra.
A regra do seu jogo. Voltar ao estado quase natural. O papel impresso
parecia-lhe natural. Fechou-se na velha casa com seus livros e seus
discos. Só ouvia vinil. Muito Haydn. Noites inteira de piano. Sonatas.
Era um tempo sombrio, de uma tristeza silenciosa e longa como um mandato
fracassado. Tudo aquilo que lhe fora caro na vida estava superado. A
palavra utopia tornara-se um insulto. Nos primeiros três meses, só saiu
para buscar comida e lenha. Chovia sempre. Dias e noites se pareciam. A
energia elétrica acabou. Viveu meses de velas. Não sofria. Estava no
exílio. Quando a luz voltou, já tinha se acostumado com a escuridão.
Precisava comer. Tornou-se vegetariano. Plantava no quintal. Apesar
do mau tempo, tudo dava. Já não importavam as estações. Se colhia uma
abóbora, no dia seguinte outra abóbora estava à disposição no mesmo
lugar. Passou a ser malvisto. As crianças sentiam medo dele. Adultos
debochavam:
– O homem dos livros.
Havia quem desse uma enorme volta para não passar em frente à sua
chácara. A polícia o vigiava constantemente. Espalhou-se que era
perigoso.
– O homem dos livros.
Os discos não chamavam atenção. Embora a música ouvida não fosse
apreciada. Nos bares, falavam dele. Pensou-se em expulsá-lo. Diziam:
– Não é certo. Não pode ser certo. Com todos aqueles livros.
– Ninguém vive assim.
Estava assentado que ele tinha ideias esquisitas. Essas ideias só
podiam vir de todos aqueles livros. Além disso, não comia carne. Podia
ser mais estranho? Depois de meses trancado em casa, Filomeno começou a
andar pelos campos. A pé. Ninguém fazia isso. Muito menos com um livro
na mão.
– Só pode ser tarado – exclamavam as mães.
– Ou comunista – diziam os pais.
– Ou maconheiro.
– Ou tudo isso.
– É mais provável.
Quando souberam que ele costumava ler um livro de capa dura chamado
“O processo”, descoberta de um guri que ousou de aproximar dele numa
tarde de primavera, entraram em pânico. Houve reunião na praça do
cinamomo:
– Só pode ser foragido da justiça.
Então invadiram-lhe a casa e queimaram os seus livros.
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* Jornalista. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte:
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