segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Os riscos da fé

 Luiz Felipe Pondé*

Ilustração

Será possível haver sexo sem escândalos? Suspeito que não. Sexo é pântano

Mais um caso de escândalo envolvendo sexo e religião. Será possível um dia haver sexo sem escândalos? Suspeito que não. O sexo é sempre um pântano. Mas, temo , um dia, no futuro, chegarmos à condição segura de não desejarmos mais nada. Veganismo sexual radical.

Sexo e poder então! Eis a mistura perfeita para o pântano. Tão perfeita que a indústria do filme pornográfico tem nela um dos seus clássicos: meninas na escola, mulheres buscando trabalho ou aceitando dinheiro em troca de boquetes no cantinho de lojas de roupas (o inverso também ocorre: poderosas se aproveitando de homens que precisam de algo).

Quando esse poder vem pelas mãos da fé, então! Toda pessoa que tem fé em algum líder espiritual se abre para o abuso de algum tipo. Isso não implica que todo líder espiritual abuse da fé de seus seguidores.

A fé é uma força transformadora da vida. Como toda força, é um risco contínuo. O caso mais recente, envolvendo o médium mais famoso do Brasil, João de Deus, é uma prova disso. O caso serve para entendermos um pouco alguns aspectos da religião para além da teologia em si.

A crença em milagres é um clássico em religiões (sei que nem toda denominação religiosa prima por essa crença). Acreditar que passiflora e pedras energéticas funcionam é indicação de que algo em sua forma de ver o mundo não funciona. Crer que alguém que faz uma cirurgia espiritual curará seu câncer é sinal de desespero. 

Uma vez adentrado o terreno da crença de que alguém possui poderes paranormais, você adentra o terreno do risco de que essa pessoa se aproveite de você, fazendo você comprar coisas, fazendo você fazer coisas de cunho sexual ou mesmo “colonizar” seus sonhos, sua vida, sua grana, seu futuro. 

O mundo da fé é habitado por um número gigantesco de picaretas do espírito. Isso não implica, vale dizer, que toda vivência religiosa seja objeto de picaretas do espírito. Existem picaretas na ciência também: as universidades e a indústria da ciência estão aí para mostrar para quem quiser ver.

No caso específico, veremos várias facetas da religião em sua dimensão social e psicológica em jogo. Muitos dos que adoravam o médium em questão começarão a atirar pedras nele agora (as pessoas adoram atirar pedras nos outros, principalmente os que se julgam representantes do bem). 

Logo virá a memória dos que permanecerão fiéis a ele a famosa passagem de Pedro no Evangelho, negando Jesus três vezes após sua prisão. 

Dirão: “Olha aí os traidores! Até ontem estavam aqui rezando e pedindo ajuda. Agora, porque umas moças da TV falaram mal dele, estão aí negando sua fé”.

E podemos perguntar: de onde virá essa defesa? Uma hipótese possível (mas não única, claro) é a econômica. A cidade que gira ao redor da economia da fé no médium vai quebrar.

Pessoas que vendiam quartos, refeições, água, gasolina, sexo, enfim, vão quebrar. 

Religião precisa de sustentação econômica como qualquer empresa ou ser humano. Defender o médium será um forma de defender seu negócio porque ele é um negócio.

Nesse movimento, alguns ensaiarão teorias espirituais: sua (a nossa) carne é fraca, mas o espírito ainda assim tem uma missão.

Será que haverá dinheiro e disposição para esse povo todo que diz ter sido um dia curado por ele vir à luz “provando” seus poderes espirituais? Será que, se vier a ser “provado”, que mesmo sendo um abusador, ele permanece um “homem de Deus”, seu culto resistirá, mesmo ele preso (o do Lula tem resistido...)? 

Julgo essa hipótese a mais interessante em termos espirituais. As contradições da alma são infinitas.
Mas, temo, não iremos tão longe. Somos seres preguiçosos, a menos que nossos pecados nos estimulem a algo. Suspeito que João de Deus desaparecerá e as mesmas pessoas que o adoravam vão procurar outros para adorar, porque quem gosta de adorar algo sempre acha o que adorar. A idolatria é uma compulsão no gênero humano.

A religião é pré-histórica. Tem valor evolucionário. A vida não tem um sentido maior, e esse fato se materializa em elementos concretos como perdas, sofrimentos, frustrações diversas. Não se trata de um problema abstrato.

Sei que tem gente que não precisa disso. Mas aos ateus também se deve prescrever uma certa dose de humildade. Sei que você pode deixar de acreditar em Deus, mas cuidado para não passar a acreditar em qualquer bobagem do tipo ciência, natureza, política, história —ou, pior, crer em você mesmo ou crer no desejo. Eita coisa ridícula!
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*Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. 
Imagem: Ricardo Cammarota/Folhapress
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/12/os-riscos-da-fe.shtml

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