José de Souza Martins*
"Cultos e
cerimônias religiosas têm sido celebrados em recintos oficiais, como o
Congresso Nacional. Câmaras municipais têm tornado obrigatória a leitura da
Bíblia em suas sessões. Ferem o princípio democrático da pluralidade religiosa."
As
eleições de 2018 foram realizadas num cenário de utilização extensa de
instrumentos extrapolíticos para domar a consciência do eleitorado e dela
extrair a cooptação e a rendição eleitoral. Foi o caso da religião, os púlpitos
usados como instrumentos de transformação do voto consciente, livre e
democrático em voto de cabresto. Não só a democracia oi comprometida, e o teria
sido qualquer que fosse o vitorioso, como a própria política foi mutilada.
Já no
declínio do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva, em conferência
da Escola Superior de Guerra, explicou aos presentes o que era a política da
abertura lenta, gradual e segura. Ela culminaria com a devolução do poder aos
civis e aos partidos políticos que dela se originariam para expressar a
diversidade ideológica da sociedade brasileira.
Reconhecido
especialista em geopolítica, era dos raros militares brasileiros que sabiam que
a mudança do regime em 1964 tinha muito pouco a ver com uma reação ao comunismo
e muito mais a ver com a questão do alinhamento do Brasil no cenário da Guerra
Fria.
As
esquerdas levavam o país para o "lado errado", o do bloco soviético.
O bloco "certo" era o da hegemonia americana. Nessa polarização havia
razões de mercado e razões de segurança nacional. Mas Golbery se enganava ao
supor que as esquerdas eram uma esquerda só, a da hegemonia dos comunistas
russos. Aqui, as esquerdas estavam fragmentadas, eram críticas dos soviéticos e
devoravam-se entre si, como acontece até hoje.
Nessa
perspectiva, ele havia constatado o fato novo de que religiões estavam se
envolvendo na política brasileira e apossando-se de nosso imaginário político.
Supostamente, alinhando-se às esquerdas. Portanto, estavam anulando o que é
próprio da política. A chamada abertura tinha por propósito principal, em suas
palavras, devolver a política ao seu leito natural, aos partidos.
A
República proclamada pelos militares, em 1889, propôs-se a eliminar os
vestígios do Antigo Regime, dentre eles o caráter oficial da religião católica.
Já antes da promulgação da Constituição de 1891, um decreto de Deodoro
antecipava essa separação. O Brasil deixava de ter religião oficial, o Estado
não se meteria nas questões religiosas e as religiões não se meteriam nas
questões de Estado. Cem anos depois da Revolução Francesa, a moderna
civilização política chegava ao país.
A decisão
não só libertava o Estado do influxo das crenças, mas libertava a Igreja
Católica da manipulação do Estado para propósitos em tudo divorciados dos
assuntos propriamente religiosos. As outras religiões, chamadas então de
acatólicas, também ficavam protegidas contra as diabólicas tentações do poder.
Com a
República, religião passou a ser assunto privado e pessoal, assunto de foro
íntimo. Na verdade, uma moderna concepção protestante da fé. No afã de poder,
os protestantes e evangélicos, que foram decisivos para aqui fundar a
República, vem se tornando os principais inimigos do republicanismo brasileiro.
Tentam se apossar das instituições do Estado e a definir orientações de fundo
religioso para questões políticas.
Cultos e
cerimônias religiosas têm sido celebrados em recintos oficiais, como o
Congresso Nacional. Câmaras municipais têm tornado obrigatória a leitura da
Bíblia em suas sessões. Ferem o princípio democrático da pluralidade religiosa.
A
República laica foi testada logo depois de sua proclamação. O Dr. Miguel Vieira
Ferreira, pastor da Igreja Evangélica Brasileira, militar, abolicionista,
republicano, doutor em ciências matemáticas e físicas, engenheiro, convocado em
1891 para compor o corpo do júri pela Justiça do Rio de Janeiro, pediu que, em
respeito às novas leis, fosse removido da sala das sessões o crucifixo que ali
havia.
Nascia a
chamada questão do "Cristo no júri", que se arrastaria por anos. O
caso foi parar na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados e lá recebeu
parecer de Quintino Bocaiúva, republicano exaltado, que estava ao lado de
Deodoro na manhã da proclamação da República.
Tergiversou
ele e situou o alcance da separação entre Estado e igreja: religião é assunto
pessoal e subjetivo, sua prática e não seus símbolos. A atitude protestante
desencadeou extensa reação nacional, com procissões e entronizações da imagem
de Cristo crucificado nos tribunais.
O
presidente agora eleito vacila e oscila em face de seu débito eleitoral para
com os púlpitos, sobretudo os neopentecostais. Dá demonstrações de que resiste
ao assédio ao traduzi-lo nos termos de outra lógica de poder, a sua, que ainda pede
desvendamento. Lógica restritiva e antipluralista, de medo à democracia da
diferença, que não é apenas verde, mas verde e amarela.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Desavessos - Crônicas de Poucas Palavras (Com-Arte).
FONTE: https://www.valor.com.br/cultura/6015651/politica-e-religiao 07/12/2018
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* José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Desavessos - Crônicas de Poucas Palavras (Com-Arte).
FONTE: https://www.valor.com.br/cultura/6015651/politica-e-religiao 07/12/2018
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