Eu me lembro obsessivamente dos campos perfumados depois da
chuva. É como se um clarão se acendesse na minha memória a cada vez.
Chuva de verão, cheiro de terra molhada, água cristalina se acumulando
por pouco tempo nos baixios onde se podia tomar banho em algazarra e
ficar surpreso na manhã seguinte com o desaparecimento da “lagoa”. Fim
de ano tem disso: incendeia o imaginário com um doloroso fogo de palha.
Pode-se ficar deprimido, com uma sensação de que um ciclo se fecha e que
algo ficou para trás sem que possamos eliminar certa impressão de
derrota ainda que nada tenha sido perdido, exceto o tempo que não volta
nem devolve o que se foi.
Há quem só pense no presente ou no futuro. Os presenteístas querem
falar de Jair Bolsonaro. Os futuristas desenham um país recuperado ou
planejam fugir para Portugal, essa nova mania da classe média iludida
com a perfeição da Europa, lugar idílico onde grassa a xenofobia, sendo
poupados da antipatia apenas os que levam dinheiro, restando aos demais
as patentes para lavar ou os subúrbios sem revoadas de gaivotas nas
praias. Eu me lembro obstinadamente do aroma e da brisa das manhãs, do
canto das cigarras na virada da tarde, dos rastros no céu cristalino
deixado por um avião, do peito amarelo de um pássaro na cumeeira do
velho galpão ocre.
O que significa lembrar? Seria melhor esquecer o passado e viver para
sempre na eternidade do momento como um texto perdido de alguém feito o
argentino Adolfo Bioy Casares? Por que essa nostalgia que dói com uma
lágrima fazendo a travessia do rosto em direção ao abismo ou como um
solo de clarineta num amanhecer que brinca de esconde-esconde com o sol e
as nuvens? A chuva caía como uma cortina sobre os campos a perder de
vista. Ficava-se na soleira das grandes portas dos galpões cobertos de
capim santa-fé assistindo ao grande espetáculo da natureza. Depois,
quando o tempo abria, havia tanta coisa urgente a fazer: respirar fundo o
ar puro, correr, rir sem parar, montar a cavalo, sair em disparada,
extasiar-se.
Paul Ricoeur, pensador da memória, numa conferência famosa feita em
Budapeste, na Hungria, em 2003, falou de esquecimento, lembrança,
obstinação e cura: “Podemos reencontrar uma experiência traumática da
infância com a ajuda de procedimentos específicos próprios àquilo que se
chama ‘talking cure’. Freud atribui às resistências solidamente
instaladas a compulsão para repetir em vez de se rememorar. Rememorar é
uma forma de trabalho; o trabalho de luto, ao qual Freud consagra um
outro ensaio importante, Luto e melancolia, não está afastado dele”.
Como se curar dessa rememoração persistente do perfume dos campos depois
da chuva? Como fazer o luto da infância feliz sob o canto dos pássaros
molhados?
O passado vibra. O presente lateja. O futuro espreita. Com linguagem
técnica de filósofo, Ricoeur roçou a poesia: “As estratégias do
esquecimento enxertam-se diretamente no trabalho de configuração:
evitamento, evasão, fuga”. A infância deixa rastros que os pragmáticos,
presenteístas e futuristas, ignoram por excesso de apego aos seus
ideais.
------------
* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/12/11421/evocacoes-de-fim-de-ano/
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário