Por Marcelo Barros*
Em alusão ao dia mundial da água (22/03), o CEBI partilha o artigo “A força da Água e o poder do Espírito – A água nas religiões e caminhos espirituais”. De autoria do irmão Marcelo Barros, esta reflexão é parte do livro: “O Espírito vem pelas águas“, da editora CEBI.
Boa leitura!
“Sou ar sou terra e sou mar.
Eu tenho a mão e você tem a lua,
eu sou montanha e você a é chuva que escorre
e some no final da curva e beija o rio, pra abraçar o mar.
E é por isso que a montanha tem ciúmes quando o vento leva a
chuva pra dançar. Muitas vezes tudo acaba em tempestade, raios gritam
sobre a tarde.
Tardes dormem ao luar,
anoitece a manha espera, amanheço a te esperar. (Orlando Morais – A Montanha e a Chuva)
Até aqui conversamos sobre a crise atual da água no mundo. Agora, convido vocês ao que acredito ser a fonte mais profunda, o remédio mais eficaz para esta crise. Cada vez mais, a humanidade se dá conta de que a ciência, isolada em sua racionalidade conceitual e empírica, não responde aos anseios mais fundamentais do ser humano nem compreende o que, de modo tão feliz, o Milton Nascimento chamou de “cio da terra” e poderíamos acrescentar “da água, do vento e de toda a natureza”. Esta relação de escuta amorosa e de convivência harmoniosa não virá do sistema capitalista atual, nem das modas passageiras da sociedade ocidental. Nós a descobrimos nas crenças, tradições, escritos e ritos das mais diversas culturas e religiões da humanidade e no subseqüente caminho eco-espiritual que elas nos ensinam e propõem. É o que chamo aqui de “espiritualidade ecológica”.
No contexto do Semi-árido nordestino e em muitas outras regiões do mundo, muitas parcelas da população pobre continua interpretando a seca como castigo de Deus e a água da chuva como vinda diretamente da providência divina. A Teologia da Libertação nos propõe ajudar as comunidades a descobrirem a presença e a voz de Deus não em milagres fora da história mas nos fatos da vida. É importante ler os acontecimentos a partir da história e das causas concretas e sociais. A seca é conseqüência de fenômenos metereológicos e da política pouco respeitosa dos poderosos que destruíram as florestas, dizimaram a terra e desrespeitaram o eco-sistema da região. A chuva é resultado da condensação atmosférica e deve ser vista como fenômeno natural e não como milagre. Mas, a espiritualidade ecumênica nos confirma na opção de ver sinais da presença e do amor de Deus na vida do planeta e na história do povo.
Quando companheiros e companheiras do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) me sugeriram escrever este livro, a primeira idéia que tive foi escrever só o capítulo sobre a Água na Bíblia. Mas, na América Latina, sempre procuramos ler o texto bíblico a partir da realidade atual e inseridos nas culturas dos povos. Para conversar com a Bíblia sobre a crise atual da água, é necessário levar em conta toda a realidade, descrita no capítulo anterior e ver como Deus se revela também em outras culturas, com outros nomes e de formas diversas. Antes e começar esta meditação da Palavra de Deus nas religiões e caminhos espirituais, vamos clarear termos e firmar entre nós um acordo.
– Em busca de uma “espiritualidade ecumênica e cósmica”
Até alguns anos, Espiritualidade parecia referir-se unicamente às coisas do “espírito” da gente e não ter nada a ver com a terra e a vida concreta. Quando, em 1977, comecei a trabalhar na “Pastoral da Terra”, sentia que este serviço de algumas Igrejas cristãs aos lavradores chama-se assim para frisar que, como diz um cântico de Dom Pedro Casaldáliga: “Queremos terra na terra, já temos terra no céu”.
Espiritualidade não é “espiritualismo”, valorização da parte dita espiritual do ser, em detrimento do que se chama “aspecto material”. Espiritualidade expressa um movimento do Espírito Divino em nós e no universo. Tanto os grupos que crêem tratar-se de um ser pessoal (Deus nas religiões monoteístas), como os que acreditam ser uma dimensão divina da própria vida podem valorizar a espiritualidade como dimensão da vida ou modo de viver. Pessoalmente, creio em um Deus pessoal e, como cristão, procuro me relacionar intimamente com Deus, através de Jesus Cristo.
Martin Buber, filósofo e místico judeu, refletia: “Deus é a mais carregada de todas as palavras humanas. Nenhuma foi tão manchada, tão dilacerada. Justamente por isso eu não posso renunciar a ela. (…) Os povos, com suas facções religiosas, dilaceraram a palavra. Eles assassinaram em nome dela e morreram por ela. Ela carrega o vestígio e o sangue de todos eles. (…) Não é deixando de lado o termo Deus que nós não poderemos limpar esta palavra e todo o mistério que ela encerra. É, ao contrário, levantando-a do chão e retomando-a para a justiça”.
Paul Tillich, um dos maiores teólogos evangélicos do nosso século, dizia: “O nome da profundidade e do fundo infinito, inesgotável de todo ser é Deus. Esta profundidade é o próprio sentido da palavra Deus. Se vocês virem o que há de mais importante e profundo na cultura e na vida de alguém ou de um povo, vocês estão tocando no mistério da presença de Deus”.
Procuro testemunhar a fé exigindo de mim a abertura de diálogo e de busca de comunhão com todas as pessoas que procuram a verdade. Sem dogmatismos nem a pretensão de imaginar que minha fé é melhor do que a de ninguém ou que estou mais avançado no caminho do que qualquer outro crente.
Aqui, tratarei de Espiritualidade de um modo que possa ser aceito por crentes de quaisquer religiões e mesmo por pessoas e grupos não ligados a nenhuma religião e até pelos que não crêem em Deus. Aprendemos de Jesus Cristo que toda Espiritualidade, como caminho para a intimidade com Deus nos abre a todos os outros caminhos humanos de busca do divino e me põe em comunhão com todos os seres do universo. É um caminho de abertura ecumênica e cósmica que põe a vida no centro de tudo, como o que há de mais sagrado e tem diversas dimensões:
- – a busca da unidade interior (a espiritualidade é a unificação de cada pessoa consigo mesma, no diálogo de cada um com o que há de melhor em si mesmo/a).
- – a comunhão com toda a humanidade e todos os seres do universo (uma comunhão cósmica).
– Finalmente para muita gente, a Espiritualidade tem seu núcleo mais profundo na abertura
do ser para uma dimensão divina que nos supera e que os judeus, cristãos e muçulmanos chamam de “Espírito Divino”, uma energia feminina que na Bíblia é comparada a uma ventania que renova a vida e é fonte do amor que nos faz responsáveis por todos.
Neste segundo capítulo, conversaremos com diversas religiões e tradições espirituais sobre como nos relacionar de modo novo e espiritual com a Terra, a Água e todo o universo.
Antes de começar esta peregrinação às fontes de espiritualidade dos povos, quero ainda esclarecer dois pontos:
- um elemento fundamental do diálogo inter-religioso e espiritual é nunca substituir o outro. Trata-se de deixar que cada tradição se apresente e eu nunca falar da fé do outro, a partir de minha própria concepção religiosa ou cultural. Aqui, procurei me basear em fontes diretas de cada religião e consultar irmãos e irmãs daquela tradição. Na medida em que consegui, o texto foi revisto por alguém que representa aquela tradição. O objetivo não é descrever a teologia ou todo o sistema religioso de cada caminho espiritual. Trata-se apenas de ver o que significa a água e a ecologia em cada tradição. Se, lendo essas páginas, alguém achar superficial ou mesmo errada alguma interpretação de sua crença, me perdoe e corrija, tanto para eu aprender mais de sua tradição, como para mudar o que está escrito, em alguma possível segunda edição deste texto.
- as tradições religiosas antigas falam através do simbólico e não de conceitos racionais. A maioria se expressa por narrativas míticas e relatos fragmentados, ou por canções e ritos que mais aludem do que afirmam claramente. Então, desde logo, fique claro: não será possível responder o que as religiões dizem sobre a água de modo claro, sistemático e objetivo. Mas, não é exatamente esta a linguagem do amor? É melhor assim do que se fosse através de uma teologia meramente conceitual. Nisso, já aprendemos algo sobre como nos relacionar de modo novo e profundo com a Água e a Terra nas quais, “vivemos, nos movemos e existimos” (Cf. At 17, 28).
– A Água mais do que água
“A Água é a veste com a qual a vida nos visita. Toda água viva é morada do Espírito e este aparece nas ondas e na ventania que se forma. Na Amazônia, o espírito, presente nos rios se mostra forte nos banzeiros. Nunca entre no rio ou em um barco sem saudar o espírito que mora nas águas”(Bep Karoti, Xamã dos Kayapó – Pará )
Em todas as religiões e tradições espirituais, a Água tem um significado mais rico do que apenas o seu conteúdo material. A Água simboliza a vida. Na maioria dos mitos da criação do mundo, a Água representa a fonte da vida e a energia divina da fecundidade da terra e dos seres vivos. A presença da Água garante a vida. Entretanto, se chove exageradamente, a Água provoca inundações e destruições. A Água também pode ser sinal de destruição e de morte (o dilúvio).
Símbolos são universais, cósmicos e antropológicos. A primeira imagem do Espírito de Deus na Bíblia é a da ventania divina (ruah) soprando sobre as águas primordiais do cosmos (Gn 1, 1). Em lugares como a Amazônia, até hoje, Deus também é visto como “Espírito das Águas”. A água movimentada, isto é, com espírito, ruah, sopro, ventania, é água viva e santa. Toda fonte é sagrada, é fonte de Oxum, nas religiões afro-brasileiras, é como o templo no qual se fazem e se renovam as alianças da vida, alianças de casamento e a própria aliança com Deus. Nas antigas religiões pagãs, as fontes eram lugar das ninfas. No cristianismo popular, perto das fontes aparece a Virgem Maria, como em Lourdes, que, até hoje, tem sua fonte milagrosa e as pessoas levam água daquela fonte para o mundo inteiro.
Praticamente em todos os caminhos espirituais, a Água é venerada como fonte de vida e mistério de fecundidade e amor. Ao contrário, a água, parada e estagnada, é morta e faz morrer. Nas mitologias antigas, os dragões habitam nos pântanos.
– A Água em culturas e filosofias antigas
Para os antigos egípcios, a água era ligada à idéia de reanimação. Osíris faria fluir um jorro de água que liberta a pessoa da rigidez da morte. Também na Babilônia, a deusa Istar, em alguns documentos e histórias representada pela lua, devia descer à região dos mortos para obter a água da vida. Talvez essas imagens simbólicas da água continuaram presentes na teologia neo-testamentária do Batismo como incorporação à morte e à ressurreição do Cristo (Cf. Rm 6, 3- 11).
As religiões orientais ganharam versões ocidentalizadas pelo helenismo, fenômeno cultural do século IV antes de Cristo. Diversos ritos helênicos e de religiões de mistérios se baseavam em abluções rituais e ritos de renascimento espiritual. Os mais conhecidos são os banhos de purificação que precediam os mistérios de Eleusis. Há quem acredite na influência dos ritos de Eleusis na prática de abluções dos essênios no Mar Morto e do batismo de João Batista no Jordão.
Em diversos ritos orientais antigos, a água tem uma função na sagração dos reis. O poder que o rei recebia não era apenas político. Era de ser representante da divindade para o povo. Nos ritos antigos de intronização se encontra alusão à água da vida. Dava-se de beber ao rei esta poção de água da vida e ele era ungido e mergulhado (batizado) em águas lustrais. Por este rito passavam os faraóis do Egito, os reis da Mesopotâmia, os príncipes da Índia e em diversas tribos africanas.
Na cultura grega, a água tem também este duplo significado de vida e de morte. O filósofo Tales de Mileto ensinava que toda forma de vida provém da água.
Esta convicção de que as águas formam o fundamento do universo faz parte da própria psicologia humana. O próprio inconsciente humano é representado pelas fontes ocultas no seio da terra. Por isso, na própria mitologia de todos os povos, a água é o lugar da aventura e do risco de enfrentar o desconhecido e penetrar no mais profundo de sua própria identidade. Na mitologia antiga, Ulisses vaga pelo mar durante 10 anos, encontra as sereias, seres da água e da terra, mulheres que cantam maravilhosamente e encantam os viajantes extraviados e têm metade do seu corpo como peixes. Na mitologia do Mediterrâneo, há também a figura das “anguanas”. Assim define Daniela Perco: “são comumente representadas como mulheres jovens e solitárias, dotadas de uma beleza extraordinárias e com longos cabelos soltos. Também podem ser descritas como mulheres feias e aterrorizadoras, ligadas aos pesadelos noturnos. Em geral, este mito estava ligado à lavagem da roupa e a aspectos cultuais desse costume feminino. As anguanas são lavadeiras noturnas e encontram os homens solitários e extraviados ou marginalizados. Expressam a relação entre o mundo humano e o sobrenatural”.
Essa relação entre vida e morte, realidade humana e mistério da vida após a morte é expressa na crença do “rio da morte”, presente na antiga religião greco-romana. Segundo a visão clássica, a morte é um rio de águas escuras e misteriosas. Creonte é o barqueiro do rio da morte.
Aristóteles escreveu:
“A maior parte daqueles que, por primeiro, construiram um pensamento filosófico pensaram que as bases de todas as coisas fossem só as materiais. De fato, afirmavam que aquilo a partir do qual todos os seres são constituidos, aquilo do qual, originalmente, tudo deriva e no qual, por último, todos os seres se realizam, é elemento e é princípio dos seres, como uma realidade que permanece idêntica mesmo no trasformar-se de suas afeições. E, por esta razão, eles crêem que, no plano mais profundo, nada se gere e nada se destrua, já que existe em todos os seres uma realidade que se conserva sempre…
Tales de Mileto, iniciador deste tipo de Filosofia, diz que aquele princípio fundamental de tudo é a água. Por isso, ele afirma que também a terra flutua sobre a água. Ele deduz esta sua convicção constatando que o alimento do qual todas as coisas se nutrem é úmido. O próprio calor se gera na umidade e vive da umidade. Ora, aquilo do qual todas as coisas se geram é propriamente o princípio de tudo. Ele conclui esta convicção desse fato e da constatação de que as sementes de todas as coisas têm uma natureza úmida e a água é o princípio da natureza das coisas úmidas.
Alguns crêem que também os mais antigos, que, por primeiro, trataram dos deuses, muito antes da atual geração, tinham a mesma concepção da realidade natural. De fato, colocaram Oceano e Teti como autores da geração das coisas e disseram que aquilo sobre o qual os deuses juram é a água, a qual passa a ser chamada de Stige. De fato, o que é mais antigo é também o mais digno de respeito e aquilo sobre o qual se jura é mesmo o mais digno de respeito…
De modo diferente, Anaxímenes e Diógenes consideraram como originário, mais do que a água, o ar e, entre os corpos simples, o consideraram como princípio por excelência, enquanto Hippas de Metaponto e Heráclito de Éfeso consideraram como princípio o fogo.
Empédocles pôs como princípios os quatro corpos simples, acrescentando aos três acima mencionados ainda um quarto, isto é, a terra. De fato, esses elementos permanecem sempre imutáveis e não são sujeitos a variar, a não ser por aumento ou diminuição de quantidade, quando se acrescentam elementos a uma unidade ou se tiram dela…
Baseados nestes raciocínios, poder-se-ia crer que temos uma causa única: a que chamamos causa material. Mas, enquanto esses pensadores raciocinavam assim, a própria realidade traçou o seu caminho e os constrangeu a pesuisas posteriores…
Efetivamente, alguns seres são belos ou bons e outros se tornam assim. Isso não pode evidentemente ter como causa nem o fogo nem a terra nem qualquer outro destes elementos…
Também na natureza, há uma Inteligência que é causa da órdem e da harmoniosa distribuição de todas as coisas…” .
– Escutando os filhos da floresta e dos rios – no Brasil
“Yara, linda mulher cor de jambo, de traços finos e de figura soberba, vivia passeando pelas praias do Amazonas. Gostava de banhar-se em igarapés tranqüilos e de águas claras. Todos admiravam sua beleza.
Um dia, o sol já posto, estava a linda Yara divertindo-se inatenta nas águas corredias do igarapé. Eis que escutou vozes barulhentas se aproximando. Não eram seus irmãos e irmãs da aldeia. Eram homens brancos. Falavam uma língua estranha, com sonos de agressividade. Traziam botas pesadas e roupas rudes. Seus olhares eram de cobiça e não de enternecimento. Pareciam animais famintos.
Yara, feminina, tudo pressentiu. Tentou fugir. Mas mãos fortes a agarraram. Eram muitas. Todas as tocavam em todas as partes. Com violência foi jogada ao chão. Os homens a violaram e, depois, vendo-a como morta, a jogaram de volta ao rio.
O Espírito das águas teve pena de Yara. Acolheu seu corpo machucado. Inspirou-lhe vida e devolveu-lhe todo o esplendor de sua beleza. Mas, para que não pudesse nunca mais ser violada, transformou-a em sereia”.
Este mito tupi-guarani expressa simbolicamente a agressão dos conquistadores de ontem e de hoje à terra Amazonas, virgem e bela.
Por trás do mito, há a proposta de uma relação diferente e espiritual com a Terra e a Água. Uma relação de respeito ao mistério da Yara e não uma relação de exploração e até destruição. No imenso e maravilhoso mundo de rios e igarapés, o próprio Rio Amazonas é chamado “A mãe do rio” e as pessoas falam dele como de uma entidade meio divina. Quem vive em suas margens, relaciona-se com o rio e sabe quando vão acontecer os terríveis banzeiros e como deles se livrar. Aprende que nas noites de lua, o boto tucuxi vira rapaz namorador que encanta as donzelas e engravida as moças que os pais deixarem ser vistas na canoa ou no convés do barco, após o anoitecer.
Na região do rio São Francisco também o povo acredita na “Mãe d’água”.
A diversidade das culturas indígenas e do seu universo religioso dependem muito do universo que rodeia a vida do povo. Um grupo que vive no cerrado do Centro-oeste ou que, em épocas antigas, migrou do árido sertão do Ceará não tem a mesma relação com a água dos povos da Amazônia ou que nasceram e viveram sempre nas margens de um grande rio. Mas, tanto para uns, como para outros, a Água é sagrada. Os que vivem às margens dos grandes rios são mais ligados à Água do que a terra agrícola e a veneram como fonte de sua vida. Os que moram em regiões áridas ou semi-áridas veneram a Água como um tesouro escondido a que almejam e do qual também dependem. A iniciação dos Wapté – adolescentes – na comunidade Xavante é feita através do banho ritual. “O banho ritual da iniciação Xavante, com as cerimônias conexas, se estende por um mês ou mais”.
Muitas tradições indígenas dizem que o ser humano foi feito de água e saiu da água para a terra, afim de cumprir uma missão: a de zelar pela natureza. O povo Karajá vive, há milênios, às margens do rio Araguaia. Considera-o ponto de relação entre o céu e a terra.
Mito Karajá da Criação
No mais profundo das águas do Araguaia, em um lugar mantido oculto e só conhecido por alguns sábios mais antigos que não contam a ninguém, nasceu o povo Karajá.
“No começo do mundo, quando foram criados pelo Ser supremo Kananciué, os Karajá eram imortais. Viviam como peixes – aruanãs – e, desenvoltos, circulavam por todo tipo de rios e de águas. Não conheciam o sol e a lua, nem plantas e animais. Mas viviam felizes, pois gozavam de perene vitalidade. Estavam, entretanto, sob uma tentação permanente: entrar ou não entrar pelo buraco luminoso que havia no fundo do rio. O Criador lhes havia proibido terminantemente que fizessem isso, sob pena de perderem a
imortalidade. Passeavam ao redor do buraco, admiravam a luz que dele saía, ressaltando ainda mais as cores de suas escamas. Tentavam espiar por dentro, mas a luminosidade impedia qualquer visão. Apesar disso, obedeciam filialmente.
Certo dia, um Karajá afoito, violou o tabu da interdição. Meteu-se pelo buraco luminoso adentro e foi dar nas praias alvíssimas do rio Araguaia. Viu uma paisagem deslumbrante. Encontrou um mundo totalmente diverso do seu. (…) Deslumbrado, o índio Karajá ficou apreciando aquele paraíso terrestre até o entardecer. Quis retornar, mas foi tomado por um outro cenário fascinante. Por detrás da verde mata nascia uma lua de prata, clareando o perfil das montanhas ao longe. No céu, uma miríade de estrelas o deixou boquiaberto. (…). Ao amanhecer, voltou aos seus irmãos, contou sua aventura e lhes falou da beleza do mundo que encontrou. Decidiram pedir a Kananciué, o Criador, para permitir que morassem naquele mundo.
O Criador permitiu contanto que eles perdessem a imortalidade. E todos os Karajá passaram entusiasmados pelo buraco luminoso do fundo do rio. Vivem ainda hoje naquele paraíso, às margens do Araguaia. Tiveram a inaudita coragem de preferirem a mortalidade, para que pudessem nascer integralmente como seres de liberdade, o que continuam sendo até os dias de hoje”.
Povos do Xingu e do Cerrado
No Xingu, os povos Yawalapiti e Kamayurá crêem que um antepassado, um primeiro humano, desceu ao mundo das águas mais profundas. Nessa região subaquática, assistiu o Tapanawaña, rito secreto que dá origem a outros ritos de iniciação e de vida. Pôde, então, capturar os espíritos que estão nas flautas apapâlu. E trouxe essas flautas sagradas para reger a vida e o culto do seu povo . Todo o equilíbrio da vida e das relações humanas e até conjugais dependem dos espíritos que vieram do mais profundo do rio e agora estão na flauta sagrada.
No sertão do Mato Grosso, alguns povos, como os Minki, têm tal veneração ou respeito à Água que nem costumam beber diretamente água. Pensam que beber água pura faria adoecer. Brancos que foram viver com eles eram vigiados para não correrem o risco de “beber” água quando tomavam banho no rio. Conforme sua tradição, bebem sempre Xixa, bebida levemente fermentada, feita do suco da mandioca brava. E a água é reservada aos deuses e aos banhos comunitários e de integração dos homens e das mulheres que, tendo como testemunha a água, tecem suas alianças de vida.
Espiritualidade Guarani
No Brasil colonial, organizados em diversos ramos e famílias, os Tupi Guarani constituíam a maior nação indígena e ocupavam vasta extensão de terras do atual Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia. Como não tinham templos, não faziam sacrifícios de animais nem representações figuradas da divindade, os europeus que se aproximavam deles sempre pensavam que os Tupi-guarani não tinham fé. Ficou célebre o julgamento do missionário que dizia: “Eles não têm fé, nem lei, nem rei!”.
A religião dos Guarani tem algo de secreto e difícil de ser expressa. Entretanto, é evidente a profunda espiritualidade desse povo. A essência de sua fé é a crença na Terra sem Males, a Yby mara-é- yma dos Tupi, Yvy mara-é y dos Guarani. É difícil compreender esta fé de uma terra que se transforma em paraíso, sem comparar com a tradição judaico-cristã do paraíso terrestre e das promessas do Reino de Deus. Esta comparação é inadequada, perigosa e não respeita a autonomia do outro. De fato, as crenças têm todas algumas semelhanças porque lidam com arquétipos humanos universais. Por exemplo, os Guarani têm, em sua crença, uma história de dilúvio ( á água que cria também ameaça e destrói). Entretanto, esta história guarani está ligada a um conjunto que difere muito da concepção bíblica de aliança.
A Terra sem Males é a natureza plenamente redimida, onde a Terra produz os frutos por si mesma, o milho cresce sozinho, as flechas alcançam a caça espontaneamente. A atividade dos seres humanos é dançar e fazer festa. Lá não existe autoridade. Todos se auto-governam. O caminho para a Terra sem Males é cada pessoa libertar-se de si mesma, de sua própria condição de ser humano subjugado pela sociedade para chegar à condição de deuses. Seus profetas são os caraíba (ou caraí para os Guarani),
homens solitários que jejuam, vivem uma vida de virtude e, por isso, podem conduzir o povo até a Terra sem Males. Onde está a Terra sem Males? Alguns diziam: “Por detrás das grandes montanhas”. No século XVI, milhares migraram para a Cordilheira dos Andes. Poucos sobreviveram à viagem e estes foram presos e escravizados pelos espanhóis. Mais tarde, outros disseram: “no fundo da terrra”, como a expressar que esta viagem se dá no interior da própria convivência com a Terra-mãe. Mas, a maioria está convencida: a Terra sem Males se encontra no meio do oceano. Por isso, desde os tempos da colonização, tem havido sucessivas ondas de migração guarani para o leste. Índios do Paraguai chegaram até poucos quilômetros de São Paulo e sempre armando suas tendas mais para o lado do mar… Esperando encontrar sua utopia no meio das águas.
As lendas do São Francisco
Quem conhece as cidades ribeirinhas do São Francisco conhece as embarcações emolduradas de carrancas de madeira para exorcizar os maus espíritos e atrair as bênçãos divinas. Ao longo das margens do rio, correm muitas lendas e histórias, muito ricas, não apenas pelo universo fantástico que revelam, mas pelos conflitos sociais e pela resistência cultural subjacentes ao relato mítico. Em Carinhanha- BA, uma das mais tradicionais cidades ribeirinhas, o povo pode até não gostar de fofocas e boatos, mas todo mundo freqüenta, “o pau do fuxico”, uma frondosa árvore de frente para o São Francisco que, segundo os moradores mais antigos, era o local predileto das discussões políticas na cidade. A cidade continua espalhando as lendas da região. Uma delas é a do “compadre d’água”, um caboclo de cabeça preta, dentes agudos feito piranha e pés-de-pato. “Ele estranha e pega a gente. Vira a canoa. Transforma-se em qualquer coisa, moita ou cabaça. Você vai pegar a cabaça e ele vira gente e te come”, conta com convicção muita gente da região. Outra narrativa popular é a da serpente cantadora que levava todo mundo a rezar o oficio da Mãe de Deus, todo sábado para que a serpente não criasse asas. “Se ela sair voando do fundo do rio vai haver um estrondo e destruir cinco cidades ribeirinhas.
Certamente, na história do rio e das populações nativas da região, esses relatos cumpriram uma importante missão de preservar a natureza e defender a cultura do povo. A realidade atual de destruição ecológica e cultural do São Francisco tem motivos econômicos e sociais, mas também se deve à sistemática destruição dos valores culturais do povo.
– Entre outros povos indígenas – fora do Brasil
A maioria dos povos indígenas crê que a Água é o primeiro elemento da criação e primordial manifestação do amor divino por nós. Muitos a adoram como uma divindade, ou como morada dos Espíritos. Do norte ao sul, cânticos e preces indígenas reverenciam o avô Sol, a avó Lua, a mãe Terra e a irmã Água. Esta designação revela que a Água mantém uma espécie de relação de maior proximidade e parentesco com o ser humano. Assim os índios se relacionam com os rios e as fontes. São lugares sagrados e muitos dos rituais iniciáticos são realizados nas madrugadas de lua cheia, em meio às águas.
A água é fonte da vida e instrumento de relação com o divino e de harmonia do ser humano consigo mesmo e com a natureza toda. De comunidades indígenas, nos vêm terapias baseadas na água.
A chuva é sempre vista como água sagrada que manifesta o poder da vida. Vários povos mantêm tradições de dilúvios e renovação do mundo através da água. É também muito comum associar o poder dos Xamãs com a capacidade de fazer chover. E muitos ritos de cura da terra têm o sentido de fazer chover. Há tambores e ritmos próprios para o “chamado da chuva” e danças que imitando os passos da água no solo parecem ter o poder de atrair novas chuvas.
Xamanismo e Água entre os índios da América do Norte
O Xamanismo é uma sabedoria estimada no mundo inteiro. Vem de povos da Sibéria, mas se encontrou com costumes religiosos dos índios norte-americanos e, hoje, há quem se refira a Xamanismo para designar rituais e costumes de quaisquer povos indígenas.
Um elemento fundamental do Xamanismo é a sabedoria do Xamã que se comunica com os espíritos e obtém o dom de curar a Terra, curar as pessoas e “a própria alma” de todos os seres vivos. As religiões xamânicas são de tipo iniciáticas. Em alguns desses rituais, a pessoa que está sendo iniciada deve peregrinar até descobrir uma fonte de água que tenha um espírito que a adote. Quando se torna filho ou filha do espírito de tal fonte ou tal lago, então se estabelece uma relação mística entre aquela pessoa e o Espírito daquela água. Em outros lugares, a pessoa é mergulhado durante três dias em uma fonte que mistura a água de diversas fontes ocultas e mágicas. Estabelece uma relação de proximidade e comunicação com os animais que na floresta bebem daquela mesma água. Tornam-se capazes de “conversar” com estes animais e receber a sabedoria de cura do seu espírito.
Muitos povos indígenas da atual América do Norte têm em seus mitos fundadores a convicção de que a água é o elemento fundamental da criação. Um costume bastante comum entre indígenas norte-americanos é a “Tenda do Suor”. A técnica é simples. Constroem uma tenda totalmente fechada. Dentro, há uma pedra grande sob a qual acendem um grande fogo. Quando a pedra está incandescente, ou é mantida muito quente, derramam água de uma fonte próxima e assim produzem vapor. Esta ducha de vapor é tomada coletivamente. Muitas vezes, é ligada a uma consagração das pessoas ao Sol. Nesse caso, repetem o banho quatro vezes, em relação com um dos pontos cardeais. Durante um transe, provocado pelo calor, os homens contam uns aos outros os sonhos sobre a vida, o futuro e as relações humanas.
A cidade dos deuses construída sobre as águas
No planalto mexicano, o povo Mexica e depois os Aztecas construíram a sede de sua civilização na Cidade dos Deuses (Teotihuacan) sobre o lago sagrado. Esse lago desapareceu completamente e, hoje, do grande Lago do México, resta apenas o nome. Toda a religião dos Mexica era um culto às forças da vida, representadas na Serpente Alada (Quetzacoatl) e no Deus que fecundou a terra (Huitzlopotlz). A primeira comunicação com a energia divina era feita através da água. Um dos principais e mais comuns ritos mexicas eram as abluções noturnas que renovavam nos crentes a energia da vida pura e feliz. Tlaloc, deus da chuva é o garantidor da criação que se renova. Quetzacoatl, a Serpente emplumada, é um deus que tem este universo simbólico da água em sua mitologia.
O povo Maya
Na América Central, o povo Maya tem uma civilização que abarca milênios. Sua cultura é centrada na “mãe-terra” e no “milho sagrado”. A sabedoria de conseguir grandes culturas de milho em regiões áridas e secas do alti-plano vem da sabedoria de uma irrigação – modelo de agricultura alternativa
– e de respeito pela água que embeleza os altos montes da Guatemala e dos países vizinhos. Chac é a divindade da chuva, protetora da humanidade .
O culto andino da água à Mãe Terra
Os índios dos Andes acreditam que Viracocha, suprema manifestação de Deus, vive nas águas do Titicaca, o lago sagrado. A partir de sua morada no lago, ele, saiu para a terra, criou os primeiros seres humanos, depois corrigiu-os. Ele os orienta e lhes dá sustento.
Para as comunidades andinas, a Água é o primeiro presente divino, sendo que o ser humano é visto como formado mais de água do que de terra, crença que a ciência confirma. Muitas famílias andinas guardam o costume do “rito da oferenda da Água a Pacha-Mama”. Assim que a mãe de família acorda, (em certos grupos quíchua, o mesmo costume é feito pelo pai e não pela mãe), abre a porta de casa e à frente da porta, olhando na direção do sol que nasce, deve derramar um pouco de água na terra, fazendo uma saudação à Pacha-Mama.
Uma das fórmulas que encontrei no alti-plano peruano dizia: “Ofereço esta água da vida à Mãezinha Terra pela fecundidade do solo e para que nos seja favorável, de dia e de noite. Que o avô sol nos dê as águas do céu e a avó lua torne fecundos os animais e o clima nos seja favorável”.
Cada ano, no início da primavera, as comunidades indígenas associam a divindade da Água à
Lua cheia e as homenagens à fecundidade da Terra. No Equador, centenas de comunidades indígenas rendem homenagem à fertilidade da Terra na festa do Kulla Raymi que festeja a feminilidade e honra o pai Sol, a irmã Lua e a irmã Chuva.
– Os Orixás das águas e das cachoeiras (A Água nas religiões afro-brasileiras)
“Eu vi Mamãe Oxum na cachoeira, sentada na beira do rio… colhendo lírio, lírio, eeee, colhendo lírio êeeááá
colhendo lírio, êee para enfeitar o teu congá”
(canção popular)
As religiões afro-brasileiras têm sua primeira inspiração em cultos africanos muito antigos. A África é um continente que, como já vimos, tem em sua natureza, regiões com muita água e outras que, desde séculos são desérticas e carentes de água. As populações que foram seqüestradas e trazidas como escravas à América, vieram principalmente da costa atlântica da África e de regiões mais ocidentais. Majoritariamente foram os povos de cultura banto, nagô, fon e iorubá. Nessas regiões, os rios são sagrados e vários nomes de Orixás (manifestações divinas na cultura Iorubá) ou Inquices (espíritos divinos na cultura banto) são nomes de rios (Oxum, Oyá, Iemanjá, etc).
A primeira organização das religiões de matriz africana chegou a nós através do Candomblé. Ele tem formas ou expressões culturais diversas, como o Candomblé da nação de Angola, com seus inkices e o de origem Iorubá, popularmente chamado de “Candomblé de Ketu”: a religião dos Orixás.
Um elemento importante na espiritualidade afro é a inter-relação de todos os elementos da vida. Principalmente, para a religião dos Orixás, o Sagrado é vivido aqui e agora, em todos os aspectos da vida cotidiana e se manifesta principalmente em cada elemento da natureza. Destes, a água é um elemento primordial. Nas comunidades de Candomblé, ao lado de cada assentamento de Orixá, tem, necessariamente, uma quartinha ou moringa de barro, contendo água pura e límpida.
Vários Orixás do Candomblé – como Iemanjá, Oxum e Oba – têm nomes de rios africanos da região da Nigéria e Daomé. No Brasil, Oxum é identificada com a água doce dos rios, fontes, lagos e cachoeiras. Normalmente, em cada templo da religião dos Orixás, existe uma fonte sagrada. E o povo venera em cada nascente de água doce a morada de Oxum, manifestação divina na beleza feminina.
A Umbanda é uma inculturação mais urbana das religiões afro. Assume elementos do espiritismo kardecista, de tradições e crenças indígenas e ainda do catolicismo popular. Sua visão sobre a Terra e a Água tem muito em comum com todas as religiões afro e indígenas. Deus é contemplado em sua presença e manifestação no universo e em cada ser da natureza.
No 1o Congresso da Umbanda foi aprovada a seguinte declaração: “A filosofia da Umbanda consiste no reconhecimento do ser humano como partícula da divindade, dela emanada límpida e pura e nela finalmente reintegrada ao fim do necessário ciclo evolutivo, no mesmo estado de limpidez e pureza, conquistado pelo seu próprio esforço e vontade (… ) O Universo é imantado. É o espaço infinito cheio da energia cósmica que é o Corpo de Deus”.
Várias comunidades de Umbanda ministram o batismo para crianças e compreendem este rito com água como o primeiro contato com os Guias espirituais. Por isso, deve ser realizado no primeiro mês do nascimento. A água deve ser “de cachoeira e luz”. “Conforme outro autor, em outras tendas, “o batismo é feito com água da chuva apanhada recentemente. Caso não tenha chovido nos últimos dias, deve-se apanhar água de cachoeira ou nascente pura”. A Água é o elemento que põe a pessoa batizada em contato com seus Guias espirituais e serve também para banhos de limpeza ou “descarrego”.
Esses ritos iniciáticos (sempre se nasce e se renasce nas águas) existem também nas tradições dos Orixás, especialmente nas antigas casas de São Luiz do Maranhão. Um pesquisador das comunidades do rito Fon descreve: “Antes e depois das festas e de outras cerimônias, o pessoal da Casa da Mina usa banhos de limpeza feitos com ervas e com água guardada nas jarras do come. Antes das festas, o banho é
de purificação e depois, para se voltar com o espírito preparado. Os banhos, ou seja, a água sagrada, ficam numa bacia no altar de Nana e são usados pelos tocadores e dançantes, sendo também distribuídos entre amigos, em pequenas garrafas para passar no corpo”.
– A Água nas histórias dos Orixás
A história de Nanã
Para a tradição ketu, o mais velho dos Orixás se chama Nanã. É o Orixá (ou manifestação divina) na criação primordial, ou seja na lama, da qual nasceu os seres humanos. Nanã é o Orixá da água, misturada à terra para formar a vida. É interessante porque, nessa visão, a imagem do Deus criador é feminina e ancestral. Nanã é considerada esposa de Oxalá, o pai dos Orixás primordiais. É a forma como o mito, retomando a memória dos antepassados africanos, revela essa junção de masculinidade e feminilidade em Deus criador.
As águas de Oxalá
Um dia, Oxalá quis visitar Xangô no reino de Oió. Consultou o Ifá, para saber se poderia viajar. Este respondeu que ele não deveria ir. Oxalá não quis escutar e viajou. Ao chegar no reino de Oió, um menino (identificado ao Exu) lhe pediu um favor: “Segure aqui por favor!” Era um pote de dendê. Oxalá segurou. Dendê é considerado Kisila – proibido – para os filhos de Oxalá e o velho ficou todo lambuzado. Conseguiu limpar-se e continuou o caminho. Um homem, outra manifestação do Exu (Exu Elepô) lhe pediu para segurar um objeto. Era carvão e sujou a roupa de Orixá. Este ia limpar-se quando viu o cavalo de seu filho Xangô solto pelos pastos. Domou o cavalo e o prendeu para entregar ao filho. Foi surpreendido pelos soldados do reino que buscavam o ladrão. Ele tentou explicar que era o rei Oxalá que vinha visitar o filho. Vendo-o sujo de carvão e maltrapilho, os soldados não acreditaram e o puseram na prisão, onde ele ficou sete anos. Quando Xangô, procurando o pai, o descobriu na prisão, fez com que todos carregassem Oxalá como num rito de expiação e jogassem água pura sobre ele. Até hoje, em setembro, as casas tradicionais de Candomblé repetem este rito, em uma vigília de madrugada, derramando água no assentamento de Oxalá.
Povos indígenas dos Andes e de outras regiões têm em meados de setembro a festa pela vinda das chuvas. Também no Candomblé, em meados de setembro, se realiza a festa das “Águas de Oxalá”. Na Bahia, a tradição das águas de Oxalá deu origem ao costume das mulheres baianas lavarem a escadaria da Igreja do Bonfim. No sincretismo, associavam o Senhor do Bonfim a Oxalá e vinham lavar a sua morada. Antigamente lavavam a Igreja inteira. A hierarquia católica proibiu. Atualmente, lavam as escadarias externas.
A viagem de Iemanjá
“Iemanjá era muito independente: amava a liberdade, as viagens e queria fazer tudo de sua própria cabeça. Um dia, cansada da vida que levava em Ife, resolveu viajar ao Oriente, sem avisar ao marido, o Olofin da cidade. Este mandou o exército buscá-la. Quando os soldados quiseram prendê-la, ela jogou por terra um jarro dado por seu pai que continha uma poção mágica. Assim que o jarro se quebrou, Iemanjá se transformou em um rio que dava diretamente no mar, onde era o palácio do Olokum, seu pai, o “senhor das profundezas”.
Obá, o Orixá das pororocas
Obá é o nome de um rio da costa ocidental africana e tornou-se, na crença dos fiéis, uma aiabá velha, feiticeira poderosa, líder da confraria de mulheres guerreiras, a sociedade Elekô. Por isso domina todos os elementos. Mas, seu local preferido é a pororoca, o barulhento encontro das águas. Essa característica de morar no encontro das águas faz desse Orixá de personalidade tenaz, a solucionadora das causas impossíveis.
– A Água no simbolismo africano
“Todo ser humano nasceu da água e na água renascerá”
(Cântico dos Dogons de Mali)
Quando as culturas afro-americanas veneram na Água um Orixá ou Inquice, esta espiritualidade vem da herança propriamente africana. Nas mais antigas culturas da África, a Água era adorada como uma divindade. No Egito, o rio Nilo era considerado uma divindade que desceu do céu para aliviar a terra seca. Uma primeira fonte da cultura afro-americana é a tradição bantu. “Para os Bantu, o lugar da primeira criação é um grande buraco d’água, borbulhante, ou um leito de orvalho que eles situam no Oriente. No território, hoje conhecido como República dos Camarões, a água como elemento matricial é associada aos peixes. Entre os Bamilékés, do oeste desse país, o pai abençoa sua filha, no dia do seu casamento com água em que se misturam folhas de uma planta que simboliza a doçura e a concórdia.
Em muitos países da África sub-saariana, os ritos que envolvem o nascimento são estreitamente associados à água, princípio de vida. Quando se tira a placenta, para confirmar que a criança verdadeiramente nasceu, uma das mulheres que assiste a parturiente toma água em sua boca e dela asperge ligeiramente a criança. O frescor da água a faz gritar. Ela recebeu oficialmente o dom da palavra, através da água que lhe foi aspergida.
Os Dogons de Mali associam a água, semente fecundante, à Luz e à palavra. Água seca e palavra seca expressam o pensamento que não se torna diálogo. Eles atribuem a origem do mundo ao Deus supremo Amma que criou o seu dublê Nommo, deus da água. Eles crêem que na música, a melodia é óleo e o ritmo é água, palavra”.
De um jeito ou de outro, a África inteira lembra ao mundo que a Água é sagrada e devemos tratá-la como um dom divino.
– O sentido da Água e da Terra no Hinduísmo.
(Glória a Ti, Vishnu, senhora das águas dentro de nós e no universo!”
Se as tradições indígenas e as negras são diversificadas e é difícil encontrar pontos de coincidência, os caminhos espirituais do Oriente são ainda mais ricos, complexos e difíceis de sintetizar. Os ocidentais costumaram chamar de Hinduísmo a um conjunto de religiões distintas e separadas (bhramanismo, vishnuísmo, etc) que têm em comum o fato de conviverem na Índia e em outros países vizinhos, até o Extremo Oriente.
No sudeste da Ásia, desde tempos antigos, o povo acredita e cultua deuses e heróis míticos que se revelam em certos lugares especiais da terra e com os quais os fiéis se encontram, de modo particular, quando se banham no rio Ganges ou em outros rios sagrados da Ásia.
De acordo com muitas tradições, o deus Bhrama nasceu no lago sagrado de Pushkar. Os fiéis se purificam, banhando-se no lago. Vishnu é identificada com uma divindade da água e tem poder criador e destruidor. Os crentes de Vishnu são conhecidos pelo sinal da deusa em sua fronte e, às vezes, até nas paredes das casas e lojas de negócio. O sinal é o desenho de um U traçado a partir da base do nariz com as duas linhas tomando cada lado do rosto. Outro símbolo importante é o desenho de um triângulo com a ponta voltada para baixo. Este triângulo é símbolo da água e do princípio feminino que, nessa cultura é identificada com o elemento aquático.
Varuna é um antigo deus védico equivalente a Phura-Mazda, outra divindade das Águas. Os fiéis crêem que o universo originou-se na água, como em um útero materno. Por isso, toda pessoa renasce espiritualmente na relação com a Água. A Água é matéria uterina da divindade, derramada na Terra. É nos rios sagrados e em fontes especiais que se fazem os ritos de renascimento espiritual e também os ritos para pedir saúde e proteção.
De doze em doze anos, na confluência dos rios Ganges, Yamuna e Saraswati, três rios sagrados da Índia, milhões de peregrinos das grandes confissões religiosas se reúnem. É a “A Grande Festa da Ânfora” (Maha Kumbh Mela). Conforme o mito, um dia, deuses e demônios revolveram o oceano à procura do pote (kumbh) contendo o néctar da imortalidade (Amrit). Quando Dhanwantari, o
médico dos deuses, apareceu com o Kumbh nas mãos, houve uma grande luta entre os deuses e os demônios, para dele se apropriar. Durante a batalha, algumas gotas de néctar caíram em quatro lugares diferentes: Allahabad, Haridwar, Nasik e Ujjain. Desde então, quando os planetas se alinham na mesma posição, peregrinos e devotos comemoram esse evento divino. Kumbh Mela acontece cada três anos em rodízio, nos quatro lugares sagrados em que caíram gotas do néctar da imortalidade. Por isso, em Allahabad, a festa acontece só a cada 12 anos, coincidindo com o giro do planeta Júpiter através do zodíaco.
O objetivo do banho nos rios sagrados é de purificação, libertação do ciclo de renascimentos e mortes, para que a alma se torne uma com o Divino. Entretanto, para o povo é rito de vida e saúde. Todos querem estar dentro d’água quando, na lua nova, os deuses e deusas do céu, vêm, em procissão, se banhar. Aí cai um pouco do néctar da imortalidade e quem, naquele momento, está dentro d’água o recebe.
Os jornais ocidentais chamam de “hindus” a multidão de peregrinos. Entretanto, ali se reúnem crentes do Shivaismo, do Vishnuismo, do Shaktismo, do Jainismo, do Budismo, do Cristianismo e de outras crenças. De janeiro a fevereiro de 2001, por quarenta dias, a Índia recebeu mais de 70 milhões de peregrinos. Foi um número maior do que todos os católicos que foram a Roma durante todo o ano de 2000, nas celebrações do Jubileu.
– A Água em outras tradições orientais
A China possui duas grandes tradições de pensamento: o Taoísmo e o Confucionismo.
Vamos perguntar ao Taoísmo o lugar da água em sua espiritualidade.
Lao-Tsé dizia que “governar uma grande nação é como cozinhar um pequeno peixe”. A filosofia do Taoísmo é a do cuidado com as coisas pequenas. Compara uma pessoa virtuosa à água que é doce, toma a forma do seu receptáculo, corre sempre na região mais profunda e alimenta tudo o que dela se aproxima. Assim Lao-Tsé descreve a “espiritualidade da água”. Seja como a água, limpa, transparente e sempre disponível a nutrir o universo. Tome a rota do amor.
A espiritualidade chinesa acredita que o corpo é submetido a mudanças graças à energia que se revela na Terra e se manifesta em cinco elementos: a água, o fogo, o metal, a madeira e a terra. Estes elementos influenciam nossas relações com o outro. De acordo com nosso temperamento, cada pessoa tem um elemento preponderante e que vai influir em toda sua vida. A harmonia entre essas diversas forças encontra sua expressão plástica no símbolo do Yin e do Yang em forma de círculo, o Yin significando o escuro e o Yang, a luz. Estes dois princípios determinam transformações cosmológicas e antropológicas que dão sentido a um princípio que os ultrapassa e lhes dá unidade: o Tao que alguns textos chamam de “Mãe da vida” e de todo ser, mas não em um sentido de um Deus pessoal.
O Taoísmo ensina a como harmonizar estes princípios. A poluição das águas e da terra é sinal de desordem nesses elementos. É sintoma de desequilíbrio espiritual.
O mundo está em permanente transformação. Percebe-se isso em três ciclos: nos da natureza, dia e noite, verão e inverno; nos processos de desenvolvimento e crescimento das plantas, animais e pessoas e na alternância de dois princípios, o criador e o receptivo. (K’yen é o elemento divino criador e K’ouen, o receptivo).
Também na Índia e em países vizinhos existe uma religião menos conhecida no Ocidente: a religião dos Sikhs. No idioma sânscrito, o termo sikh quer dizer discípulo. Assim se denominaram os seguidores do guru Nanak que, no Pendjab do século XVI, propôs uma reforma do Hinduísmo. Os sikhs sofreram depois certa influência do islamismo, mas continuam sendo uma dissidência de tradições do hinduísmo. Têm um livro sagrado, o Granth, que se aproxima bastante dos Vedas. Contam com Amritsar, a cidade sagrada, na qual construíram um lago artificial, ao qual chamam de “Lago da Imortalidade”, no meio do qual está o templo de ouro, centro da fé e sinal de que a verdade e a presença de Deus vêm do meio das águas. É uma espiritualidade cósmica e ecológica que pode contribuir hoje com uma atitude de respeito e comunhão com o universo.
– A Água nas tradições budistas
Ananda, discípulo favorito de Buda, cansado de uma longa viagem, chegou à beira de um poço. Lá ele pediu de beber a uma moça que ali encontrou, uma jovem da casta dos Candala. Esta o advertiu do perigo de impureza se ele recebesse água de uma mulher impura. Ele lhe respondeu: “Eu não te perguntei pela tua casta, nem por tua família. Só pela água, se puderes me dar”.
Também o Budismo tem diversas correntes. Em geral, todas insistem na precariedade deste mundo: “Buda diz que todas as coisas são precárias, sem duração e constantemente mutantes. Não existe nada no mundo ao qual possamos nos apegar. O Nirvana não está nas coisas que nos rodeiam”. Entretanto, se, de um lado, Buda propõe uma espécie de distância ou despojamento de tudo o que existe, ele insiste no absoluto respeito à vida e na compaixão irrestrita e total para com todos os seres.
Como acontece com o cristianismo e outras religiões, o Budismo inculturado por cada povo é, em vários pontos, diferente do caminho proposto pelos livros. Em lugares como o Sri Lanka e o Tibet, o Budismo se inseriu em tradições religiosas anteriores e existe grande sincretismo com outras crenças orientais. As escolas budistas mais espalhadas pela Índia ou pelo Japão incorporaram tradições mais antigas, algumas delas ligadas ao culto lunar e à água. No Japão, em muitas casas, no “altar” doméstico que os fiéis mantêm para suas meditações e oferendas, deve ter sempre um recipiente de água limpa e potável como primeiro sinal de relação com a vida.
O Budismo não tem uma especifica idéia de sacralidade ligada ao cosmos e às criaturas. Não crê em um Deus criador e nem em um princípio absoluto transcendente. Mas, o respeito à natureza é mais forte em comunidades e lugares de tradição budista do que em outras tradições por causa do sentido de compaixão que emana de Buda. A Compaixão é semente de vida em todos os seres e deve ser desenvolvida. Muitas escolas insistem na dimensão divina existente em todos os seres, desde os grandes e primordiais elementos da natureza, como a Terra e a Água, até cada ser vivo.
O Dalai Lama revalorizou esta Espiritualidade da Compaixão. Este une tradições budistas de outros paises com antiqüíssimos costumes tibetanos, por exemplo, os ritos de ablução, ligados, no budismo, não a ritos purificatórios ou de iniciação mística, mas a exercícios de meditação e relação com os espíritos dos antepassados, ainda não reencarnados.
Daisetz Taitaro Suzuki é um filósofo atual, teólogo budista que comenta os textos zen, ligando-os à mística cristã, especialmente ao Mestre Eckhart, considerado o maior místico cristão do Ocidente medieval.
Em um de seus livros, Suzuki explica: “Deus criou o mundo, levado por um instinto interior bem preciso: queria ver-se refletido na sua criação. A Bíblia diz que o ser humano é feito à imagem divina, mas não é só o ser humano. É toda a criação. Mesmo a menor formiga e a pulga mais desprezível, diz Mestre Eckhart, tem em sua essência, parte na essência de Deus. E, por causa desta essência, o mundo inteiro continua em movimento”.
– A visão espiritual da Água no Japão e na Indonésia
“O misogi (rito de purificação) se faz na água. Leva-se as mãos e a boca até uma água limpa. E ali com a cabeça na água se pede perdão e se pede luz para purificar o que se causou de poluição a uma fonte ou riacho”(Ritual xintoísta no Japão rural).
As fotografias que normalmente conhecemos do Japão nos faz ver o Monte Fugi. O Japão é um país de montanhas altas e belíssimas. Tem poucas terras aráveis. Desde antigamente, os japoneses pensam que a água é um dom e uma força da natureza. Eles crêem nos Kami, divindades que reinam nos lugares aquáticos. Cada riacho, cada fonte e cada rio possui o seu Kami. Esta crença faz com que o povo cuida religiosamente de cada riacho ou fonte de água. Planta árvores consideradas sagradas perto das fontes e mesmo no meio da corrente planta bambus.
Na espiritualidade xintô, venera-se a vida e se crê em sua perpetuidade. E esta
continuidade da vida é comparada à água que corre permanentemente. O fim da passagem da água pode ser visto como o fim da vida. Um poço ou rio que um monge ou espiritual ponha o seu bastão é porque tem Kami e protegê-lo é fundamental para garantir a vida de todos. Os mais velhos dizem que vários poços surgiram quando um espiritual enfiou o seu bastão no solo seco. Assim nasce a fonte sagrada.
No Japão moderno, há uma tensão entre os modernos que construíram barragens para ganhar dinheiro com a água e poluem os rios com resíduos agrícolas ou químicos das indústrias e as comunidades tradicionais que adoram os Kami nas fontes e riachos. Hoje, os sacerdotes Xintoístas lideram a campanha pela proteção dos rios, riachos e fontes. É o seu modo de proteger o culto dos Kami.
No Japão existem muitos festivais em honra à chuva e aos Kami. Podemos ver nesta tradição como a espiritualidade pode, hoje, tornar-se caminho alternativo de cuidado ecológico.
Na Indonésia, as populações nativas continuam cultuando seus deuses da natureza. No sul da ilha de Bali, até hoje, existe uma forma social de “sociedade de irrigação” chamada subak. As pessoas habitam em aldeias situadas em terras áridas e secas. O subak compreende terraços irrigados por um rio e estes terraços são de propriedade coletiva das famílias que ali plantam e produzem. Mas, antes de ser econômica, subak é uma unidade religiosa. As pessoas se sentem “escolhidas” para participar daquele trabalho. Há um rito para abertura da água na canalização feita no rio. Há um rito para a purificação da água, dá-se alimento aos deuses com água benta e oferendas. E então, pode-se plantar nos terrenos irrigados como um cumprimento de um voto. Tudo se faz com cânticos e gestos de oferendas a Deus.
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- – A Água da aliança no Judaísmo
“Uma pessoa justa e santa pode fazer subir o nível de água de um poço e atrair as chuvas benfazejas” (Crença dos judeus hassídicos) .
A tradição judaica nasce da Bíblia e, por isso, não é possível falar do Judaísmo antes de falar dos textos bíblicos, coisa que faremos no próximo capítulo. Mas, a cultura judaica interpretou a Bíblia no Talmud, um livro específico e próprio da religião judaica.
O povo de Israel nasceu de tribos que viviam em uma região semi-árida ou mesmo no deserto. Para o povo bíblico, a terra é fundamental e é o objeto da primeira promessa de Deus a Abraão. Mas, a terra será para eles inútil se não tiver, ao menos uma fonte d’água potável e garantidora da vida. No Oriente Médio, o viver está mais ligado às fontes de água, que são raras, do que apenas a terra no sentido de território que também é importante.
A sabedoria com a qual o ser humano foi capaz de sobreviver em regiões desérticas se desenvolveu antigamente como expressão de uma relação espiritual com a Terra e a Água.
A associação da água com a Palavra de Deus faz com que os movimentos religiosos judaicos acreditam que quem é íntimo da Palavra tem certa força diante da água. Os Evangelhos contam que Jesus manda que as águas do lago se acalmem e estas lhe obedecem (Mc 4, 39). Nos círculos hassídicos, acreditava-se que um saddik (um justo, um santo) era capaz de fazer subir o nível de água de um poço e ainda de atrair as chuvas benfazejas.
Nos comentários da Torá, o primeiro e mais freqüente símbolo da Lei de Deus é a água. O Talmud, mas já a Torá, associam continuamente a Água à Lei de Deus. A Água representa o conhecimento da Palavra de Deus.
Foi esta espiritualidade que fez com que, há mais de 2000 anos, a civilização nabatéia foi capaz de usar técnicas próprias para fazer oásis e tornar fértil o deserto do Neguev. Desde tempos pré- históricos, grupos humanos ligaram a Arábia à África, através do Sinai. E a Bíblia tomou como relato fundador da fé uma travessia de pessoas oprimidas do Egito à terra de Canaã, através do deserto e pelas montanhas do Sinai. A Bíblia conta que Deus lhes deu água de beber de um rochedo e, durante 40 anos, isto é, um tempo longo e indefinido, lhes garantiu o pão de cada dia e a água para beber.
Nada ilustra melhor esse fato do que os ritos das festas e, em particular, da festa de Chavout, a festa do
dom da Torá. Até hoje, as comunidades marroquinas costumam aspergir-se mutuamente com água no dia dessa festa.
Também nos chamados “dias terríveis”, os dez dias mais solenes do calendário judaico, dias que vão do Roch Hashaná (o Ano Novo) ao Yom Kippur ( O dia do perdão), é na água que os fiéis devem simbolicamente lançar os seus pecados. Será que vem daí a oração do salmo 51: “Lava-me, Senhor, das minhas culpas”?
O gesto anual de jogar suas faltas na água, água corrente ou viva chama-se Tachlickh e está na base de muitos ritos de pureza e ablução no judaísmo. Desde mais antigamente, o judaísmo conhecia abluções rituais. Eram gestos de pureza ritual para entrar no templo e não tanto para apagar pecados. Não eram ritos propiciatórios. O Êxodo conta que o povo inteiro lavou suas roupas antes de receber a Torá no Sinai (Ex 19, 10- 14). Davi se lavava antes de ir à “casa de Deus” e o sacerdote antes de realizar os sacrifícios (Cf. 2 Cr 4, 6; 30, 17). Tratava-se de ablução (taher) e não se imersão (tabâl). Este último é o verbo que, transposto ao grego, deu baptein, ou baptizein: batizar, mergulhar.
Nos tempos bíblicos, ninguém se aproximava do templo ou do culto sem cumprir uma série de abluções rituais. Era a água que purificava o fiel para aproximar-se da casa em que habita o nome do Altíssimo. Quase todas as festas tinham ritos com água.
O batismo é um rito judaico. Desde um século antes de Cristo, quando pessoas de outras nações convertiam-se ao Judaísmo, se eram adultas, os rabinos incluíam um rito de mergulho purificador em uma fonte, uma espécie de batismo. Nos homens, isso era feito oito dias depois da circuncisão. O Talmud da Babilônia explica: “Todo prosélito é como um recém-nascido”.
Nos últimos tempos do Primeiro Testamento, os judeus praticavam banhos rituais nos miqwaot (o singular é miqweh), bacias rituais de dois por quatro metros, talhadas na rocha. Ali cabiam até 40 seah de água, ou seja, 600 litros. Tinham dois ou três degraus internos para possibilitar com mais facilidade o mergulho. E recebiam água da chuva, vinda diretamente de Deus.
Desde o século II, estas bacias se encontravam em muitos espaços, como nas portas do Templo e nos subsolos das casas de sacerdotes em Jerusalém. Estes banhos rituais vieram por influência helênica no judaísmo.
Na cultura judaica, há uma festa que não consta na Bíblia, embora esteja ligada à Sukkot (festa das Tendas), uma das solenidades previstas na Torá. Nos tempos bíblicos, Simhat bet há- choevat era a cerimônia que se realizava no templo todas as noites após o primeiro dia de Sukkot até o fim da festa. Sukkot é uma festa associada ao começo da estação das chuvas. O rito da água consistia em danças com a invocação do Espírito Santo e se tirava água da fonte de Siloé e se levava para o altar no templo. Baseava-se em Isaías 12, 3: “Vocês tirarão com alegria água desta fonte de salvação”. A mishná diz: “Quem nunca viu a alegria da cerimônia de tirar água da fonte do templo não sabe o que é alegria” (Sukkot 5, 1). Nesta festa, os sábios dançavam com o povo ao som de uma música tocada pelos levitas, velavam a noite inteira e cochilavam no ombro do seu vizinho. Em toda a cidade de Jerusalém, acendiam-se fogueiras de alegria. Hoje, nos Kibbutz de Israel, há tentativas de ressuscitar esta festa, sob uma forma moderna.
– Em nome do Deus misericórdia ( A Água na tradição do Islã)
“Nós criamos cada ser vivo a partir da água” (Corão – 21: 17).
Islã significa “abandono”, submissão e obediência total e incondicional a Deus. Este caminho religioso foi comunicado pelo arcanjo Gabriel ao profeta Muhammad (ou Maomé) no século VII (ano 622) na Arábia. O Islã, nascido no deserto e a partir de uma cultura do deserto, não desenvolveu muito a relação religiosa do ser humano com a natureza. Apesar disso, a água é um elemento importante na vida dos muçulmanos. O profeta Maomé diz: “No dia em que o Deus altíssimo criou os céus e a terra, criou cem misericórdias colocando cada uma em uma de suas obras, de modo que tudo o que se encontra no céu e na terra tem aderido ao seu ser uma misericórdia do Altíssimo. A misericórdia que firma a terra é aquela
que, por sua virtude, torna as mães amorosas para com os filhos e filhas recém-nascidos e torna as feras e pássaros capazes de amar suas crias. É esta misericórdia (materna) que será a base através da qual, no dia da ressurreição, Ele vai acrescentar à criação todas as suas misericórdias”.
Está escrito no livro sagrado do Corão: “Na fonte de vida (Al Muhyi), na água que Alá envia do céu e com a qual ele revifica a terra mesmo que esta tenha morrido, espalhando a água sobre todas as espécies, na disposição dos ventos e nas nuvens que evoluem entre o céu e a terra, tudo isso certamente é sinal para as pessoas racionais” (Surata 2, 164).
Deus como criador (Al Khaliq): “O céu e a terra faziam uma massa única que nós separamos (…) Nós criamos cada ser vivo a partir da água” (21: 17).
Deus manifesta a diversidade (Al Wasi): “Alá criou cada animal a partir da água. Alguns se movem sobre o ventre, outros marcham sobre duas pernas e outros sobre quatro patas. Alá criou o que lhe agrada”(24: 45).
Deus como fornecedor (Al Razzaq): Vejam os grãos que vocês comem. Quem as plantou no solo? Vejam a água que bebem. Foram vocês que a fizeram cair do céu? Não fomos nós que lhes damos?”(56: 63- 70).
Em um verso célebre, o livro sagrado do Corão parecia advinhar a realidade atual quando diz: “Apareceu a corrupção sobre as terras e sobre as águas, como resultado do trabalho do ser humano. Alá deixa de que eles sintam o resultado do que eles mesmos fizeram, afim de que ainda possam reencontrar o caminho para ele” (30: 41).
Um dos pilares do Islamismo é o dever da peregrinação a Meca. Na peregrinação, a pessoa devota deve reconhecer que o templo de Deus não é a casa de pedra, mas o coração do crente e o esplendor do universo. Uma das orações sugeridas é a de Hallaâj: “Eis-me aqui para Ti que és o íntimo do meu segredo mais íntimo. Tu és meu confidente. Eis-me aqui para ti, finalidade e sentido do meu ser”.Destes sinais, o mais comum é a bondade de Deus em revelar fontes escondidas no deserto. Um dos rituais da peregrinação é o Haj e reconstitui a busca angustiada que Agar, mãe do profeta Ismael, viveu no deserto até encontrar a fonte de Zamzam. Esta fonte até hoje alivia a sede de milhões de peregrinos em Meca. As pessoas dão a volta na grande rocha da Kaaba e depois, se inclinam, se prosternam e a tocam com as mãos. Esta pedra é considerada a mesma da qual Deus se serviu para fazer jorrar água e saciar a sede da escrava Agar e do seu filho Ismael (Cf. Gn 21).
Alguns provérbios Tuareg revelam uma espiritualidade na qual a água tem um lugar central: “À tua camela, pede leite; à tua esposa um filho, mas água só podes pedir a Deus”. “Deus criou países ricos de água para que neles as pessoas vivessem. E criou os desertos para que neles as pessoas pudessem buscar a sua alma”.
É normal que nas civilizações do deserto, o paraíso seja visto como um jardim bem irrigado. No Corão, o paraíso é visto como um jardim fechado por um muro, sendo banhado por dois rios de quatro braços, um de água, outro de leite, o terceiro de mel e o último de vinho.
A mística islamita nos convida a contemplar em toda a criação estes sinais da misericórdia de Deus. Para significar a importância da água na vida do fiel, o Islã proíbe beber água durante os dias do Ramadã.
Uma antiga lenda conta que, um dia, Alá, irritado com os seres humanos, decidiu punir a humanidade fazendo cair sobre a terra um grão de areia para cada pecado cometido por alguém. Foram tantos os pecados humanos que a areia cobriu uma longa extensão da terra. Onde antes havia florestas, rios e campos verdes, restou apenas o Saara, o deserto mais longo do mundo. Único sinal que Deus deixou de que ainda existe o paraíso: os oásis espalhados em meio a este imenso mar de dunas e de areias.
– A Água nas tradições cristãs populares
“Prepara-se a pessoa para a última viagem com uma vela e muita água benta” (Conselho de uma rezadeira popular).
O cristianismo nasceu de uma dissidência do Judaísmo. Durante anos, as comunidades cristãs eram um movimento profético dentro das sinagogas. Este movimento nasceu ligado aos discípulos de João Batista, como o próprio Jesus se considerou no início de sua missão. Uma pessoa se torna cristã pela fé (adesão ao Reino de Deus) e pelo sinal do batismo (em grego: mergulho). Vamos dedicar um capítulo especial à Água na Bíblia e na Teologia Cristã. Aqui, recordamos apenas que o cristianismo, no encontro com outras culturas e tradições, foi recolhendo uma grande riqueza de ritos e crenças ligados à Água.
Em muitas regiões, uma das mais importantes festas cristãs é a celebração do nascimento de São João Batista no 24 de junho. Todos sabem que este dia é o solistício de verão no hemisfério norte e de inverno no sul. Poucos, no entanto, sabem que esta festa está ligada a antigos cultos pré-cristãos para se obter chuva e receber do céu a água benfazeja.
Os mais antigos templos cristãos continham uma fonte ou piscina internas. Em muitos casos, o batistério é uma construção independente, tão trabalhado artisticamente quanto a nave do templo. Assim como do templo de Jerusalém, do santuário saía uma fonte simbolizando a vida dada por Deus, as Igrejas eram construídas em torno da água do batismo e da pedra do túmulo dos mártires sobre a qual se celebrava a ceia do Senhor. Até hoje, muitas Igrejas evangélicas mais novas batizam seus fiéis em rios e fontes de águas vivas. Para algumas Igrejas pentecostais, o rio em que os fiéis são batizados se constitui como um verdadeiro templo.
Isso que acontece, hoje, dessa forma em igrejas novas, não é muito diferente da tradição antiga. Assim como nas religiões orientais, muitos santuários de peregrinação cristã e grandes movimentos da fé nascem ligados a fontes, rios e lagos.
Enquanto na Tebaida (Egito) e na Palestina, os monges orientais começaram o movimento monástico em lugares áridos e desertos, o movimento monástico do Ocidente nasceu, no século IV, na costa do Mediterrâneo, com João Cassiano e ganhou corpo especial com a figura e a regra de São Bento (século VI). Bento de Núrsia começou o seu itinerário monástico e chegou a fundar doze mosteiros em cavernas e pontos íngremes de Subiaco (sobre o lago). A regra dos mosteiros prevê habitualmente ritos como lavar os pés dos hóspedes e de cada pessoa que chegava ao mosteiro como sinal de que se reconhece em cada pessoa que chega à comunidade a pessoa de Jesus Cristo.
Em todo o mundo, algumas devoções marianas têm como pré-história, ou pano de fundo, antigos ritos e cultos à divindade da Água e da Terra. Muitos dos mais famosos santuários marianos contêm uma fonte milagrosa. Em muitos lugares do mundo, o povo católico simples tem muita devoção à água benta que serve para abençoar as pessoas, para curar doenças, afastar maus espíritos e benzer objetos e imóveis.
No Brasil, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, considerada milagrosa e que se tornou
padroeira do país, apareceu no século XVIII, dentro do rio Paraíba do Sul. Esta imagem, retirada das águas, é a origem do culto mariano mais importante do catolicismo popular brasileiro.
Na Bolívia, a devoção a Nossa Senhora de Copacabana está ligada ao lago sagrado do Titicaca. Vem do culto pré-cristão à Pacha-mama e de tradições indígenas que associam o lago à morada de Deus. No sincretismo cristão, a Mãe-Terra tomou forma da Virgem Maria e o seu culto está ligado às margens do lago sagrado.
Na Europa, em meio ao cristianismo popular, até hoje, subsistem antigos costumes pré- cristãos, ligados ao culto da natureza. As pessoas continuam a usar as fontes e poços como instrumentos de revelação e de cura. É junto a alguma fonte que se dão várias aparições marianas. Em vários países, ainda se encontram fontes “milagrosas” e que curam diferentes males. Mais ligadas a cultos populares, invocam Santa Clara para os problemas da visão, Santo Antônio para problemas intestinais, Santo André contra a coqueluche e cada culto desses ligado a uma fonte.
Há lugares nos quais as moças se ligam às fontes para conseguir um bom marido e filhos.
Para isso, é importante beber das águas de tal poço ou nele lançar moedas.
Para um livro de espiritualidade que o CEBI está preparando, Mercedes Lopes conta: “No interior de Minas Gerais, pude observar um ritual singelo e inocente. Era uma região onde normalmente
não chovia entre os meses de junho a agosto. Passei por ali já no final de novembro e ainda não havia chovido. O pessoal da comunidade esperava a chuva para fazer a roça. O gado, magro, caminhava devagar, procurando alguma coisa para comer. A paisagem e os rostos eram tristes…Pairava no ar a ameaça da fome..
Uma tarde, um grupo de crianças caminhava em direção a uma grande cruz de madeira que ficava no alto de um morro. Iam carregando água em garrafas de vidro ou em latas e cantavam assim:
“São Barnabé, lá do alto da serra
vai pedi Nosso Sinhô prá mandá chuva na terra chuva que nos molha e pão que nos consola
que nóis somos pecadô, mas tenha dó dos inocente”
tChegando no alto do morro, derramavam a água no pé da cruz, sempre cantando. Aquele singelo ritual ficou na minha memória. Percebi que aquelas crianças estavam fazendo um ofertório daquilo que mais desejava sua comunidade, naquele momento: a água, símbolo da vida. Sem água é impossível viver.
O cristianismo popular resgata antigos costumes e pode nos ajudar a restituir às pessoas a veneração pela água como sinal e instrumento do amor divino. Ao mesmo tempo, precisamos refletir sobre um sério desafio.
Canta um clássico baião de Luiz Gonzaga e Hervé Cordovil:
Na terra seca quando a safra não é boa, sabiá não entoa não há milho e feijão. Na Paraíba, Ceará, nas Alagoa.
Retirantes que passam vão cantando seu rojão. Tra la la la la la Meu São Pedro me ajude, mande chuva,
chuva boa, chuvisquinho, chuvisqueiro, nem que seja uma garoa. Uma vez choveu na terra seca, sabiá então cantou!
Houve lá tanta fartura que o retirante voltou, Tra la. Oi graças a Deus, choveu, garoou.
No nordeste brasileiro e em outras regiões do mundo, houve um tempo no qual missionários cristãos ensinavam ao povo que a seca é castigo de Deus e a privação de água é por causa dos pecados do povo. Isso está de tal forma arraigado na cultura dos antigos que se alguém diz que a seca se dá por fenômenos naturais ou que a má distribuição de água tem a ver com a injustiça humana, é visto como sacrílego ou ateu. É necessário respeitar e valorizar a espiritualidade popular que vê na água sacramento de Deus, mas não facilitar esta visão ahistórica, resignada e injusta com Deus, força de vida e de libertação.
A Água em outras tradições antigas e atuais
“Se o ser humano não usar a água de acordo com a vontade divina,será afligido por uma sede que os oceanos todos não poderão apagar” (Abdu’l- Baha, profeta da religião Baha’i)..
Pierre Emy, professor na Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo, explica: “Há dois tipos de águas: as que vêm do alto e as que surgem da terra. Conforme o modo de pensar antigo, o céu e a terra formam um casal. O céu macho fecunda a terra fêmea pela chuva para fazer nascer seus filhos que são os vegetais. Neste sentido, a água de chuva é um líquido seminal e tem conotação masculina. Por outro lado, as águas das fontes e poços são claramente femininas e maternas. São águas do parto, sangue e linfa da terra, seiva que sobe do útero da terra-mãe”.
Até hoje, as religiões e caminhos espirituais expressam o seu fascínio pela água através de ritos cósmicos, iniciáticos e purificadores.
A Água na religião Baha’i
A fé baha’i dá muita importância à agricultura e à preservação do equilíbrio ecológico. Na espiritualidade dos Baha’i, a água tem uma importância central. Disse Abdu’l- Baha, profeta da religião Baha’i: “Deus criou a água e a fornece ao mundo. Decretou que ela seja usada para estancar a sede humana, mas sua utilização deve ser de acordo com o seu projeto divino. Se isso não se faz de acordo com a sua vontade, o ser humano será afligido por uma sede que os oceanos todos não poderão apagar”.
De acordo com os ritos baha’i, é fundamental usar para a limpeza água que não tenha sofrido alteração nem de cor, nem de gosto nem de cheiro. A limpeza da água usada no culto e nas limpezas do templo tem um significado espiritual e não só material. “Nas Sagradas Escrituras, os conselhos celestes são comparados à água. (…) Mesmo no mundo material, a limpeza corporal incita à espiritualidade e à pureza espiritual. Mesmo sendo de ordem física, cuidar da limpeza dos rios e dos cursos de água tem uma influência importante na vida do espírito” (Abdu’l- Baha).
Eis uma oração baha’i: “Meu Deus, meu adorado, meu desejo! Que língua pode expressar minha gratidão para contigo? Eu estava descuidado. Tu me despertaste. Eu me tinha afastado de ti, tu me deste a graça de voltar ao teu convívio. Eu era como morto; tu me reanimaste pela água da vida. Eu estava sedento. Tu me ressuscitaste pela onda celeste da palavra que sai da boca do Misericordiosíssimo.
Ó divina providência! Toda a vida vem de tua bondade. Não a prives das águas de tua generosidade e não afastes de nós o oceano da tua misericórdia…” (Abdu’l Baha) .
A Água nos caminhos espiritualistas contemporâneos
Alguns costumes e ritos da natureza que, há 50 anos, pareciam superados ou relegados a culturas muito particulares, como de comunidades aborígenes, reaparecem, valorizados, no mundo inteiro, por grupos espiritualistas e de sensibilidade ecológica como alguns movimentos ligados a New Age.
Um dos motivos que levam as pessoas a se decepcionarem com as igrejas cristãs é exatamente o fato de terem sido coniventes com a sociedade ocidental e capitalista em sua exploração destruidora da natureza. Em geral, são pessoas que, cansadas da técnica, buscam uma nova relação com o universo e consigo mesmas. Julgam as religiões como rios que, nas nascentes, têm suas águas puríssimas e transparentes, mas à medida que o rio atravessa cidades e caminhos, as águas vão ficando poluídas. O resultado é uma instituição religiosa mais caracterizada pelo poder hierárquico e pelo dogmatismo do que pela energia amorosa que vem de Deus e renova a humanidade. Como alternativa, as pessoas ligadas a estes novos grupos espiritualistas, desenvolvem três dimensões de busca espiritual:
- – Uma mística psicológica, baseada no auto-conhecimento, na relação com o melhor que cada um tem dentro de si mesmo e na busca de um equilíbrio humano e espiritual. Em alguns casos, tal percurso pode gerar uma espiritualidade intimista, egocêntrica e até narcisista. Esse risco, de modo algum, é monopólio dos grupos de Nova Era. Ao contrário, pode ser encontrado em qualquer igreja e religião, mesmo no clero católico-romano.
A possibilidade de algum extravio no caminho não justifica negar o valor do conjunto. Em todos os países da América Latina, esta sensibilidade tem contribuído para a revalorização de métodos de medicina indígena ou popular antes esquecidos ou rejeitados. Desses recursos, uma modalidade é a mais ampla diversidade de hidro-terapias e tratamentos com a água.
- – O segundo processo ou etapa desta espiritualidade é uma espécie de “mística cósmica”. Aprimora-se uma relação de comunhão e consciência de pertença ao universo. A pessoa se sente una com cada elemento da natureza. Esta sensibilidade cria uma relação de simpatia e adesão de muitas pessoas da sociedade atual às religiões consideradas “primitivas” ou da natureza.
- – Finalmente, um terceiro processo ou etapa consiste no fato de que alguns grupos se abrem à uma “mística dialógica”, uma abertura espiritual ao outro, um verdadeiro senso comunitário e em alguns casos até a descoberta de Deus como alguém e alguém, totalmente Outro e, ao mesmo tempo, intimamente unido a toda pessoa humana. Também nesta fase, as pessoas se abrem às diversas manifestações do Divino e aos mais diferentes nomes com que é adorada a divindade.
A espiritualidade destes grupos busca reunificar uma vida que a modernidade fragmentou demais. Para as civilizações antigas, tudo era religioso e não se distinguia o culto e o cultivo, os banhos sagrados e os profanos. Na tradição piedosa judaica, budista e em outras religiões, quando alguém se levanta pela manhã e lava o rosto, recita uma oração ou mantra, enquanto faz suas abluções. Isso significa que a pessoa faz, ao mesmo tempo, um gesto higiênico e um rito litúrgico pessoal. As duas dimensões nunca estão separadas. No início, o batismo era um mergulho para a vida nova porque significava conversão, mas servia, de fato, para limpar o corpo empoeirado e suado pela caminhada no deserto. Certamente, uma das “pobrezas” da cultura moderna é esta dissociação entre o real e o simbólico. Nesse sentido, as religiões populares, indígenas e afro, como também estes caminhos espirituais alternativos têm razão em buscar a unificação dos diversos elementos. Uma nova forma espiritual de nos relacionar com a água pode nos ajudar neste caminho de integração com o cosmos e conosco mesmos.
Aqui, vimos algumas tradições. Poderíamos percorrer muitas outras. Aqui está apenas uma amostra com algumas mais universais e conhecidas. Elas nos confirmam que a água pertence ao patrimônio simbólico de todas as culturas e retligiões. Em todos os continentes, o ser humano projeta sobre a água a realização de suas esperanças e dos seus temores, a promessa de vida e a ameaça de morte que ele sente. A água carrega tudo isso. Secas e inundações são sinais da dificuldade de controlar o poder da água.
“Queremos ser felizes,
como os flagelados da cheia, que perderam tudo
e dizem-se uns aos outros nos alojamentos: ‘Graças a Deus, podia ser pior!” (Adélia Prado)
religiões?
Ao invés de fazer um resumo do capítulo, proponho que você responda:
- – Como você resumiria o lugar ou função que a Água representa para a maioria das
- – O que sobre a Água, ou através da Água, Deus revela a você a partir de religiões diferentes da sua?
A Espada, a ÁRVORE, a pedra e a água
(Uma fábula escrita pelo Subcomandante Marcos – Chiapas)
O velho Antônio mordisca o cachimbo. Morde as palavras e lhes dá forma e sentido. Quando o velho Antônio fala, a chuva se detém para escutá-lo, a água e a escuridão repousam. Nossos avós tiveram de enfrentar o estrangeiro que veio conquistar estas terras. O estrangeiro chegou e impôs um outro modo, outra palavra, outra fé, outra justiça. Era a sua justiça adaptada à tarefa de enriquecê-los, empobrecendo a nós. Seu deus era o ouro; sua fé a superioridade; sua palavra, a mentira. O seu modo de ser era a crueldade. Os nossos guerreiros o enfrentaram. Ocorreram grandes batalhas entre estrangeiros e nativos porque precisávamos defender estas terras da destruição. Mas, a força que movia o estrangeiro é poderosa. Grandes e bons guerreiros caíram e morreram. As batalhas prosseguiam. E alguns poucos guerreiros, mulheres e crianças tomavam as armas daqueles que caíam. Então, os mais sábios dos antigos contaram a história da espada, da árvore, da pedra e da água.
Contaram que nos tempos mais antigos, sobre as montanhas, os deuses estavam sozinhos e adormecidos. Não eram os deuses maiores que fizeram o mundo, os primeiros. E eram ociosos aqueles deuses. Enquanto isso, o homem e a mulher consumiam-se no corpo e no coração, no ângulo da madrugada. A noite estava silenciosa porque sabia o pouco que lhe restava. Então, falou a espada. “Era assim aquela espada”, inerrompe o velho Antônio, empunhando uma espécie de foice com lâmina dupla. A luz do fogo manda raios e um instante depois a escuridão retoma. O velho Antônio prossegue:
“Então, falou a espada: «Eu sou a mais forte e posso destruir vocês todos. A minha lâmina corta e dou poder a quem me empunha e morte a quem me afronta». “Mentira!” – disse a árvore – “Eu sou a mais forte, resisto ao vento e à mais terrível tempestade”.
A espada e a árvore combateram. A árvore se tornou forte e obstinada e enfrentou a espada. A espada bateu e cortou fundo, até destruir o tronco e derrubar a árvore. “Eu sou a mais forte”, bradou a árvore a sua vitória.
“Mentira! – disse a pedra – Eu sou a mais forte, a mais dura e antiga. Sou pesada e completa”. E lutaram a espada e a pedra. Dura e inquebrantável se fez a pedra e enfrentou a espada. A espada golpeou e golpeou e não conseguiu destruir a pedra, ma a reduziu a mil pedaços. A espada ficou sem fio e a pedra toda quebrada.
A espada e a pedra se davam conta da inutilidade do seu combate. Entretanto, a água do riacho não olhava a luta e não dizia nada. A espada a olhou e disse:
“Tu és a mais fraca de todos! Não podes fazer nada a ninguém. Eu sou mais forte do que tu!” E lançou -se a espada com grande força contra a água do riacho. Levantou-se um grande clamor e a água não opôs resistência aos golpes da espada. Depois de cada golpe, sem dizer nada, a água tornava a sua forma, dava as costas à espada e seguia o seu caminho para o rio que a levava à grande água que os deuses criaram para saciar a sua sede. O tempo passou e a espada continuava a ferir a água. Não percebeu que, com o decorrer dos dias, começou a se tornar velha e enferrujada, perdeu o fui e os peixes se aproximaram sem medo e dela zombaram.
Com grande dificuldade, a espada se afastou da água do riacho. Agora, sem gume e enferrujada, lamentou-se: “Sou mais forte do que ela, mas não posso lhe destruir. Ela, sem me combater, venceu”.
Passa a madrugada e vem o sol para fazer levantar-se o homem e a mulher que haviam
descansado para se renovar. O homem e a mulher encontraram a espada em um ângulo escuro, a pedra feita em pedaços, a árvore abatida e a água do riacho que cantava.
Nossos antepassados disseram: “Há vezes em que precisamos combater como se fôssemos a espada que enfrenta o animal, há vezes em que devemos lutar como a árvore que enfrenta a tempestade.
Outras vezes, devemos ser a pedra que enfrenta o tempo. Mas precisamos aprender quando precisamos lutar como a água que enfrenta a espada, a árvore e a pedra. Esta é a hora de nos tornar água e seguir nosso caminho até o rio que nos conduza à grande água onde bebem os grandes deuses, os primeiros, os que criaram o universo”.
“Assim, fizeram nossos avós – diz o velho Antônio. Assim devemos resistir, como a água resiste aos golpes mais fortes. O estrangeiro vem com seu poder, espanta os mais fracos e acredita que venceu. Mas, com o tempo, se torna velho e enrugado. Acaba em uma vida cheia de dor. Não compreende porque, tendo vencido, se sente tão perdido”.
O velho Antônio volta a acender o cachimbo e a lenha do fogão. Acrescenta: “Foi assim que os nossos sábios ancestrais venceram a guerra com o estrangeiro. O estrangeiro conquista mas não fica. Nós estamos aqui. Como a água do riacho, continuamos a caminhar para o rio que deverá nos conduzir às grandes águas divinas”.
A madrugada se foi e com ela o velho Antônio. Eu segui o caminho do sol para o ocidente, caminhando à margem e um riacho até chegar ao rio. Diante do espelho, entre o sol da aurora e o sol do poente, há a terna carícia do sol da meia noite. Um alívio que, ao mesmo tempo é ferida. Uma água que é sede. Um encontro que continua a ser busca……
Como a espada do velho Antônio, a ofensiva governativa de fevereiro entrou sem dificuldade nas terras zapatistas. Poderosa, a espada do poder golpeou o território zapatista. Como a espada da história do velho Antônio, fez grande barulho e espantou alguns peixes. Como no conto do velho Antônio, o seu golpe foi forte, pesado, mas inútil. Na água, a espada enferruja e envelhece. E a água? Continua o seu caminho, rodeia a espada e, sem dela fazer caso, chega ao rio que deverá conduzi-la à grande água onde matam sua sede os deus maiores que criaram o universo, os primeiros.
Planeta Água
Guilherme Arantes
Água que nasce da fonte serena do mundo e que abre o profundo grotão…
Água que faz inocente riacho
E deságua na corrente do ribeirão.
Águas escuras dos rios
Que levam a fertilidade ao sertão. Águas que banham aldeias
E matam a sede da população.
Águas que caem das pedras
No véu das cascatas, ronco do trovão, E depois dormem tranqüilas
No leito dos lagos…
Terra, planeta Água, Água dos igarapés
Onde Iara, Mãe d’Água, é misteriosa canção, Água que o sol evapora,
Pro céu vai embora virar nuvens de algodão.
Gotas de água da chuva,
Alegre arco-íris sobre a plantação. Gotas de água da chuva,
Tão triste, são lágrimas da inundação.
Águas que movem moinhos
São as mesmas águas que encharcam o chão, E sempre voltam, humildes,
Pro fundo da terra.
* MARCELO BARROS é monge beneditino, biblista e assessor de Comunidades Eclesiais de Base e de Movimentos Populares. Membro da Comissão Teológica Latino-americana da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT), pesquisa temas ligados ao Ecumenismo e ao Diálogo Inter-religioso.
Fonte: https://cebi.org.br/partilhas/a-forca-da-agua-e-o-poder-do-espirito-a-agua-nas-religioes-e-caminhos-espirituais/
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