Como faziam desde janeiro de 2022, conversaram sobre a bacia (ou formação) do Irati, uma faixa sinuosa de rochas sedimentares com cerca de 260 milhões de anos que percorre o norte do Uruguai e, no Brasil, os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás.

Até morrer, aos 100 anos, no início da tarde da quarta-feira seguinte, 1° de março, Petri manteve uma memória vívida. “Quando falei sobre tepees [trechos de rompimento das camadas superficiais de rochas ou crostas salinas] na bacia do Irati pela primeira vez, em um congresso de geologia em Buenos Aires, em 1982, ninguém mais conhecia”, comentou no dia 22, quando a equipe de Pesquisa FAPESP o visitou.

Diante de um mapa geológico, Giannini comenta que haviam publicado recentemente um artigo sobre tepees na bacia do Irati em dezembro de 2022 (na revista científica Journal of Sedimentary Research), mas “o professor”, como eles tratavam Petri, “queria algo maior”, incluindo as camadas de rochas mais antigas. “Ele é apaixonado pela formação Irati”, emenda Góes.

A carreira de Petri como professor e pesquisador foi longa. Aposentado em 1985, deu aulas por mais 10 anos no IGc-USP e orientou estudantes até seus últimos dias. Por causa de sua trajetória pessoal e profissional, ele enfatizava que era naturalista, não geólogo.

Com colegas do curso de história natural na USP, 1943MACHADO, R. et al. Setembrino Petri: Do Proterozoico ao Holoceno. 2018

“A forma de pensar de um naturalista e de um geólogo é diferente”, comentou, em uma entrevista com perguntas elaboradas por Pesquisa FAPESP. “O naturalista olha para a natureza, a partir de uma observação ampla, organizando o conhecimento pela integração dos vários assuntos simultaneamente contemplados. Por exemplo, ele observa a árvore, os pássaros, uma paisagem conforme uma curiosidade aberta ao mundo e constitui o pensamento de modo a integrar elementos da biologia, física, química e geologia. O geólogo parte a sua observação de um evento baseado em uma pergunta circunscrita ao seu campo de trabalho, completando ou remodelando um corpo de conhecimento prévio.”

Ele comentou que sua formação de naturalista começou em Amparo, cidade do interior paulista onde nasceu, ainda criança. “Eu me enfronhava mato adentro na busca de conhecimento, reconstituía os esqueletos dos animais mortos que encontrava soterrados, examinava as plantas e rochas”, contou. “Enfim, vivia a vida de um naturalista em escala infantil. Depois a faculdade me ensinou a sistematizar o conhecimento e a fazer ciência.”

Petri ingressou em 1942 no curso de história natural da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP – não havia ainda curso de geologia em São Paulo. “O clima tenso dos últimos dias da Segunda Guerra Mundial tingia o nosso cotidiano de uma aura de preocupação, trazendo profundas incógnitas sobre o futuro; éramos ocupados por um senso de responsabilidade, talvez pesado demais para a nossa idade”, ele escreveu no livro Crônicas da paleontologia brasileira, organizado por Rafael Delcourt e Renato Pirani Ghilardi (Letra1, 2022). “Na época, havia em média 10 alunos em cada classe. Não havia espaço para reclamações, intrigas ou preguiça, pois compartilhávamos um sentimento comum em iniciar a história da geologia no Brasil.”

Segundo ele, os professores do curso de história natural, geralmente estrangeiros e chamados de naturalistas, “exploravam livremente quaisquer lugares em busca de conhecimento, fosse na Indonésia, no Brasil, na África”, ele comentou na entrevista. “Quando encontravam uma árvore diferente, um animal ou uma civilização nova, dissecavam o evento, utilizando-se amplamente do conhecimento já desenvolvido na época, expandindo-o.”

Nas Montanhas Rochosas, Estados Unidos, em 1949MACHADO, R. et al. Setembrino Petri: Do Proterozoico ao Holoceno. 2018

Formado em 1944, Petri trabalhou por quase um ano no Instituto Geográfico e Geológico de São Paulo, antes de ingressar no doutorado em história natural na USP, em 1945. Orientado inicialmente pelo geólogo americano Kenneth Edward Caster (1908-1992), que foi para os Estados Unidos em 1947, e depois pelo geólogo alemão Viktor Leinz (1904-1983), ele estudou fósseis marinhos do Paraná com idade de 419 milhões a 370 milhões de anos. Concluído em 1948, seu doutorado apresentou uma nova abordagem para a época, chamada de paleontologia estratigráfica, que associa os fósseis às camadas geológicas onde foram encontrados.

Ele começou a se interessar por microfósseis – restos de esqueletos de organismos microscópicos, com milésimos de milímetro a poucos centímetros de comprimento – quando Antônio Rocha Penteado, um colega do Departamento de Geografia da FFCL, entregou-lhe lâminas de calcário trazidas do Pará. Elas continham muitos microfósseis de organismos unicelulares marinhos conhecidos como foraminíferos. Para estudá-los, conseguiu uma bolsa no Cushman Laboratory of Foraminiferal Research (hoje Cushman Foundation for Foraminiferal Research), nos Estados Unidos. Ele estava lá quando a direção do Conselho Nacional do Petróleo (CNP), por indicação de Leinz, convidou-o para estudar os fósseis de áreas de sondagens. Petri deixou a USP e em 1950 começou a trabalhar para o CNP em Belém, onde montou o primeiro laboratório de micropaleontologia do Brasil. Em 1954, quando o CNP se transformou na Petrobras, ele reingressou na USP.

Professor e gestor
No IGc-USP, Petri fez mapas paleogeográficos, com a distribuição de animais marinhos ao longo da costa brasileira há milhões de anos, e descreveu dezenas de novas espécies de foraminíferos – a descrição mais recente, de espécies da península Antártica com idade entre 22 milhões e 11 milhões de anos, foi apresentada em um artigo de janeiro de 2022 na Journal of Paleontology.

Ele argumentava que, ainda que fossem menos charmosos que os fósseis de animais portentosos como os dinossauros, os microfósseis eram abundantes e muito úteis para definir a idade de formações rochosas.

Pedreira da formação Irati em São Paulo (Petri à direita, de boné) e os tepees (ondulações nas camadas da rocha)Artur Chahud | Paulo Boggiani

Na USP, foi também diretor do IGc de 1974 a 1977 e do Museu Paulista de 1978 a 1981 e um dos fundadores e o primeiro presidente da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) de 1976 a 1983. “Ele não sossegava”, conta Ana Góes. “Até os 90 anos saía para trabalhos de campo.”

Petri cresceu em uma família de músicos: o pai e o irmão tocavam violino, a mãe bandolim e a irmã piano. “Eu não me tornei músico porque nunca tive paciência para estudar música”, ele contou no livro Setembrino Petri: Do Proterozoico ao Holoceno, editado por Rômulo Machado, Ana Maria Góes, Maria Cristina de Moraes e Andrea Bartorelli (Sociedade Brasileira de Geologia, 2018). “Até tentei tocar violoncelo, mas enjoei, tem de praticar muito.”

Mas o gosto pela música se manteve, e ele gostava muito de ópera. “Eu estava aprendendo a gostar de ópera com ele”, conta Góes.

Membro mais antigo da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Petri deixou a esposa, Aracy, os filhos Rogério e Giselle, os netos Alexis, Raissa e Mariela e os bisnetos Eleonora e Dante.

Fonte:  https://revistapesquisa.fapesp.br/um-naturalista-entre-geologos/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_id=mar2023