Editorial
Ausência de celebração militar do aniversário do golpe de 64 é retorno à normalidade institucional. Homenagens oficiais do governo Bolsonaro à ditadura eram insubmissão à Constituição
O tema é importante e merece ser bem compreendido. Não cabe, num Estado Democrático de Direito, realizar homenagens oficiais a períodos ditatoriais, nos quais, entre outros abusos, liberdades fundamentais e direitos políticos foram negados. Nenhuma instituição pública – cuja razão de existir remete, em última análise, ao princípio democrático – tem legitimidade para celebrar golpe militar.
Por isso, foi um passo importante quando, no governo de Fernando Henrique Cardoso, pôs-se fim, nos quartéis, à Ordem do Dia referente à celebração do golpe de 1964. A medida não tinha nenhuma dimensão de vingança ou mesmo de humilhação dos militares. A existência das Forças Armadas está prevista na Constituição, tendo, portanto, o seu lugar no Estado Democrático de Direito. O que não tem cabimento no regime democrático é o envolvimento dos militares em questões políticas. As Forças Armadas estão plenamente submetidas ao poder civil.
A abstenção do Estado de toda e qualquer homenagem ao golpe militar não tem a pretensão de reescrever a história nem de moldar a compreensão da população sobre os fatos passados. A história não pertence ao poder estatal. No ambiente de liberdade próprio de um regime democrático, cada um tem o direito de realizar sua avaliação sobre os fatos políticos pretéritos, o que não significa, por óbvio, afirmar que todas as opiniões têm o mesmo peso. Não dá para negar, por exemplo, que houve censura e tortura durante o regime militar. É tarefa da sociedade, de modo muito concreto dos historiadores, debruçar-se sobre as fontes históricas, de forma a propiciar, com o tempo, um conhecimento cada vez mais acurado sobre o período, o que inclui reconhecer matizes, sombras e também dúvidas.
É preciso advertir, no entanto, que a celebração do golpe militar de 1964 no governo Bolsonaro foi mais do que uma disputa sobre um tema histórico, o que, como se disse acima, é, por si só, um grave equívoco. Não cabe ao Estado escrever a história. Não cabe ao governante de plantão aproveitar-se do aparato estatal para difundir suas versões sobre a história. Na determinação de Jair Bolsonaro para que as Forças Armadas celebrassem o 31 de março, o grande tema em questão não era o que ocorreu em 1964, e sim a rejeição das escolhas feitas pela sociedade brasileira em 1988, com a promulgação da Constituição. Mais do que negacionismo a respeito da história nacional, havia uma insubmissão à ordem jurídica vigente.
Eis o grande problema das celebrações do golpe militar durante o governo Bolsonaro: elas eram uma declaração de afronta ao Estado Democrático de Direito. Ao louvar a ditadura e ao homenagear torturador, Jair Bolsonaro estava, na realidade, desprezando a Constituição de 1988; em concreto, fustigava o livre funcionamento do Congresso e do Judiciário. E ainda transmitia a mensagem subliminar de que, a depender das circunstâncias, as Forças Armadas poderiam ser convocadas para tutelar o poder civil. Ora, tudo isso é rigorosamente inconstitucional.
Mesmo que, por hipótese, tudo isso ficasse “apenas” no plano simbólico, já seria gravíssimo. Constitui evidente abuso de poder valer-se de uma data do calendário nacional para instigar as Forças Armadas contra o regime constitucional. Mas, como se verificou nos ataques ao sistema eleitoral e nos atos do 8 de Janeiro, essa afronta à Constituição não ficou no plano das ideias. Produziu danos concretos.
A não celebração do 31 de março de 1964 é, portanto, um modo de defender e promover o efetivo respeito à Constituição de 1988. Democracias não prestam vênia, nem por um dia, a ditaduras.
Fonte: https://www.estadao.com.br/opiniao/democracias-nao-prestam-venia-a-ditaduras/?j=511813&sfmc_sub=495497372&l=8503_HTML&u=15540548&mid=534001280&jb=1003&utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=conectado&utm_term=20230331&utm_content=
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