Por José de Souza Martins*
Foto: Carvall
No país não se conseguiu propor a questão mais importante no mundo de hoje: a descoisificação dos seres humanos
Passam-se os anos, os governos e os palpites e o Brasil continua desprovido de uma referência consistente na definição do que deve ser a educação brasileira. Desde que valores estranhos ao que é propriamente formativo foram afastados das referências de nossa concepção de educação, educar é cada vez mais difícil.
Estamos de novo em face de justos questionamentos a respeito dos rumos de nossa educação, as novas gerações inquietas com uma concepção de educação que separa a sala de aula da vida com ela é e como vai ser.
O Brasil é um país em que todos somos especialistas em tudo, também em educação. A escola concebida como oficina de formatação da mente para os modos de pensar de uma sociedade reduzida ao falso pressuposto da lógica da eficiência e do lucro como nortes da vida. E também o falso pressuposto de que o futuro das novas gerações está no empreendedorismo.
O que é estranho. Aqui a imensíssima maioria do povo não vive de lucro, vive de trabalho. E tampouco é um país eficiente, ineficiente em quase tudo que é. Aqui marcamos encontros e compromissos mais ou menos para tal hora. Diferentemente da Inglaterra, em que os ônibus têm horário de passagem por determinado ponto exatamente a tal hora e tantos minutos. Cuja precisão serve para os passageiros acertarem seus relógios. Empreendedorismo também falso. Porque, se fôssemos um país de empreendedores, o capitalismo brasileiro seria um capitalismo autêntico e eficiente. E não um capitalismo de exclusões sociais e desemprego, dependente de subsídios e favorecimentos, um capitalismo de precipício.
De ensino, quem entende mesmo é aquele professor que ensina aprendendo. São completamente falsos os pressupostos da educação brasileira, de que o professor sabe tudo e o aluno não sabe. A diversidade social e cultural deste país faz do aluno o portador de conhecimentos que o professor não tem, pois socializado em situações sociais outras e diferentes. A suposição de que o modo de viver e de pensar da classe média, que norteia as fabulações educativas de nossa educação burocratizada, é a referência apropriada para modernizar a educação brasileira, é antieducacional.
Embora não tão sofisticada nem tão “metida”, o Brasil já teve uma educação consistente e formativa, pensada por educadores, os conhecedores da educação na perspectiva dos elos e das conexões dela com a vida. A do professor com formação sociológica e antropológica para compreender o aluno como membro de uma sociedade diversificada, caracteristicamente transicional. A de uma população de milhões de pessoas vivendo em situações sociais de duplicidade e marginalidade cultural que lhes pedem o conhecimento dos códigos de referência desencontrados das várias sociedades que somos e das várias personalidades que somos obrigados a personificar.
Se a educação brasileira fosse pensada para trazer para a sala de aula a informação científica que permitisse explicar e decifrar esse Brasil, seria um país fascinante para o professor e o aluno! Justamente por essa diversidade de mundos que atravessa nosso cotidiano e nossos horizontes.
Em linha oposta à dessa realidade, nossa educação tende cada vez mais na direção da formação de personalidades homogêneas e vazias, sem desafios de criatividade, perdidas numa concepção retilínea da vida, quadrada, horizontal e sem graça, sem os desafios da rugosidade do mundo, de montanhas e abismos.
Nunca serão educativas as aventuras educacionais que fazem do estudante cobaia de um docente que é ensinador, mas não professor, sem formação sociológica e e antropológica. Seus alunos nunca terão condições de ter o conhecimento formativo que lhes permitirá desenvolver o que o sociólogo alemão Hans Freyer definia como autoconsciência científica da sociedade.
Único modo para se defenderem de um senso comum idiotizado e manipulado, um conhecimento minimizador da condição humana, cada vez mais difundido, cada vez mais inimigo da escola e do saber. A educação só o será se for uma educação emancipadora, que dê ao aluno a maturidade responsável de viver e agir como membro da sociedade e não como seu inimigo.
A educação brasileira não conseguiu se propor a questão mais importante no mundo de hoje, a da descoisificação dos seres humanos. Independentemente da classe social das famílias dos alunos, eles são cada vez mais vítimas das incertezas e das falsas alegrias de sua coisificação.
A educação que torna adolescentes em adultos precoces, que treina profissionalmente para empregos que não existem ou que vão deixar de existir na semana seguinte à da formatura, que ensina sem educar, abre para os alunos o futuro de descartáveis das incertezas do mercado de trabalho.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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