Anselmo Borges*
Foi a 13 de Março de 2013 — faz
agora 10 anos —, que foi eleito. E percebeu-se logo naquela tarde que vinha
como cristão: simples, sem aparato, inclinou-se perante a multidão, e ficou
gravada na memória de todos aquela sua saudação: “buena sera” (boa tarde), que
o tinham ido “buscar ao fim do mundo para bispo de Roma” (ele não usará o
título de Papa), e, antes de dar a bênção, pediu que fossem os fiéis a pedir a
bênção de Deus para ele primeiro.
O nome escolhido era revelador:
Francisco, lembrando Francisco de Assis a quem pareceu uma vez ter ouvido dos
lábios de Cristo crucificado o pedido: “Francisco, repara a minha Igreja, que
ameaça ruina.” Sim, o Papa Francisco chegou e, por palavras e obras, é o que
tem feito: não foi viver para o Palácio Apostólico, utiliza um carro modesto,
está com todos, começando pelos mais pobres, acolhendo prostitutas, sorrindo e
abraçando, brincando com crianças que lhe roubam o solidéu...
Era urgente reformar a Cúria,
cujas doenças, a título de exemplo, elencou logo na saudação natalícia papal de
2014: tudo gira à volta da “patologia do poder”, e a primeira doença é “pensar
e sentir-se imortal, indispensável” e lá estão “a rivalidade e a vanglória”, e
a “esquizofrenia existencial”, o “Alzheimer espiritual”, “divinizar os
chefes”... Francisco rodeou-se de uma equipa de cardeais para a missão da
reforma e ela aí está na Constituição Apostólica Praedicate Evangelium (Pregai
o Evangelho), onde, logo no título se diz o essencial: anunciar o Evangelho, a
notícia boa e felicitante de Jesus para todos. Para que serve a Igreja se não anuncia
e pratica o Evangelho?
Os escândalos do Banco do
Vaticano eram outra fonte de terrível preocupação: para onde vão, como se
utilizam, os dinheiros que vêm dos fiéis? Francisco tudo tem feito, inclusive
apelando a regras internacionais, para impor a transparência.
Que dizer da ignomínia da
pedofilia? Para ela, “tolerância zero”. E não apenas com palavras, mas com
determinações seguras, também penais: a pedofilia não é só um pecado, é um
crime... “Não posso começar sem pedir perdão uma vez mais. Nunca serão
suficientes as nossas palavras de arrependimento e consolação para as vítimas
de abusos sexuais por parte dos membros da Igreja. Pecámos gravemente: milhares
de vidas foram arruinadas por quem tinha o dever de cuidar delas e
defendê-las. Nunca será suficiente o que fizermos para tentar reparar o dano
que causámos.”
Francisco é combatente acérrimo
contra o clericalismo e o carreirismo eclesiástico, uma “peste” na Igreja. Não
quer “bispos príncipes” nem “bispos de aeroporto”. Contra a “casta”
eclesiástica: “Há um profundo desprezo pelo povo santo de Deus. Já não são
pastores, mas capatazes”. Mais uma vez, na sua recente visita ao Sudão do Sul,
no encontro com os bispos, o clero e os religiosos, pediu aos pastores que
fossem compassivos e misericordiosos, “não senhores do povo” . A Igreja de
Cristo “situa-se no meio da vida sofredora do povo, e suja as mãos pelo povo”.
Bate-se pelo diálogo ecuménico e
inter-religioso e pratica-o. Por exemplo, esteve na Suécia para participar na
comemoração dos 500 anos da Reforma. “Creio que as intuições de Martinho
Lutero não eram equivocadas: era um reformador. Talvez alguns métodos não
tenham sido adequados, mas pensando naquele tempo vemos que a Igreja não era
realmente um modelo a imitar: havia corrupção na Igreja, espírito mundano,
apego ao dinheiro e ao poder.” É amigo de Bartolomeu, patriarca ortodoxo de
Constantinopla, a quem até já pediu a bênção. Foi com o arcebispo anglicano de
Cantuária, J. Welby, visitar o Sudão do Sul. Esteve em vários países de
imensa maioria muçulmana e assinou, em Abu Dhabi, juntamente com o grande imã
da mesquita Al-Azhar, A. Al-Tayyeb, o “Documento sobre a Fraternidade Humana”.
Sobre a ecologia, escreveu uma
encíclica que fica para a História: a Laudato Sí, defendendo uma
“ecologia integral”, vinculando a urgência da defesa da Natureza e a dos mais
pobres. A Terra é criação de Deus, e, sem a salvaguarda do ecossistema, o que
está em jogo é o planeta e a sobrevivência da Humanidade.
Desde o princípio, defensor
acérrimo da paz, a sua intervenção política foi notada, a ponto de se ter
tornado um líder político-moral global, talvez o mais ouvido.
Significativamente, a sua primeira visita fora de Roma foi a Lampedusa, para
clamar a favor dos refugiados e uma política contra a “globalização da
indiferença”. A quem o acusa de “fazer política”, responde: “Sim, estou a
fazer política. Porque toda a pessoa tem de fazer política”. A quem lhe chama
comunista remete para o Evangelho e acrescenta: “Não condeno o capitalismo e
também não estou contra o mercado”: o que defende é a “economia social de
mercado”. “A mesa económica não funciona só com duas pernas. Com três, sim: o
capital, o trabalho e o Estado como regulador.”
Entretanto, nestes dez anos,
Francisco foi abrindo portas para uma nova compreensão e abertura no domínio da
moral sexual, por exemplo, abrindo portas de acesso à comunhão de divorciados
recasados, aos anticonceptivos, aos homossexuais...
A reforma decisiva da Igreja
ficará historicamente definida com a sinodalidade e a superação do domínio
patriarcal. Aí está uma razão essencial para não querer resignar antes de 2024:
levar a termo o Sínodo sobre a sinodalidade.
E é feliz? “Estou feliz porque
me sinto feliz. Deus faz-me feliz”, disse há pouco à America Magazine.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga
ortografia
Artigo publicado no DN | 11 de
março de 2023
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