Aos 66 anos, Yuri Samoilov, presidente do Sindicato Independente dos Mineiros e Metalúrgicos de Krivyi Rih, na Ucrânia, já não tem idade para combater na frente de batalha, como combatem, hoje, dois dos seus filhos, dois sobrinhos e um neto. Mas nem só com armas de fogo se trava uma guerra. Yuri participa no esforço de resistência ao invasor usando os contactos com outros sindicalistas da Europa para passar a palavra sobre o que está a acontecer no seu país. E, sobretudo, buscar a solidariedade da classe trabalhadora para com a luta dos seus irmãos ucranianos. Foi isso que ele veio fazer a Portugal, depois de ter estado em França e no Estado espanhol, numa tournée que inclui também a Itália e a Polónia.
Já passou um ano desde aquele dia 24 de fevereiro de 2022, quando as tropas de um dos maiores Exércitos do mundo, o da Rússia, cruzaram a fronteira com ordens de chegar a Kiev numa semana e derrubar o governo da Ucrânia.
Hoje, olhando para trás, não podemos deixar de reconhecer que naqueles dias parecia incrível que os ucranianos conseguissem não só repelir o ataque russo à capital, como também passar à contra-ofensiva. Ninguém poderia imaginar que, apesar de todo o seu poder bélico, as tropas russas, ao fim de um ano de guerra, tivessem abandonado o objetivo de ocupar o país e não controlassem sequer uma capital regional.
O poder da participação popular
Há apenas uma explicação para isso, diz-nos o sindicalista ucraniano: o poder da participação popular em todo o esforço de guerra: “Na Ucrânia, os mais importantes acontecimentos em qualquer nível, político, social, ocorreram devido à participação do povo. Na Rússia, é muito diferente. Ora os ucranianos não querem voltar a ser colonizados pela Rússia.”
É por causa desta vontade de garantir um futuro independente e sem interferências da potência nuclear vizinha, assegura Yuri Samoilov, que nada poderá será feito na Ucrânia sem o apoio popular. “Todas as famílias têm alguém a lutar na frente. Se o governo fizer algo contra a vontade do povo, cairá no dia seguinte”, acredita.
Um exemplo dessa participação popular na guerra é o próprio sindicato dirigido pelo nosso entrevistado. Foi fundado em 1992, quando os trabalhadores começaram a afastar-se dos enferrujados sindicatos da era soviética, armas do Estado para controlar os trabalhadores, e passaram a fundar sindicatos independentes. O Sindicato Independente dos Mineiros e Metalúrgicos de Krivyi Rih tem cerca de 2.500 associados. “Somos um pequeno sindicato, mas temos um espírito muito forte”, assegura o sindicalista, citando greves e manifestações pelos direitos dos trabalhadores, nas indústrias privatizadas desde 1991, que hoje estão nas mãos de oligarcas russos, ucranianos, e também europeus. “O sindicato de Krivyi Rih é parte de um Sindicato Independente Nacional dos metalúrgicos, que conta com dezenas de milhares de membros”, esclarece.
Em Krivyi Rih, dos 2.500 sócios do sindicato, cerca de 500 estão neste momento a lutar na guerra. “Continuam a ser membros do sindicato, a receber o seu salário e, dependendo das suas possibilidades, continuam a participar com a sua quota para ajudar o sindicato, mesmo estando eles nos campos de batalha.”
Yuri Samoilov cita este facto com todo o orgulho, para insistir nas suas implicações: “Temos 500 pessoas que sabem fazer a guerra. Nenhum governo pode assumir uma posição de força e obrigá-los a fazer algo com que não estejam de acordo. Estas pessoas já passaram por muito.”
Que saída?
Mas a guerra, depois da contraofensiva dos ucranianos e do recuo das tropas russas para o Leste e Sul do país, entrou numa fase muito perigosa, em que as forças militares dos dois lados parecem equivaler-se. O equilíbrio das trincheiras pode levar ao prolongamento das batalhas indefinidamente, com enormes perdas de vidas. Não terá chegado o momento de pôr fim às hostilidades?
Yuri Samoilov tem uma visão diferente: a guerra chegou a este ponto porque “as forças militares ucranianas, que antes se viram forçadas a recuar diante da invasão, inverteram a situação e agora estão a vencer no terreno, têm uma posição de domínio.” Nesta situação, podem-se fazer movimentos pela Paz, mas é preciso continuar a luta, defende o sindicalista, dando como exemplo uma pessoa que se vê atacada na rua por alguém que a quer matar. De nada adiantará propor-lhe a paz, porque se parar de lutar, morre. “A saída para a guerra é a vitória da Ucrânia”.
Mas o que é exatamente a vitória?, pergunto. E Marina Samoilova, mulher de Yuri e com 25 anos de trabalho nas minas, que até esse momento acompanhava a entrevista em silêncio, não se contém: “É a Liberdade!”, exclama. O marido concorda e desenvolve: “E construir uma Ucrânia livre. A Ucrânia deve ser governada pelo seu povo. Noventa por cento dos ucranianos tem conhecimento dos oligarcas e odeia-os. Todas as revoltas, revoluções ocorreram porque o povo estava revoltado contra os oligarcas.”
Yuri Samoilov e Marina Samoilova.
Oligarcas falam muito do “mundo russo” mas vivem em Londres
Mas não há o risco de a Ucrânia vitoriosa cair sob o domínio dos Estados Unidos, que ainda é a maior potência imperialista do mundo?, pergunto. Yuri Samoilov nem pestaneja:
“Nós já estamos há muitos anos sob o domínio dos americanos. Talvez não dos americanos, não do povo americano, mas dos capitalistas americanos, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e outras instituições semelhantes. Estas organizações não só dominaram o nosso país, como também a própria Rússia e outros. A Rússia tem todas as suas reservas nos Estados Unidos da América, lá e na Suíça.”
A maioria dos oligarcas russos vive em Londres. A maioria dos que fazem propaganda do atual presidente da Rússia e do “mundo russo”, têm as suas casas, os seus palacetes, na Itália. Os filhos dos oligarcas da Rússia e da Ucrânia não estão a lutar nas frentes da guerra para defender o povo e o país. Estão no Mónaco, em Courchevel, nas ilhas Maldivas, nas Seychelles, em qualquer um desses lugares frequentados pelos super-ricos.
Autonomia para Donetsk e Luhansk?
Krivyi Rih, sede do Sindicato de Yuri Samoilov, é a sexta maior cidade da Ucrânia em população, cerca de 600 mil pessoas, e um centro mineiro (de minério de ferro) e metalúrgico da maior importância. É um dos maiores centros de extração de minério de ferro, junto com Dnipro e Nikopol (região centro), Zaporizhia (sul) e Mariupol e o Donbass (leste). As indústrias do ferro e do aço são as mais importantes da indústria pesada da Ucrânia e respondem por 34% das exportações do país, sendo a Ucrânia o 8º maior produtor de ferro e aço do mundo.
Krivyi Rih fica a 400 km de Donetsk, e chegou a estar a 30 km de distância da fronteira com as autoproclamadas repúblicas independentes de Donetsk e Luhansk, cuja proclamação deu origem à guerra em 2014.
Quisemos saber como Yuri Samoilov encara estas repúblicas, e principalmente se ele concorda ou não com a sua autonomia. Se a Ucrânia tem pleno direito à sua autodeterminação, não o teriam também esses territórios?
Mas o sindicalista nem quer pensar nisso. Considera que esses territórios foram criados pelos russos, seguindo ordens das tropas russas, e são governados por criminosos, mafiosos ao serviço de Putin. Curiosamente, as minas de carvão exploradas nestes territórios estão registadas juridicamente na Ossétia do Sul, um enclave fabricado pelos russos no interior da Geórgia com o objetivo de pressionar o governo desta República. Quanto aos supostos referendos de autodeterminação, Yuri Samoilov recorda que “pelo menos um milhão e quinhentas mil pessoas, do total de 5 milhões, abandonaram esses territórios”.
Yuri Samoilov também rejeita a análise de que o conflito no Donbass é entre os russófonos e os que falam ucraniano. Em Krivyi Rih, 90% dos mineiros fala russo. “Mas todos fazem parte de uma só família mineira.” Na verdade, “somos bilingues, falamos as duas línguas”, acrescenta.
Na passagem por Lisboa, Yuri fez questão de visitar a estátua de Eusébio.
Mensagem final
Para concluir a entrevista, peço a Yuri Samoilov que transmita uma mensagem sua e do seu sindicato aos trabalhadores portugueses. Eis o que ele disse:
“A classe trabalhadora de todos os países sempre foi a mais sofrida porque se deixa dividir pelos que estão no governo. Nós lutamos há 30 anos pelos direitos dos trabalhadores, mas só agora, ao fim de tanto tempo, é que começamos a sair e falar com pessoas de outros países, como por exemplo de Portugal. O apelo que faço aos trabalhadores de Portugal é que nos unamos na luta pelos direitos da classe trabalhadora e para sermos sempre solidários nessa luta. Temos de construir uma frente contra os oligarcas de todos os tipos.
Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/queremos-uma-ucrania-livre-governada-pelo-povo/85516
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