Juremir Machado da Silva*
Em matéria de economia, não dou um passo sem ouvir Paul Krugman, Joseph Stiglitz e Thomas Piketty. Os dois primeiros ganharam o chamado Nobel da economia. O último abalou os dogmas dos neoliberais. Nascido em 1971, o economista francês Thomas Piketty, professor e pesquisador na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e na Escola de Economia de Paris, com formação na França e nos Estados Unidos, tornou-se mundialmente conhecido com o livro “O Capital do Século XXI”, que já vendeu mais de três milhões de exemplares no mundo, no qual, com dados estatísticos, mostra a concentração de riqueza no capitalismo. Convidado do Fronteiras do Pensamento para palestrar em São Paulo e em Porto Alegre, em 2017, ele me concedeu uma entrevista marcante. Nestes tempos de juros altos no Brasil, rotulados por Stiglitz de “chocantes”, nada como ler as respostas de um pesquisador de primeira linha, odiado por não poder ser rotulado de ignorante em economia.
É verdade que o senhor disse em entrevista não ter lido “O Capital” de Karl Marx?
Thomas Piketty – Nunca disse isso. Quem fala isso não leu meu livro. Eu disse que sofri para ler tudo. Li “O Capital” de Karl Marx com atenção. Cito-o fartamente no meu livro. Observo que não se trata para meu gosto de uma obra suficientemente empírica. É demasiado teórica, especulativa, filosófica. Poderia ser mais concreta e histórica.
O senhor cita escritores como Balzac e Jane Austen. A literatura ajuda a compreender o mundo da economia com sua enorme complexidade?
Piketty – Com certeza. Karl Marx já disso isso sobre Balzac, embora a gente não veja isso tão claramente na sua obra. A literatura é excelente instrumento para penetrar no mundo do dinheiro e nas relações que ele fixa entre as pessoas. O escritor mexicano Carlos Fuentes, no seu último livro, “A vontade e a fortuna”, aborda o capitalismo mexicano com um presidente que lembra Vicente Fox e um bilionário que detém realmente o poder eterno tanto político quanto econômico e social. E uma juventude que hesita entre a revolução e a condição de herdeira de fortunas quase num sentido balzaquiano. O poder de penetração da literatura pode ser muito maior que a das ciências sociais. Na verdade, são formas de expressão complementares. As ciências sociais devem ser modestas. Os economistas ainda mais. A modéstia nem sempre é a primeira virtude de um economista. Vou investir mais nisso do que já fiz em meu livro. A arte conta muito.
Economistas liberais tentam encontrar falhas no seu livro “O capital do século XXI. Muitos alegam que sua base de dados não é boa. O senhor confirma a sua tese de que o capitalismo está produzindo enorme concentração e não distribuição de renda?
Piketty – Desenvolvi, com a contribuição de mais de cem pesquisadores pelo mundo, uma base de dados históricos sobre a evolução das desigualdades sociais e econômicas. Não existe outra maior ou melhor. Mas se trata de uma base aberta à complementação. Está tudo disponível na internet para que cada um possa melhorar esses dados. Até agora não apareceram críticas realmente consistentes ou capazes de invalidar o que está dito no livro. O debate que aconteceu depois da publicação de meu livro foi apaixonante. O mais importante é que isso possibilitou ter acesso a dados de países como o Brasil e a Índia. Eu havia ficado concentrado nos países europeus por dificuldade de acesso a dados fiscais de certas nações. As críticas feitas nada mudaram.
O capitalismo concentra riqueza em vez de distribuí-la?
Piketty – Não sou contra o capitalismo e a propriedade privada. Nasci em 1971, tinha 18 anos quando caiu o muro de Berlim. Era jovem demais para ter sido comunista. Pode ser que existam pessoas, no Brasil ou fora dele, que ainda vivam na Guerra Fria. Não é problema meu. O que me interessa é saber qual forma de capitalismo ou de propriedade privada temos e quais ou seus impactos. Acredito no mercado, mas entendo que precisamos de instituições públicas democráticas muito forte para enquadrá-lo. Necessitamos de impostos progressivos sobre a propriedade, de serviços públicos de qualidade, de infraestrutura, de regras para o mercado do trabalho, de sindicatos organizados, de tudo o que nos ajude a controlar as forças do mercado para que estas funcionem no interesse geral. A democracia deve controlar o capitalismo, não o contrário. É uma conclusão baseada nas lições da história. Só depois dos grandes choques como a Primeira Guerra Mundial, a revolução bolchevique e a crise de 1929 é que surgiram mecanismos de redução de desigualdades na Europa e nos Estados Unidos. A redução da desigualdade estimulou o crescimento econômico e obrigou o capitalismo a desenvolver sistemas como o da previdência social. Existem várias maneiras de organizar o capitalismo, que não é o mesmo na Suécia, onde o Estado recolhe 50% das riquezas em impostos, para sustentar os serviços prestados à sociedade, e na Ásia e América.
Ou no Brasil?
Piketty – As elites brasileiras erram ao rejeitar certas formas de redistribuição de renda que funcionaram bem na Europa ou mesmo nos Estados Unidos permitindo mais justiça social e mais desenvolvimento econômico. O nível de desigualdade brasileiro é um dos mais extremos do mundo. É preciso deixar de lado a ideologia hipercapitalista de alguns para aceitar a ideia de que é possível organizar a economia de modo a obter ao mesmo tempo mais igualdade e mais crescimento.
*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/licoes-de-literatura-historia-e-economia/
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