Manuela Vidal e Silva Oliveira Santos* e
Ricardo Wagner Oliveira Santos*
26 de março de 2023
Ilude-se quem defende que com as inteligências artificiais generativas os dias de estudo, leitura e escrita ficarão para trás, pois é justamente nesse momento que o conhecimento se torna ainda mais urgente e necessário
Quem nunca leu o livro “1984” escrito por George Orwell deveria lê-lo agora, visto que a distopia descrita pelo escritor em muito se assemelha ao momento vivido hoje com o avanço da inteligência artificial no mundo. Em 1948, ano em que o livro foi concluído, não havia internet, redes sociais e algoritmos. Havia, todavia, a capacidade de criar, imaginar e descrever aquilo que ainda não existia no mundo real, mas que era possível no plano imaginário graças à habilidade inventiva do ser humano.
Foi com base em três únicos elementos (leitura, imaginação e escrita) que Orwell conseguiu profetizar na primeira metade do século 20 um mundo que começaria a se concretizar [em parte] anos depois e que seguiria caminhando no sentido perverso descrito na sua distopia no século seguinte, este que vivemos agora. O mais incrível e assustador não é presenciar as transformações que nos desafiam enquanto seres humanos, o pior é verificar que muito do que poderia ser feito para nos salvaguardar como indivíduos é negligenciado em prol não da comunidade, mas do mercado.
Isso significa dizer que dentro de uma ótica social cada vez mais individualista e mercantil, os sacrifícios feitos ao bem-estar e dignidade da pessoa humana visam não ao bem de todos, mas sim ao lucro de poucos, que negociam valores como segurança, saúde, transporte, moradia e alimentação, por exemplo, a partir da ótica da escassez que soluciona o problema da alta da demanda por meio do sistema de preços, de maneira que valores indispensáveis ao exercício da vida, garantido constitucionalmente, são tratados como produtos e, consequentemente, buscam justamente a disparidade entre a oferta e a demanda para assegurar o lucro.
Esse cenário insalubre vivido pela grande maioria das pessoas foi descrito por Orwell com uma riqueza de detalhes que somente grandes mentes como ele e o ChatGPT seriam capazes de fazer. A diferença entre um e outro é que enquanto Orwell pensou e viveu por ele próprio, o ChatGPT pensa e trabalha por você, o que, por mais tentador que aparente e seja, se usado em excesso, retira aquilo que nos distingue dos demais animais do planeta: a capacidade de raciocínio.
Ilude-se quem defende que com as inteligências artificiais generativas, aquelas responsáveis pela criação de novos conteúdos, os dias de estudo, leitura e escrita ficarão para trás, pois é justamente nesse momento que se torna ainda mais urgente e necessário o conhecimento como forma de compreender e acompanhar a rapidez da produção de textos, vídeos, imagens e sons. É o estudo, mais do que nunca, que distinguirá aqueles que dominarão as novas tecnologias e aqueles que serão dominados por elas. A diferença entre o remédio e o veneno, como já diziam os antigos, é a dose.
O colunista de tecnologia do The New York Times, Kevin Roose, escreveu sobre a sua experiência com o ChatBot Bing da Microsoft, cuja tecnologia de inteligência artificial foi desenvolvida pela OpenAI, criadora do ChatGPT. Roose se disse impressionado pela nova engenharia de busca do Bing ao mesmo tempo em que se viu numa posição altamente desconfortável ao ouvir a inteligência artificial declarar o seu amor, apontá-lo como infeliz no casamento e pressioná-lo pelo divórcio. A impressão de senciência transmitida pelo o ChatBot Bing fez Roose concluir que não é o momento de permitir o seu acesso irrestrito à população, facilmente manipulável pela aparência de sabedoria absoluta e pelo mito do Oráculo de Delfos capaz de nos guiar sobre os mais diversos assuntos e conflitos que nos afligem como seres humanos.
O pior é verificar que muito do que poderia ser feito para nos salvaguardar como indivíduos é negligenciado em prol do mercado
Engana-se quem acredita que somente os ignorantes pautariam seus atos conforme as palavras ditadas pela inteligência artificial, mesmo quando essas fossem capazes de lhes causar danos físicos ou psicológicos, não custando lembrar a demissão do engenheiro do Google Blake Lemoine em 2022, após afirmar que uma das inteligências artificiais programadas pela empresa, a LaMDa, havia desenvolvido personalidade própria e pensava por si só. Roose cita em seu artigo a demissão de Lemoine e critica a credulidade do engenheiro, afirmando que sabe como as inteligências artificiais são programadas exatamente para antecipar pensamentos não por terem a capacidade de pensar por si próprias, mas sim por terem sido alimentadas com informações suficientes neste sentido.
Não é a máquina que vai te libertar do trabalho e do estudo, é ela que vai te escravizar se você não sair da sua zona de conforto. Não é a máquina que enxerga além, é você que está cego pela luz forte da tela. Não é a máquina que te entende, é você que está sendo manipulado. É inútil tratar uma inteligência artificial como o Oráculo de Delfos e recusar-se a ler a frase que se encontra logo em sua entrada: “conhece-te a ti mesmo”. A máxima, invariavelmente ligada à Sócrates, revela que ao buscar fora de nós a resposta daquilo que nos corrói internamente, acabamos por afrontar a primeira grande lição do Oráculo, de que é a reflexão, não a simples reprodução, o que nos torna sábios.
Sabedoria e admiração é aquilo que buscamos ao consumir e produzir conteúdo. O ChatGPT, assim como as outras novas tecnologias generativas, se usado corretamente, te trará os dois, caso contrário, poderá até te garantir a admiração momentânea dos seus pares, que, todavia, não sobreviverá a um debate cara a cara. Daniel Herman, em artigo escrito para o The Atlantic, afirma que a única parte da educação que permanecia ilesa aos atalhos adotados por estudantes desejosos do encurtamento das longas horas de estudo era a escrita, que, com a criação do ChatGPT, envereda pelo mesmo caminho do consumo express da geração Z, que ama os vídeos do TikTok, os shorts do YouTube e os reels do Instagram, três substitutos do movimento de virar a página do livro pelo de deslizar a tela do celular.
O perigo de tudo isso não é “ligar o foda-se” para esse tal de ler e escrever que, pelo visto, qualquer inteligência artificial consegue fazer, mas sim ingressar na massa de irrelevantes apontada por Yuval Noah Harari em seu livro “21 lições para o século 21” como uma realidade cada vez mais próxima e parecida com a distopia Orwelliana. Harari fala da automação e do quanto cada vez mais habilidades antes destinadas aos humanos são hoje realizadas por máquinas em menos tempo e com menos custo, exigindo dos homens e das mulheres, cada vez mais, a capacidade de se reinventar, o que se já é difícil aos 30 anos, imagine aos 40, 50, 60, 70…
Harari fala que passamos da exploração de algumas mãos de obra no século 19 para a irrelevância de outras no século 20, ou seja, não é que você talvez seja substituído por uma máquina e passe a ganhar menos, é que talvez você sequer tenha emprego com o uso da inteligência artificial no ritmo que vem ocorrendo. Antes que isso aconteça, portanto, pare e leia as entrelinhas dos conteúdos produzidos nesses novos tempos, são elas que te contam que há sempre uma oportunidade de crescer, basta parar, questionar e refletir, no lugar de simplesmente reproduzir, como já nos contava nosso antigo amigo Oráculo de Delfos.
*Manuela Vidal e Silva Oliveira Santos é advogada, mestre em Direito Público pela UFC (Universidade Federal do Ceará).
*Ricardo Wagner Oliveira Santos é advogado, mestre em Direito Privado pela Unifor (Universidade de Fortaleza).
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