quinta-feira, 2 de março de 2023

Religião e Esperança

Luiz Sureki, SJ*

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O que posso conhecer? 
O que devo fazer?
 Se sei que faço o que devo, o que me é permitido esperar? 

Essas três célebres perguntas formuladas pelo filósofo alemão Immanuel Kant abarcam todo o campo do interesse humano. A epistemologia responde à primeira pergunta, a ética à segunda, a religião à terceira.

Se é a religião a que deve responder à pergunta pela esperança do ser humano, segue-se que a mensagem religiosa deve se caracterizar por comunicar-lhe uma Boa Notícia, afinal o objeto da esperança é um bem. Mas, de que bem falam as religiões?

Em geral, as religiões falam de um bem definitivo, supremo, elevado, pleno, imperecível, eterno, que diz respeito à vida do esperante e que é, então, expresso por termos como felicidade, vida eterna, salvação etc.

Assim como a meta não se confunde com o caminho que a ela conduz, o bem definitivo que a religião anuncia não se confunde com a própria religião. Toda religião se apresenta como um caminho que pretende conduzir o homem à (sua) meta definitiva, à plena realização ou salvação. Se várias são as religiões, vários também deverão ser os caminhos. Não é necessário que as pessoas tomem uma atitude apologética e intransigente segundo a qual só pode haver um único caminho, uma só religião verdadeira, um só meio para se chegar a um fim. Como poderia alguém estar tão convicto acerca do término do caminho se, todavia, está a caminho?

A religião pode ser compreendida como caminho para o definitivo – seja qual for o termo empregado para denominar este ‘definitivo’. Apresentada esquematicamente temos: x ® y; sendo x a pessoa, y o definitivo, e ® o caminho que conduz x a y, ou seja, a religião propriamente dita.

No caso do cristianismo, a compreensão de caminho se alarga e se aprofunda. A razão é que o caminho cristão é constituído por uma “via dupla”. A salvação, a que o caminho conduz, é compreendida como participação do ser humano na vida divina (de Deus). Mas esse caminho que conduz à participação na vida divina não foi aberto e inaugurado pelo ir do homem a Deus, mas antes pelo vir de Deus ao homem. O humanizar-se do Logos divino abriu ao humano a possibilidade da participação na vida divina (divinização). Jesus Cristo inaugura a via da vinda divina à humanidade (primogênito/unigênito de Deus – Jo 1, 14.18; 3, 16; 1Jo 4, 9) e ele mesmo inaugura a via da ida da humanidade à divindade (primogênito dos mortos – Ap 1,5; 1Cor 15,20; Col 1,18). Ele é o próprio caminho: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem/vai a Deus senão por mim” (Jo 14,6).

Neste sentido, Encarnação e Ressurreição são indissociáveis. Encarnação sem ressurreição é o caminho da morte de Deus, do extinguir-se do Espírito, do fim da transcendência; e ressurreição sem encarnação é o caminho da ilusão, do espiritualismo etéreo, abstrato, do animismo “metafísico”, descorporizado, desencarnado, destituído de história.

Para falar do fim como um bem é necessário se haver antes com a origem. Se a origem do ser humano estiver circunscrita ao seu nascimento biológico, o fim estará determinado pela sua morte biológica. Hoje, são muitas as pessoas que vivem entre o berço e a sepultura. Na tradição bíblica, a origem da vida se compreende pela noção de criação. “O ser humano é criado…”. Por um lado, ser criatura significa não ter em si e por si mesmo a vida, e, por outro lado significa que a vida recebida é antes de tudo um dom do Criador. Quem compreende que vive porque Deus assim o quis, compreende também que viverá pelo mesmo motivo. O amor divino que antecede a vida espaciotemporal é o mesmo que a sustenta no espaço e no tempo e a sustentará na eternidade; o amor cria e recria, faz nascer e faz renascer, salva e é também a própria salvação.

“Deus é Espírito” (Jo 4, 24); o Espírito é o “Senhor que dá a vida”, e “e dar (a) vida” é a expressão mais sublime do amor (cf. Jo 15,13). Se assim o é, então a esperança cristã, inspirada pelo próprio Cristo Jesus, não tem outro bem senão o próprio Deus-Amor; e, do mesmo modo, o cristão não tem outro bem a fazer no mundo que seja maior do que amar os seus semelhantes no mundo que Deus ama (Jo 3,16).

O Evangelho da religião chamada Cristianismo se resume no amor de Deus pelos seres humanos e nos seres humanos. No amor de Deus se ancora a esperança humana. Esse mesmo amor divino por nós e em nós nos convida a anunciar essa Boa Notícia aos outros sem dissociá-la do nosso amor pelos outros. É inadmissível haver igrejas que se denominam cristãs anunciando ódio, incitando violência, promovendo divisões, desviando a esperança das pessoas para um falso bem, que pode ser comprado e vendido, que é revestido com propagandas de vida, mas que na realidade não passa de uma receita de morte.

Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

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