quinta-feira, 23 de março de 2023

Um modo de dizer o inefável

P. João Alberto Sousa Correia*

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21 de março é o Dia da Poesia, mas também o da Árvore. À primeira vista, parece que a relação entre as duas (poesia e árvores) é ténue, mas, no dizer de Khalil Gibran, “as árvores são poemas que a terra escreve para o céu”. Talvez por isso John Keats tenha afirmado: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo”; e Wesley D’Amico dê este conselho: “Plante uma árvore e uma poesia”.

O Dia da Poesia foi criado na 30ª Conferência Geral da UNESCO, a 16 de novembro de 1999, procurando proporcionar “a livre criação de ideias através das palavras, da criatividade e da inovação. A data visa a importância da reflexão sobre o poder da linguagem e do desenvolvimento das habilidades de cada pessoa. Isso porque a poesia contribui para a diversidade criativa, inferindo na nossa perceção e compreensão do mundo”.

Num país com inúmeros poetas, cuja obra literária é mundialmente conhecida, quase todos, mesmo se uns mais do que outros, versaram temas do âmbito da religião e da fé. Alguns, contudo, deram a este assunto um lugar privilegiado, na sua obra poética: Frei Agostinho da Cruz, Diogo Bernardes, José Régio, Daniel Faria, António Correia de Oliveira, Moreira das Neves, Miguel Trigueiros, João Maia, José Tolentino de Mendonça são apenas alguns dos nomes de uma lista quase interminável. Vertendo a religião e a fé em poesias memoráveis, ajudam os outros a vivê-las melhor.

A poesia é um modo – para mim, o melhor – de evocar o impensável, de vislumbrar o invisível e de dizer o inefável. Estou em crer que foi por isso que Rubem Alves afirmou: “faz tempo que para pensar sobre Deus não leio os teólogos, leio os poetas”; e que muitos fazem da poesia e da literatura, em geral, um verdadeiro lugar teológico.

Na impossibilidade de abordar o assunto em toda a sua extensão, veja-se apenas os hinos da Liturgia das Horas, na versão portuguesa. Variados nas suas formas, a maior parte de autores portugueses, são a ilustração clara de quanto, até ao momento, se afirmou. Que dizer de hinos como “Nasceu o Verbo eterno sem começo”, “Crescem nas asperezas do caminho”, “Troquemos o instante pelo eterno”, “Se me envolve a noite escura”, “Porque Ele está connosco”, “Fica connosco, Senhor, porque anoitece”, “Pelo sinal dos astros e da treva”, “Louvado seja Deus na Natureza”, “Ó luz de eterna formosura”, “Luz terna, suave, no meio da noite”, entre outros de reconhecida beleza literária e profundidade teológica? De alguns, os autores são conhecidos; de outros, nem por isso. A verdade é que, num caso e noutro, são textos de uma elevação espiritual que nos mergulha no espírito do tempo litúrgico e da hora litúrgica e nos projeta para além da mediania do quotidiano.

Destaque

A poesia é um modo – para mim, o melhor – de evocar o impensável, de vislumbrar o invisível e de dizer o inefável.

Desde tenra idade, sou apreciador da maior parte deles, porque me ajudam a rezar e fazem-me sonhar. Tenho dificuldade em escolher um que se erga na diversificada e colorida floresta dos hinos da Liturgia das Horas, atrevo-me a reproduzir um deles:

Luz terna, suave, no meio da noite, leva-me mais longe...

Não tenho aqui morada permanente: leva-me mais longe...

Que importa se é tão longe, para mim,

A praia aonde tenho de chegar,

Se sobre mim levar constantemente

Poisada a clara luz do teu olhar?

Nem sempre Te pedi como hoje peço

Para seres a luz que me ilumina;

Mas sei que ao fim terei abrigo e acesso

Na plenitude da tua luz divina.

Esquece os meus passos mal andados,

Meu desamor perdoa e meu pecado,

Eu sei que vai raiar a madrugada

E não me deixarás abandonado.

Se Tu me dás a mão, não terei medo,

Meus passos serão firmes no andar.

Luz terna, suave, leva-me mais longe:

Basta-me um passo para a Ti chegar.

Depois disto, nada a acrescentar, a não ser o silêncio orante e contemplativo.


*É Professor Auxiliar na Faculdade de Teologia - Braga - da Universidade Católica Portuguesa e Investigador na Universidade Católica Portuguesa -

Fonte: https://diariodominho.pt/opiniao/2023-03-20-um-modo-de-dizer-o-inefavel-265341

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