quinta-feira, 2 de março de 2023

Previsões para a morte da inteligência artificial

Marcelo Coelho*

  

Imagem: Convergência Digital

Não entendo por que razão, com todo esse avanço, meu computador continua burro. Ainda me faz perguntas idiotas para saber se sou de fato humano

Vejo que a inteligência artificial já consegue fazer trabalhos escolares, sinfonias, e talvez artigos melhores do que os meus.

Anunciam que, logo logo, você nem vai precisar conversar com parentes pelo telefone; a máquina reproduz a sua voz e diz o que você diria para cada interlocutor.

Que seja! Poderei desenvolver o meu Alzheimer sem que ninguém perceba – e, quem sabe, até morrer sem causar tristeza ao meu círculo mais próximo.

O que não entendo é por que razão, com todo esse avanço, meu computador continua burro. Ainda me faz perguntas idiotas para saber se sou de fato humano.

A menos irritante exige apenas que eu clique numa rodelinha – e pronto, eles ficam satisfeitos. Sou humano; mas será que toda a IA ainda não foi capaz de clicar naquela rodelinha no meu lugar?

E, depois, que diferença isso faz? Será que eles querem ter certeza de que eu mesmo, em carne e osso, foi quem assinou a newsletter do “Pet News Daily”? Ou que foi este que vos fala o pateta que comprou um depilador de orelhas e narinas recarregável com luz solar?

Provavelmente, se em vez de mim houvesse uma inteligência artificial digitando no teclado, esse tipo de gasto já teria sido evitado automaticamente.

“Não, ele não precisa provar que é humano... só mesmo um humano seria tonto o bastante para entrar neste programa de fitness para gatos de estimação.”

Se minha humanidade se define pela capacidade de encontrar uma bicicleta na calçada, as coisas não vão nada bem. E isso por diversas razões

O mais comum é que, além de clicar na rodelinha, me peçam uma espécie de teste visual. “Clique nas imagens que contêm semáforos.” É sempre esse tipo de imagem chata: ônibus, bicicletas, pontes, barcos.

Não dava para mostrar imagens mais interessantes? Que tal distinguir entre dinossauros e trapezistas? Por que não me pedem para identificar chapéus, aquários, pipocas?

Se minha humanidade se define pela capacidade de encontrar uma bicicleta na calçada, as coisas não vão nada bem. E isso por diversas razões.

Primeira: a tal inteligência artificial precisa melhorar muito, se não consegue resolver esse problema.

Segunda razão: espera-se pouquíssimo de um ser humano, se é apenas isso que ele precisa fazer para ser quem é.

Terceira razão, a mais preocupante. Talvez nem eu seja muito humano, porque com frequência eu sou reprovado no teste.

Aquela manchinha ali no canto, pode ser considerada um carro? Ou é a caçamba de uma moto? Chamo aquilo ali de semáforo ou é só um poste? Opa, opa, esqueci de clicar na mais óbvia das faixas de pedestres.

Calma, ainda há esperança. Mostram-me um código de letras e números, do tipo Y2vaaPQP. Só que às vezes as letras estão completamente tortas, como se metidas debaixo d’água. Peço um novo código, também ilegível.

Na terceira tentativa, acaba dando certo. Pelo menos ainda não cheguei ao ponto de pedir que a Mah Qui Nah So Le Tre para mim.

Enquanto isso, minhas senhas se multiplicam, se complicam, são recusadas ou despertam, no computador, sinais de alerta: mude a senha! Adote nosso sistema que unifica todas as senhas numa só (tentei: é um inferno).

De resto, leio que com os avanços da computação quântica nenhuma senha valerá mais coisa nenhuma.

Prevejo um final para todo esse progresso.

A loja só vai confiar em você, e você só confiará na loja, se você for até o balcão pessoalmente, onde estarão suspensos o velho rolo de papel pardo e o carretel ensebado de barbante. Com dedos grossos e reais, o vendedor apertará as teclas pretas e vermelhas de uma grande caixa registradora decorada com fustões de prata, parente dos órgãos barrocos, dos realejos, dos taxímetros Capelinha.

O trabalho da faculdade, antes feito no computador, será substituído pela sombria adrenalina da prova oral, diante de uma banca de “lentes” severíssimos, enrugados, cadavéricos – e ainda assim humanos.

Você será chamado de volta à velha mesa de madeira escura no escritório, com um pote de cola Tenaz num canto. Coçará a cabeça diante de um relatório, e perguntará: “quem foi o imbecil que escreveu isso?”

Nascerá dentro de você uma onda calorosa de simpatia humana, dirigida até aquele careca sentado a quatro mesas de distância: “só pode ter sido o Esteves”.

E eis que a burrice humana, farta de tanta inteligência artificial, terá finalmente o reconhecimento que merece.

*Marcelo Coelho é jornalista, com mestrado em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo). Escreveu três livros de ficção (“Noturno”, “Jantando com Melvin” e “Patópolis”), dois de literatura infantil (“A professora de desenho e outras histórias” e “Minhas férias”) e um juvenil (“Cine Bijou”). É também autor de “Crítica cultural: teoria e prática” e “Folha explica Montaigne”, além de três coletâneas com artigos originalmente publicados no jornal Folha de S.Paulo (“Gosto se discute”, “Trivial variado” e “Tempo medido”).

Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/Previs%C3%B5es-para-a-morte-da-intelig%C3%AAncia-artificial

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