02 Março 2023
Pforzenheim, fevereiro de 1945. A Alemanha já está vencida. Mas a Royal Air Force, com um ataque de 367 bombardeiros, não desiste de arrasar essa cidadezinha alemã, causando a morte de 17 mil civis. Assim começa o extraordinário livreto de Edgar Morin intitulado “Di guerra in guerra: dal 1940 all’Ucraina invasa”, lançado ao mesmo tempo em Paris e Milão (Ed. Cortina) nestes dias.
Eis o artigo.
Ele começa com o choque de horror que o tenente Edgar Nahoum, de 24 anos, que já havia entrado para a resistência aos 21 anos (com o nome clandestino, que permaneceria com ele como nom de plume, de Edgar Morin), reprimiria rapidamente, como ele nos conta, dizendo a si mesmo: “É a guerra”. No mesmo mês, 1.300 bombardeiros anglo-americanos aniquilaram a desmilitarizada cidade da arte de Dresden, causando mais de 300 mil mortes.
Di guerra in guerra: dal 1940 all’Ucraina invasa, de Edgar Morin | Foto: Divulgação
E ainda estavam por vir as centenas de milhares de mortes civis pela bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki em agosto. Cerca de 60% dos civis normandos mortos no desembarque na Normandia se deveram aos bombardeios dos libertadores.
Essa breve sequência inicial dá o mote de todo o pequeno livro, que é uma cura de choque contra a remoção da barbárie que aceitamos que se desencadeasse em nome e em prol da civilização e da democracia, como voltamos a fazer hoje. Ainda mais indizível e extrema foi a barbárie removida da luz ofuscante da justa causa.
Uma réstia de ar puro
A fim de abrir uma réstia de ar puro no confinamento das nossas consciências fechadas, Morin acusa-se, enganando a si mesmo: “Foi muito mais tarde, depois da invasão da Ucrânia, que ressurgiu em mim a consciência da barbárie dos bombardeios realizados em nome da civilização contra a barbárie nazista”. Não é verdade, ele sentiu isso desde então. Mas foi preciso um homem de 102 anos para nos dizer que ainda temos tempo para acordar.
Um homem de 100 anos pode falar com a voz de um menino. Foi um regime tecido de mentiras, gulags e assassinatos que contribuiu de forma essencial para libertar a Europa do nazismo. Foram a primeira derrota alemã frente a Moscou e a entrada dos Estados Unidos na guerra, ambas em dezembro de 1941, que levaram Hitler, em janeiro de 1942, à decisão de exterminar todos os judeus do continente. Foi um país cujo nome por si só evoca em nós as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade que reprimiu a aspiração à liberdade do povo argelino com o sangue de um dos maiores massacres da história.
É como se, olhando para o nosso passado, pudéssemos verificar de todos os pontos de vista a verdade daquilo que Vassilij Grossmann disse sobre Stalingrado: que foi “a maior vitória e a maior derrota da humanidade”.
A voz do centenário e do menino é a voz da fenomenologia: capaz de fazer reviver tudo o que passou na plenitude sensível em que foi vivido e, ao mesmo tempo, dotada de uma visão de longo alcance, que aferra o conjunto e o desígnio do tempo, suas figuras invariantes.
Essa fenomenologia das figuras da guerra – de sua consciência alucinada, mas apodítica – é tão evidente quanto desarmante, como se a criança que está em nós, em quem Platão já saudava o filósofo, dissolvesse finalmente o medo nas palavras mais simples, que mostram o rei nu e a sua vergonha, e a nossa. A histeria de guerra, em primeiro lugar. Aquela “conversão de um sintoma imaginário em um sintoma da realidade”.
É aquela que produz a demonização total do inimigo, jogando na fogueira tanta lenha de ódio a ponto de queimar as relações futuras de gerações inteiras, de censurar escritores, músicos, esportistas, apenas por sua nacionalidade, e, finalmente, de romper amizades que pareciam profundas e que recuam diante do incompreensível barulho das fanfarras.
A “espionite”, ou seja, a crença de que o nosso campo está infestado de espiões pagos pelo inimigo – e sabemos algo sobre isso depois de deixar que qualquer um que ousasse levantar uma sobrancelha de dúvida fosse alistado entre os putinianos.
A criminalização, que é a forma com que o fanatismo mata a política transformando-a em guerra ou prolongando a guerra em rajadas de mentiras e em cemitérios de omissão, como sabemos desde a Guerra Fria.
A radicalização, que em nível micro se transforma em destruição dos tecidos familiares e afetivos – como ocorreu com a guerra da Iugoslávia em 1991, como também ocorre hoje nas fronteiras entre a Rússia e a Ucrânia – e em nível macro se transforma em escalada, como aquela que em 1945, com a revelação do poder de autodestruição que já estava nas mãos do ser humano, mudou radicalmente e de uma vez por todas os antigos argumentos em defesa de uma guerra justa.
Como é estranho que tantas inteligências brilhantes não tenham se dado conta disso. E que tantos “jornalecos” tenham se esquecido daquela evidência do mal maior – a destruição da civilização humana sobre a terra – que finalmente havia levado, no século passado, a duas conquistas morais que podíamos acreditar que eram irreversíveis.
Uma delas é a arquitrave normativa da chamada comunidade internacional, encarnada em inúmeras instituições, mas tão brutalmente desatendida na realidade: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A outra é aquela que Aldo Capitini, o nosso grande teórico da não violência, chamou de desmantelamento dos nacionalismos.
Ambas as conquistas reduzem enormemente a legitimidade da guerra como método de resolução das disputas internacionais, prospectando aquelas concessões de soberania em benefício de amplas democracias supranacionais que a União Europeia realizou em parte.
As responsabilidades da União Europeia e dos Estados Unidos
Morin não poupa a União Europeia da acusação de não ter querido evitar o desastre da guerra civil iugoslava, assim como não poupa Israel de ter varrido, ao se autoproclamar um Estado judeu, a solução de um Estado democrático binacional, enquanto destruía a de dois Estados por meio da contínua expansão dos assentamentos coloniais.
E o grande velhinho não é terno com “as nossas mídias”, concentrados no imperialismo da Grande Rússia e “mudos sobre o outro imperialismo que intervêm em todos os lugares do globo, muitas vezes contrariando as convenções internacionais, como a Rússia na Ucrânia”. Não é de se admirar que Morin deixe se sobressair no fim do livro a figura de Mikhail Gorbachev, “herói da humanidade que fez cessar a Guerra Fria em nome daquela ‘casa comum’ que é a terra para todos os humanos”.
Finalmente, depois de ter distinguido três guerras em uma (a continuação da guerra interna entre o poder ucraniano e a província separatista, a guerra russo-ucraniana e “uma guerra político-econômica internacionalizada antirrussa do Ocidente animada pelos Estados Unidos”), Morin se surpreende pelo fato de que “tão poucas vozes se levantem em favor da paz nas nações mais expostas. É surpreendente ver tão pouca consciência e tão pouca vontade na Europa (...) em promover uma política de paz”.
Toda a vida humana tem a ver com o fato de se posicionar, escreveu Edmund Husserl, introduzindo a distinção entre tomar partido, ou inclinar-se, e consentir com aquilo que temos razão para acreditar que é verdade, até que se prove o contrário e independentemente daquilo que pensam os companheiros.
Morin não oferece ao leitor a infindável bibliografia que tem às suas costas (cerca de 80 livros traduzidos em cerca de 30 línguas), mas apenas um século de vida vivida tomando posições que o tempo provou que são justas e bem fundamentadas, todas elas. Uma vida de ação na sua juventude partidária e na sua maturidade como intelectual público, é claro, mas sobretudo uma vida de pesquisa, infinita.
No fundo, o pensamento da complexidade, apesar dos seis volumes de “O método”, nos quais se desdobra da natureza à ética, distingue-se pela mais humanística das aspirações: se você busca a verdade, busque-a toda, mesmo que saiba que conhecerá – se tudo der certo – uma pequena parte dela.
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