"A alegria de uma vitória, e não só na prova de estafeta, é sempre partilhada. Mas seguramente na vida de um atleta existem também derrotas partilhadas. Por isso a corrida é também uma parábola da nossa humanidade."
Cardeal José Tolentino Mendonça
Quando o desporto se faz mais nobre: esta expressão do papa Francisco é o fio condutor dos diálogos com atletas de alto nível promovidos no Vaticano, relançando a visão inclusiva e solidária para um desporto que seja expressão autêntica de cultura e oportunidade de crescimento social.
O cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, e o italiano Filippo Tortu, de 24 anos, campeão olímpico da estafeta 4X100 nos Jogos de Tóquio de 2020, foram os protagonistas do primeiro encontro, realizado a 15 de março.
A iniciativa é organizada pela Athletica Vaticana, instituição polidesportiva da Santa Sé, o Dicastério para a Comunicação e o Dicastério para a Cultura e Educação, ao qual o papa consignou as questões e atividades relacionadas o desporto.
Reproduzimos o diálogo, que constituiu um pacto entre gerações e uma proposta cultural, entre os valores existenciais da lentidão e da velocidade, com a linguagem do desporto e da poesia.
Card. Tolentino de Mendonça
Estou muito grato pela possibilidade deste encontro com o Filippo para dialogarmos juntos sobre questões que tocam a vida. Porque falar do desporto é falar da nossa humanidade e da forma da nossa humanidade hoje. O desporto não deve ser visto sobretudo como uma forma de entretenimento ou como uma expressão de uma tecnicidade, como se um atleta fosse uma máquina. Antes de tudo um atleta é uma pessoa humana. O Filippo corre sem mais com a técnica que aprendeu, com toda a sua disciplina e com os seus músculos. Mas corre também com o seu coração, com a sua cabeça, com o seu sonho de ser pessoa, com a capacidade de ser com os outros. A alegria de uma vitória, e não só na prova de estafeta, é sempre partilhada. Mas seguramente na vida de um atleta existem também derrotas partilhadas. Por isso a corrida é também uma parábola da nossa humanidade.
Filippo Tortu
Obrigado por me ter dado a possibilidade de estar aqui, no
Vaticano, a falar convosco. Enquanto observada o vídeo com a minha
história desportiva, tentei imaginar o que poderia dizer. E encontrei
dois ou três pontos… devo dizer que foram todos elencados por este
belíssimo discurso introdutório que o senhor fez e que realmente me
tocou.
Hoje poderia falar de quanto um atleta se tem de sacrificar, de
quanto treino, de quanta técnica, de quanta preparação está por trás de
cada momento de cada competição.
Precisamente ao observar as imagens que foram agora mostradas, pensei em todas as horas passadas com os meus treinadores. E no entanto, quando revejo o vídeo da vitória na estafeta nas Olimpíadas de Tóquio, o que mais me emociona é o fragmento de uma imagem: quando cheguei à meta e abracei o Fausto, o meu companheiro de estafeta. Sim, precisamente aquele é o momento que mais me emociona. E estou a emocionar-me também neste momento, ao recordá-lo. Porque naquele abraço há o significado do que para mim é o desporto. Quando cortei a meta olímpica, procurei com o olhar, na tribuna, todas as pessoas às quais quero bem e com as quais partilhei o percurso para Tóquio: foi a primeira e única vez que chorei e me emocionei pelo atletismo.
Sacrifício é uma palavra que, no desporto, não me agrada. Antes de tudo, o desporto, a meu ver, ensina-te a relacionares-te contigo próprio. Sobretudo no meu caso porque o atletismo é um desporto individual e tens de te confrontar contigo próprio. Fazendo desta forma, colocas-te diante dos teus maiores sonhos e, por consequências, dos teus maiores medos. Nas Olimpíadas de Tóquio vencemos. Mas há também o sofrimento quando perdes, e precisamente na experiência da derrota consegues compreender quem és e quem podes ser. Isto foi o que as Olimpíadas me ensinaram.
Detestei sempre o moto «o importante não é vencer, mas participar»: considero-o de perdedores, eu vou competir para vencer. Porém, durante as Olimpíadas, tendo vivido antes uma grande desilusão na minha corrida individual, compreendi que o importante foi ter-me dado todo para estar ali, naquele momento, a correr: ter partilhado um percurso com pessoas que se tornaram uma família. Certamente o meu pai, que é também o meu treinador, os meus companheiros, os fisioterapeutas… Em Tóqui o compreendi que o importante não era cortar a meta em primeiro, mas estar consciente de ter feito todo o possível para ter chegado precisamente ali, naquele momento. Esta consciência permitiu-me mudar como pessoa e, consequentemente, como atleta, e também correr mais rápido do que nunca. Isto aconteceu em cinco dias. Devo dizer que aqueles cinco dias mudaram-me profundamente como pessoa. Uma questão sobre a qual gostaria de debater consigo é esta: pratico um desporto individual, passo muito tempo sozinho. Olhando-me por tendo aprendi a compreender e a apreciar quanto é importante estar em paz consigo próprio para estar em paz com os outros.
Card. Tolentino de Mendonça
As tuas palavras fazem-me pensar no que foi escrito no templo de Apolo em Delfos: «Conhece-te a ti mesmo». Creio que se deve falar de enamoramento, e seguramente o Filippo é uma pessoa enamorada. Foi muito interessante escutar esta construção de interioridade de atleta. Também o monge – como o estudioso na universidade, o contemplativo e, precisamente, o atleta – passa muito tempo só, testando-se a si próprio, escutando-se a si próprio. Assim, no fim, constrói-se como pessoa. O empenho, tão bem descrito nas tuas palavras, de encontrar paz consigo próprio é o desejo que todos temos. Que esta experiência se possa encontrar no desporto é muito interessante: aquilo que o Filippo diz de um atleta, nós podemo-lo dizer de um contemplativo, de alguém que procura uma experiência espiritual colocando em jogo toda a pessoa.
Uma curiosidade, Filippo: os pés. Fiz a experiência nas minhas peregrinações a Santiago de Compostela e a Fátima: chega um momento em que são os nossos pés a rezar, já não é a cabeça. Também experimentaste isto na corrida veloz?
Filippo Tortu
Há momentos em que os pés estão separados da terra. Vão sozinhos. Dei-me conta precisamente há uma hora, antes de chegar aqui ao Vaticano. Estava a treinar-me e pedi para não fazer a última prova porque estava demasiado cansado, não sentia que poderia tornar-se útil. Naturalmente, o meu treinador vê sempre mais longe que eu e insistiu. Teve razão, porque após o segundo apoio foram os pés a “levar-me”: tive simplesmente de os “fazer andar” e “estar atrás deles”. Parece um contrassenso: quando ao correr se busca a velocidade, na realidade vai-se devagar. Quando tu “forças”, na realidade enrijece-se. O que tens de fazer para correr mais veloz? Simplesmente confiar em tudo aquilo que fizeste no treino e que aprendeste ao longo dos anos. Sim, recordar duas ou três “coisas técnicas”, certo… mas depois vem tudo com naturalidade. Tens de estar sereno, seguro, mas não por arrogância, ainda que o velocista deva ser, só em pista, um pouquinho arrogante. Deve estar sereno e seguro por todo o treinamento realizado e porque, no fim de contas, estás a fazer aquilo que mais gostas e que te torna melhor.
Card. Tolentino de Mendonça
Filippo, ao falares da figura do treinador, usaste uma expressão que me fez pensar. Descreveste-o muito bem: o treinador vê sempre mais longe. Gostaria de te escutar sobre esta relação com o treinador que nós, noutros campos – pensemos na tradição dos pintores – chamamos mestre. Como vives a tua relação com o treinador e cono interpretas esta figura tão fundamental para um atleta?
Filippo Tortu
O meu treinador é meu pai. Para descrever a nossa relação recorro a quanto aprendi no catecismo: a questão está precisamente na liberdade de errar. Deus coloca-te sempre diante da possibilidade de escolher, e o meu pai fez o mesmo comigo. Ter o treinador em casa pode ser complicado: se uma noite regressas tarde, ele tem de te repreender. O meu pai, pelo contrário, deu-me sempre a possibilidade de escolher livremente, como que a dizer «este é o caminho se queres ser atleta, mas escolhe tu». Disse a mim próprio: sou livre de fazer aquilo que quero, mas não quero errar. Mas o mérito é dele: além de ser um bom pai é um excelente treinador. Temos uma relação baseada no diálogo: decide o treinador que, porém, quer sempre saber a minha opinião sobre o que estamos a fazer. Também penso que ele já sabe as minhas respostas…
Juntamente com o meu pai há uma outra pessoa que se ocupa, em particular, da fisioterapia. Desde pequeno sofri a ausência da figura do avô, e por isso vejo este meu técnico como o meu avô adquirido. É importante ir a cada dia treinar-me sabendo, dentro de mim, que tenho os dois melhores treinadores do mundo. Melhor, para mim é importante saber que vou encontrar duas pessoas capazes de fazer-me estar bem. Creio que é o aspeto mais importante na relação entre treinador e atleta.
Card. Tolentino de Mendonça.
Encontraste-te pessoalmente com o papa Francisco. De alguma maneira pode ser descrito como um homem que vê mais longe, assim como tu definiste o treinador.
Filippo Tortu
Sim, o papa é um homem que sabe olhar mais longe. Quer tu sejas crente ou não, o santo padre representa “algo” de muito grande, que é o aspeto espiritual da pessoa. Por esta razão senti-me “tocado” como homem. Recordo muitíssimo bem o encontro com o papa. Habitualmente, no fia antes de uma competição procuro não me cansar: quase não saio do meu quarto e procuro dar poucos passos. Mas quando me disseram que havia a possibilidade de me encontrar com o papa Francisco, quis ir à praça de S. Pedro: na véspera de uma competição importante no estádio olímpico estive duas horas ao sol, de pé. Mas devo tornar presente que no dia seguinte a competição correu muito bem…
Card. Tolentino de Mendonça
Ao escutar-te, creio que existe uma centelha que faz desencadear o amor pela corrida. Como também pela poesia. E é quando uma pessoa se esquece de si mesma, o tempo e o cansaço: eis o amor.
Filippo Tortu
Sim, sempre desejei ser um atleta, e aos 17 anos comecei a fazê-lo por trabalho. Por isso não gosto de falar de sacrifício. Há pessoas que obtêm grandes resultados mas vivem uma vida desordenada fora do campo: não as considero desportistas, ainda que sejam as melhores do mundo. “Votei-me” ao atletismo, faz-me estar bem, e estou convicto de que os atalhos nunca levarão à melhor versão de ti mesmo – mentalmente e fisicamente –, que é o verdadeiro objetivo do desporto.
Com este espírito optei também por estudar na universidade. Precisamente hoje estive com o tutor para preparar um exame. Sinceramente vivi um período complicado com a universidade, mas compreendi que a minha vida não estava bem, e decidi obrigar-me a encontrar, dentro de cada dia, os espaços ajustados para estudar.
Card. Tolentino de Mendonça
Uma bela palavra italiana, para um estrangeiro como eu, é “apripista”: não só estar na pista, mas abrir pistas novas, criar novas visões e novas possibilidades. Um atleta descobre aquilo que Kierkegaard dizia: o ser humano é sobretudo possibilidade. Estou muito feliz, também como prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, pelo testemunho do Filippo. É verdade, os estudos não são fáceis de fazer coincidir com a vida de atleta de alto nível. Neste esforço de abrir pistas um exemplo é o papa Francisco, que à palavra educação associa a palavra esperança, tanto que por vezes parecem sinónimos. Se nas nossas vidas investirmos na educação, estamos a alargar o nosso campo de esperança. Recentemente, ao falar a estudantes e professores das universidades pontifícias romanas, o santo padre usou uma metáfora forte: «Fazei coro». E nos coros, por vezes, há os solistas, porque é importante também a capacidade de ser protagonista. Mas há sobretudo a consciência de que somos um “coro” e que nenhum se salva sozinho. Uma poetisa recorda-nos também que somos «uma obra dos outros». A solidão tem em si um valor e é a possibilidade de o ser humano entrar dentro de si mesmo. Mas a nossa vocação é ser este “coro” que nos oferece a alegria de viver em companhia, de partilhar esta aventura, esta corrida magnífica que é a vida.
Filippo Tortu
O atletismo é um desporto individual, de facto tu corres sozinho. Mas na realidade, no momento em que desces à pista e estás atrás dos blocos, representas também a síntese de um trabalho que envolve muitíssimas pessoas capazes de te colocar nas melhores condições possíveis para chegares ao melhor na competição. Se perdes a corrida fazes frustrar um grande trabalho de equipa. É uma responsabilidade que sinto e ajuda-me a dar o melhor de mim. De resto, quando tens de te sacrificar inclusive por alguém consegues fazer… mais uma “coisinha”. Por isso vencemos a estafeta nas Olimpíadas. A soma dos nossos quatro tempos era pior do que a de outra equipa. Mas estávamos convictos de poder vencer e, sobretudo, queríamos vencer como grupo. Como equipa. Isto fez a diferença.
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: EvrenKalinbacak/Bigstock.com
Publicado em
23.03.2023
Fonte: https://snpcultura.org/desporto_e_vida_cardeal_tolentino_filippo_tortu.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário