Para o médico Emílio Moriguchi, uma das maiores autoridades brasileiras em geriatria, envelhecer não é um castigo, mas uma conquista que pode ser alcançada com prazer e hábitos de vida simples e saudáveis
No saguão principal do Hospital de Clínicas, em um canto protegido do entra e sai frenético de médicos e pacientes que movimentam a rotina de um dos centros de atendimento de maior fluxo do Estado, um japonês de estatura mediana, mochila nas costas, um celular em cada mão e sorriso afável apresenta-se pontualmente, nem um minuto a mais nem a menos, para esta entrevista. São 13h e ele está funcionando desde as 6h. Acaba de descer sete lances de escada com uma aparência inabalada. Este japonês chama-se Emílio Moriguchi, tem 57 anos e sua biografia é inversamente proporcional à humildade com que lida com o próximo e exerce a medicina há mais de duas décadas.Um dos maiores especialistas em saúde do Brasil, coordenador do Centro de Geriatria e Gerontologia do Hospital Moinhos de Vento, Moriguchi formou-se na UFRGS e fez pós-doutorado pela Wake Forest University, de Winston (EUA). Aperfeiçoou-se em Metodologia de Pesquisa e Doenças Crônicas pela World Health Organization, na Suíça, e realizou doutorado pela Tokai University School of Medicine, no Japão. Não bastassem todas essas credenciais, uma maior vem de berço: é filho e herdeiro natural dos ensinamentos do mestre Yukio Moriguchi, o pai da geriatria no Estado, fundador do Instituto de Geriatria e Gerontologia (IGG) do Rio Grande do Sul.
Foi para falar a respeito de envelhecimento, prevenção, alimentação e hábitos de vida saudáveis que ele dedicou duas horas de uma rotina que só termina de madrugada para conceder a Donna a entrevista a seguir.
Donna – O senhor é professor visitante da cidade de Oklahoma, no Japão. Durante dois meses por ano, em fevereiro e outubro, viaja para o outro lado do mundo para dar aulas a estudantes de medicina e enfermagem. É convidado porque há alguns conhecimentos e conceitos esquecidos pelos profissionais japoneses. Quais são eles?
Emilio Moriguchi – O relacionamento humano e a importância do coração. Não o órgão, mas o sentimento. São disciplinas que enfocam a importância de se relacionar com os pacientes.
Donna – O senhor está dizendo que, em um país altamente tecnológico como o Japão, foi esquecida a importância do afeto na relação médico-paciente?
Moriguchi – Exatamente. Os alunos e os médicos desconhecem ou esqueceram. O Japão tem os melhores hospitais do mundo. Trata-se de um país altamente desenvolvido em tudo. Na questão da saúde, ninguém espera para ser atendido – e este atendimento é bastante socializado e justo. O funcionário que acabou de entrar na empresa, por exemplo, recebe o mesmo atendimento e no mesmo balcão que o presidente desta mesma empresa. Quanto a isso, está tudo certo. Porém, falta calor humano.
Donna – O senhor pode ser mais específico?
Moriguchi – O paciente chega ao hospital e é direcionado para o setor de enfermagem, que mede os sinais vitais. Simultaneamente, o computador vai gerando o checklist e os tipos de exames que precisam ser realizados. Então, o paciente sai dali e vai direto para o laboratório com a requisição em mãos para coletar o sangue. Em seguida, leva o resultado para o médico, que avalia e, se necessário, já o encaminha para outros exames que o paciente realiza imediatamente. É tudo muito rápido e extremamente eficiente.
Donna – E sem nenhum tipo de diálogo, pelo visto...
Moriguchi – (risos) O paciente sai da consulta extremamente satisfeito com a eficiência do serviço, mas sem sequer ter trocado uma palavra com o médico. Durante todo esse período, não se abriu espaço para um breve diálogo que seja. O paciente não foi ouvido, não teve a oportunidade de falar dos seus medos, das suas angústias, de nada.
Donna – O senhor considera essa relação médico-paciente tão importante quanto um serviço altamente eficiente?
Moriguchi – Em muitos casos, o problema do paciente é fundamentalmente emocional. Não há nada de errado com a saúde dele, ou até existem alguma alterações, mas são consequência de questões psicológicas que ele vem enfrentando. Se não consegue dialogar, não consegue resolver. É justamente por isso que os japoneses me pediram para começar a ministrar essas disciplinas de relação humana.
Donna – Tem uma clínica no centro de Tóquio que leva o seu nome, um reconhecimento público de que os seus ensinamentos nesses dois meses em que leciona no país são fundamentais para a evolução da medicina japonesa como um todo. Como funciona na prática o seu trabalho na clínica?
Moriguchi – Basicamente da mesma maneira que funciona aqui. Enfocamos muito a relação médico-paciente, a importância da empatia, de se colocar no lugar do outro para tentar compreender do que ele precisa, o que sente. A primeira pergunta que sempre faço aos meus pacientes, seja no Japão ou no Brasil, é: “Em que posso lhe ajudar?”. Na hora em que ele começa a falar, você tem que estar apto e disposto a ouvir. Muitas vezes acontece de um paciente chegar com indicação de tratamento para colesterol alto ou pressão alta e logo percebo que é tudo decorrência de algum problema familiar ou profissional. Ao entender o funcionamento daquela pessoa como um todo, consigo tratá-la melhor na sua necessidade. A clínica Emilio Moriguchi é conhecida no Japão como o lugar que trata o coração. Não o órgão, mas a alma.
Donna – O senhor anda sempre com dois celulares?
Moriguchi – Sempre (risos). É para evitar as áreas de sombra. Dou os números dos meus celulares para os pacientes particulares e do SUS. Me coloco sempre à disposição, afinal de contas, estou aqui para ajudar. Tem algumas pessoas que abusam (risos), mas a maioria se dá conta de que não é para abusar, e eu sempre estou às ordens. Esse interessar-se, o querer o bem, o serviço ao próximo é um espírito que se perdeu muito no Brasil, no Japão, em qualquer lugar.
Donna – O senhor aprendeu a colocar em prática esses valores aqui no Brasil?
Moriguchi – Eu nasci no Japão, vim para cá com 10 anos e me criei aqui. Este lado mais afetivo e mais humano certamente é decorrência do meu aprendizado inserido na cultura brasileira. Por outro lado, tive uma educação extremamente rígida do meu pai, que está se aposentando agora com 90 anos (Emilio é filho do professor Yukio Moriguchi, o pai da geriatria no Rio Grande do Sul). Ele é um japonês muito exigente que nunca permitiu ter o filho fora da linha, sobretudo o mais velho, que sou eu. Somos quatro irmãos, e eu era sempre o primeiro a ser cobrado e a apanhar, se fosse o caso (risos). Eu tinha que dar o exemplo. A disciplina e a ordem japonesas associadas ao calor humano brasileiro forjaram a pessoa e o profissional que eu me tornei.
Donna – Disciplina e ordem o senhor tinha em casa. Mas e o calor humano? Onde aprendeu?
Moriguchi – No ano de 1968, quando chegamos aqui em Porto Alegre, não sabia falar português. Meus pais me matricularam em um grupo escolar na frente do antigo prédio da Brahma, ali na Cristóvão Colombo. Ninguém conseguia falar comigo. Eu era um ser humano incomunicável. Havia um rapaz chamado Hugo que era a única pessoa que, sem abrir a boca, me levava para almoçar, mostrava onde era o banheiro, essas coisas básicas de sobrevivência. Ele me ajudou muito em tudo. Aquele calor humano me marcou demais – até porque era desconhecido para mim. Aos 10 anos de idade, aprendi com o Hugo como devemos tratar o próximo.
Donna – O senhor formou-se em medicina na UFRGS e voltou ao Japão para fazer doutorado. Quando chegou lá, já se sentia diferente dos médicos japoneses?
Moriguchi – Muito, e essa diferença era visível. Todos vinham comentar como eu tinha me tornado um profissional distinto, sobretudo porque falava com os pacientes. Coisas triviais, do tipo “como anda a vida?” ou “como está em casa e no trabalho?”. Eles diziam que isso não era papel do médico.
Reportagem por MARIANA KALIL
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4890705.xml&template=3898.dwt&edition=27759§ion=1026
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