Juremir Machado da Silva*
Outras perdas
Olho da minha janela o sol que se debruça no
horizonte e penso no que perdi por estar demasiadamente ocupado tentando
ganhar. Como no poema de Pablo Neruda, que tanto cito por nele
reconhecer a essência do sentimento que em mim se abriga como um cão
fiel, perdi de terminar o livro que sempre se escolhe ao crepúsculo.
Perdi também de olhar o crepúsculo por estar procurando luzes na
escuridão das disputas de vaidades. Perdi de recordar o que amei por ter
de reservar a minha pouca memória para dados que jamais me serviram,
embora sejam importante para a humanidade, o valor do Pi, a fórmula de
báskara e os elementos da tabela periódica. Perdi o sumo do pêssego
descascado à sombra dos cinamomos nas tardes de verão escoadas com a
doçura dos melhores dias em família. Perdi o gosto da solidão por ter de
passar grande parte da vida no meio da multidão.
Perdi de fazer a viagem de volta por estar sempre obrigado a fazer
mais uma viagem de ida para algum lugar imperdível. Perdi de curtir o
grande lugar admirado por todos por me sentir na obrigação de encontrar o
lugarzinho feito só para mim. Perdi de recordar certas coisas singelas
por estar memorizando tudo o que acabei esquecendo. Penso no que esqueci
e me surpreendo com cheiros, vozes, risadas e frases que nunca tinha
lembrado antes. Um amigo, numa tarde de 1973, gritando “vamos jogar”,
uma menina, numa noite de 1976, sussurrando “gosto de ti”, outra tarde,
lá por 1975, colhendo ameixas num pomar que me parecia a melhor
definição do paraíso. Perdi a data de uma imagem que me persegue: eu,
guri, caminhando só à beira de um mato com os olhos focados na beleza
colorida de um maracujá inalcançável.
Por que me vem cada vez mais essa lembrança das coisas perdidas que,
no entanto, estão bem guardadas no meu coração? Por que me vem essa
certeza de que perdi de sorrir e de brincar em ocasiões formais por ter
acreditado na importância da gravidade como etiqueta? Quanto gente
perdeu de dançar por ter sempre alguém para cobrar um desempenho melhor?
Quanta gente perdeu de cantar por medo de desafinar? Quanta gente
perdeu de falar por temer o arrependimento? Bem ou mal, disso me
orgulho, nunca perdi de jogar futebol. Mas perdi, faz tanto tempo, o
cheiro dos melões maduros amarelando na lavoura. Perdi o canto do jacu
na quietude da mata. Perdi de perder.
Sim, aos poucos, vamos aprendendo a não jogar para não perder. Há
quem perca a beleza do pôr do sol por ter sido convencido de que é
brega. Há quem perca o calor do Natal em casa por acreditar que não é
moderno. Há quem perca o encontro com os amigos por ter de dedicar todos
o seu tempo aos inimigos. Eu perdi tanta coisa que me faz falta. Onde
terei deixado meus time de botão? Onde terei enterrado o Lobo, meu
cachorro e amigo ao longo da adolescência? Que fim terá sido dado à
bicicleta que foi meu meio de transporte durante oito anos? Eu perdi
tempo tentando ganhar tempo. Perdi alegria tentando ganhar felicidade.
Perdi de escrever o que queria por medo de não escrever o que de mim se
esperava. Perdi de dizer: a vida é boa.
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* Sociólogo. Prof. Univer. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povo.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/
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