No Rio para lançamento e palestra, sociólogo português
enfrenta pessimismo com crise global
Tarefas impossíveis aparecem já no título do novo livro de Boaventura
de Sousa Santos, “139 epigramas para sentimentalizar pedras” (Confraria
do Vento). Comover os minerais, porém, pode parecer até pouco diante do
desafio que o sociólogo português enfrenta em alguns poemas da obra:
refletir, em tempos de crise global, sobre novas formas de utopia.
Talvez por isso, o décimo livro de poesia de Boaventura, um dos
criadores do Fórum Social Mundial (com seu lema “Outro mundo é
possível”), é descrito por ele mesmo como “intimista” e “pessimista”.
Usando a forma medieval do epigrama, com versos curtos de moral
surpreendente, ele define a Europa ora como um grande sistema de
vigilância (“decidi instalar a europa em toda a casa/ uma questão de
segurança/ e também de conforto”) ora como “uma cozinha absurda/ de
ingredientes tóxicos”. Boaventura conversou com o GLOBO por telefone a
caminho do Rio, onde lança o livro dia 5, às 18h30m, no Centro Cultural
da Justiça Federal (CCJF), no Centro. Antes disso, dia 3, às 19h, faz a
conferência “O ato criador na arte, na ciência e na política”,
encerrando o ciclo Ato Criador, na Escola de Circo Crescer e Viver, na
Praça Onze.
‘Nunca foi tão difícil pensar
numa alternativa. Eu me considero um otimista trágico. Só que nos
últimos tempos
tem sido mais fácil ser trágico.’
Este
é seu décimo livro de poemas. Qual é o lugar da poesia no seu trabalho?
Ela permite expressar algo que o ensaio não permite?
A
poesia acompanhou-me ao longo de toda a vida. Publiquei meu primeiro
livro de poemas quando estava no último ano da faculdade. E sempre
entendi as Ciências Sociais como um trabalho criativo. Na modernidade,
criamos uma distinção entre ciência e arte. A ciência foi considerada o
terreno da racionalidade instrumental: ela ensina-nos a fazer coisas,
não pergunta sobre o sentido da vida, não tem como objetivo a beleza. Já
a arte foi deixada para o terreno do simbólico, busca o belo e não o
útil. Chegamos a tal ponto que Adorno dizia que um cientista que escreve
bem é suspeito (risos). Eu desde sempre me insurgi contra isso. Tentei
manter uma tensão entre a criação científica e a artística.
O que diferencia este livro de “epigramas” dos seus livros de poemas anteriores?
Meus
livros de poesia sempre buscam a transgressão. Em “Escrita INKZ”
(Aeroplano) havia um cão poeta, que assumia a palavra em parte do livro.
“Rap global” (Aeroplano) surgiu de um impulso sociológico que não
consegui responder: por que os jovens não participam da politica, mas
são os protagonistas do melhor discurso de protesto nas nossas
sociedades, o hip hop? Então misturei referencias filosóficas e
sociológicas com a cultura urbana e o rap. Já o epigrama é um poema
medieval curto, com uma moralidade surpreendente, revelada nos últimos
versos. Recuperar essa forma, que já quase não é mais usada, também é
uma transgressão. Mas os poemas deste livro são mais intimistas. Sou um
intelectual público, minhas aulas e palestras estão sempre cheias, mas
às vezes sinto uma grande solidão. Estes são poemas de silêncio.
‘Estamos hoje em busca daquilo
que Paulo Freire chamava de 'utopia concreta'. Vejo isso em todo lado. A
utopia hoje
para mim é o que está a ser feito.’
Apesar
desse tom intimista, os poemas também expressam preocupações políticas
comuns no seu trabalho. Um deles descreve a Europa como “uma cozinha
absurda/ de ingredientes tóxicos”. É um livro mais pessimista?
Sou
um sociólogo comprometido com a transformação social, um intelectual
que tem vindo a público sempre defender uma ideia de alternativa. Não
podemos continuar com uma situação em que 50% da população detém só 1%
da riqueza mundial. Precisamos de uma alternativa, mas nunca foi tão
difícil pensar numa alternativa. Eu me considero um otimista trágico.
Não posso deixar de ver a tragédia das dificuldades, mas não posso
deixar de pensar que há uma solução para a pobreza e a fome. Só que nos
últimos tempos tem sido mais fácil ser trágico. Por isso os poemas
talvez tenham um tom mais pessimista.
A crise econômica também está presente no livro, como no
poema em que um homem, ao chegar em casa, descobre que ela foi
transformada em um banco.
Às vezes, um poema cínico e
pessimista transmite a mensagem melhor do que um ensaio cientifico
(risos). O mundo está a se transformar em um lugar sem alternativa, onde
os cidadãos se vão convencendo de que estão num caminho suicida. Não há
ideia crível para nos tirar da situação em que estamos. Precisamos de
uma revolução epistemológica. Quer na Europa, quer no Brasil, estamos
num modelo de desenvolvimento dominado pelo capital financeiro. Nesse
estágio, como já não há compromisso com a produção, nem com o
trabalhador, o capitalismo torna-se antissocial. Isso produz
concentração da riqueza, desigualdade, cortes em direitos sociais e
também uma crise ecológica sem precedentes. Este modelo tem que ser
alterado, a menos que pensemos que estamos no Titanic e já não há nada a
fazer.
Você sempre trabalhou com a ideia de utopia. Diante desse quadro que descreve, o que pode ser a utopia hoje?
Estamos
hoje com dificuldade em relação à utopia. Ela não é mais uma
metanarrativa, uma aspiração a um sistema político que venha resolver os
problemas de todos para sempre. Estamos hoje em busca daquilo que Paulo
Freire chamava de “utopia concreta”. Vejo isso em todo lado. Na
economia solidaria, na agricultura comunitária, nos experimentos de
democracia direta, em grupos que buscam fugir à tirania do mercado, na
Europa, na América, na África. São utopias concretas que as pessoas
estão a construir. Procuro aprender com essas iniciativas, ver o que
elas podem trazer de novo em termos de organização econômica, direitos
humanos e democracia. A utopia hoje para mim é o que está a ser feito.
---------
Reportagem por Guilherme Freitas
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/boaventura-de-sousa-santos-lanca-poemas-de-otimismo-tragico-1-17926559
Nenhum comentário:
Postar um comentário