Bernardo Toro
PENSADOR COLOMBIANO aponta desafios da educação no Brasil e na América Latina, e reforça a necessidade de mudança drástica nos sistemas de ensino se quisermos chegar à excelência
Dos
muitos aspectos pelos quais a América Latina pode ser abordada pelo
filósofo e educador colombiano Bernardo Toro, 70 anos, fica evidente que
todas as transformações, sejam sociais, políticas ou ambientais, passam
pela educação. Um dos principais intelectuais latino-americanos, Toro
esteve em Porto Alegre na última semana para conhecer mais de perto o
trabalho da ONG Parceiros Voluntários, que se inspirou em seus
ensinamentos e cuja atuação ele classificou como “a melhor experiência
que existe hoje no Brasil”. Ele também participou do almoço Tá na Mesa,
promovido pela Federação das Associações Comerciais e de Serviços do Rio
Grande do Sul (Federasul).
O colombiano não usou meias palavras para reforçar a crença de que educação de qualidade depende de uma mobilização da sociedade e que as mazelas no setor não devem ser creditadas aos conhecidos problemas de infraestrutura nas escolas e salários defasados dos professores. Ele aposta que, se os países se empenhassem em um sistema único de educação, sem a distinção de qualidade entre escolas públicas e privadas, seria possível alcançar a excelência no ensino.
Decano acadêmico da Faculdade de Educação da Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá, Bernardo Toro conversou com Zero Hora sobre os desafios da educação no Brasil e na América Latina.
Como o senhor avalia, de modo geral, a educação brasileira e a forma como é conduzida?
Creio que o Brasil e todos os países da América Latina têm os mesmos problemas na educação. Nenhum tem uma solução importante. A diferença básica da educação brasileira talvez esteja no Ensino Superior (em que ocorreram medidas para ampliar a inclusão, como as cotas), e ainda assim há um problema: o vestibular é uma seleção muito difícil, que geralmente favorece aqueles que vêm dos setores mais altos e favorece menos os que vêm de colégios estaduais. Nos demais problemas, como rendimento, retenção, níveis de leitura e escrita, os estudantes brasileiros estão nas mesmas condições do que os colombianos, mexicanos, em uma comparação entre países grandes. O que está um pouquinho melhor é o Chile e em alguns aspectos, mas, no resto, não há diferenças importantes. Em alguns conhecimentos, em alguns níveis, a ciência do Brasil é melhor do que a mexicana, mas o México é melhor do que o Brasil em outros pontos, e a Colômbia é melhor em certos aspectos do que outros países. Desde os anos 2000, há 15 anos, temos o Laboratório Latino-Americano de Evolução da Qualidade Educativa (LLECE, na sigla em espanhol). A cada 10 anos, faz-se a medição dos níveis de educação nos países para que possamos compará-los. Antes disso, não podíamos fazer essa comparação porque as variáveis não eram comparáveis. Entre 1998 e 2006, houve o trabalho de homologar os currículos e se fez uma medição para todas as crianças da América Latina de 14 países. Aí, notou-se que o único país que tem dados distintos de todos os outros da América Latina é Cuba. As crianças de menor desempenho em Cuba têm rendimento igual aos melhores alunos do resto dos países, porque as crianças de Cuba têm resultados comparáveis aos alunos de países desenvolvidos.
Diante de tantas semelhanças, os governos discutem soluções em conjunto e de fato há ações concretas para reverter isso?
Supõe-se que isso seja feito na reunião de ministros da educação. Ocorre que, em toda a América Latina, exceto em Cuba, são aceitos dois sistemas educativos, com qualidades distintas. A maioria das pessoas que tomam decisões no Brasil estudou em colégios privados. As pessoas que têm mais recursos colocam seus filhos em privados, e os outros, no público. Um país é sério na educação quando mantém um sistema educativo para ricos e pobres de igual qualidade. O único país que tem o mesmo sistema educativo para todos é Cuba. Os outros têm esses dois sistemas. Nenhum deles terá uma educação de qualidade com dois sistemas, um de qualidade A, outro de B. Esse é um problema que ninguém quer enfrentar, porque as elites não querem que seus filhos se juntem aos pobres. Um exemplo: o filho do presidente da Volvo em Estocolmo (Suécia) estuda na mesma escola do filho do senhor que vive de vender pescado. Esses alunos têm a mesma oportunidade porque o sistema é o mesmo para todos. Nós, não. A saúde não é igual para todos, o transporte não é igual para todos. Na educação, também é assim. Um país que aceita esse tipo de coisa nunca vai conhecer a excelência. Por exemplo, quando seu filho chega à escola, ele sabe entre 3 mil e 4 mil palavras distintas. Uma criança de sete anos de uma área rural sabe entre 300 e 400 palavras distintas. Se a escola não usar métodos provados para resolver este gap, essa diferença será projetada no tempo, e cada vez a separação entre as possibilidades de cada uma dessas crianças será maior. Se a escola é de uma só qualidade, esse problema não importaria, porque, rapidamente, o filho do vendedor de doces na rua estaria conversando com o filho do dono da companhia e essa convivência iria equilibrar a linguagem, no recreio, nas brigas, na sala. Os dois seriam amigos. Mas temos uma escola fragmentada, cada uma com uma qualidade.
Já separamos as crianças na escola automaticamente.
Sim. A educação é o maior fator de articulação social, política e emocional de um país e, na América Latina, está sendo exatamente o contrário. E ainda queremos países unidos... Não há como.
Nesse contexto, há algum esforço de governos para transformar essa realidade em algum desses países?
Bem, curiosamente Bogotá é a cidade onde mais pessoas começaram a colocar seus filhos em escolas públicas. Há um esforço enorme. A infraestrutura das escolas públicas de Bogotá é de longe superior à infraestrutura dos melhores colégios privados da cidade. São infraestruturas extraordinárias, têm piscina, são muito bonitos. Se, neste momento, aqui em Porto Alegre, fizessem um grande esforço para melhorar a qualidade dos colégios públicos, com a crise econômica, para economizar, muitas famílias começariam a colocar filhos nessas escolas. Mas é preciso combinar as duas coisas porque não é um problema de política, mas de conjuntura. Também temos de levar as escolas para perto da casa dos estudantes. Na América Latina, tiramos a escola das comunidades. É um gravíssimo erro.
Em que aspectos?
Uma criança entra às 7h (na Colômbia é às 7h) e sai da escola lá pelas 14h, 15h. Um colégio grande tem cerca de 1,2 mil estudantes e cerca de 90 professores. Vamos simplificar: em torno de 1,2 mil crianças estão aos cuidados de cem adultos aproximadamente até as 14h. Depois desse horário, os estudantes querem ficar livres, sair. É este momento que o narcotráfico aproveita, que a máfia aproveita, que o trabalho escravo aproveita... Se as crianças fossem educadas dentro do seu bairro, não ficariam soltas, ficariam sob a observação, direta ou indiretamente, dos adultos desse bairro, estariam muito mais seguras. Mas é preciso educar a sociedade para que aprenda a cuidar do filho de todos, porque, na América Latina, somos muito bons para criar nossos filhos, mas não para cuidar das crianças. Nos preocupamos com nossos filhos, não com as crianças.
Temos uma preocupação individualista com a educação?
Não há consciência de que os nossos filhos são filhos da comunidade, da sociedade. Um indivíduo que poderia abusar de uma criança no Japão, nos Estados Unidos, não o faz porque os adultos estão atentos. Isso é uma das razões pelas quais as escolas não podem sair das comunidades. Venderam a ideia de que uma escola desvaloriza o bairro, os prédios vão valer menos porque os estudantes apanham as flores, usam drogas etc. Em Bogotá, cogita-se colocar um colégio em um bairro elegante, os primeiros a se opor são as famílias.
Em Porto Alegre, as escolas públicas dos bairros de classe média quase não são utilizadas pelos moradores.
Por isso, nunca teremos educação de qualidade.
Que caminhos poderiam ser sugeridos?
Os bens públicos dependem das elites, da educação à segurança. Veja Porto Alegre. As elites desta cidade talvez não sejam mais do que 130 pessoas, incluindo banqueiros, industriais, intelectuais. Elite é uma pessoa cujas decisões modificam o modo de pensar, de sentir e de atuar de grandes setores. Se as elites destes países sentarem à mesa e disserem “bem, vamos agora fazer um sistema educativo único para todos”, poderiam mudar isso em uma reunião. O que aconteceria se amanhã todos os líderes de Porto Alegre colocassem seus filhos em escolas públicas? Todos estariam nessa mesma escola e o que iríamos fazer? Não é uma decisão do ministro, é uma decisão de mobilização política. Se não fizermos isso, os resultados da educação na América Latina não mudarão.
Queremos essa distinção?
Vou contar uma história: numa companhia com 10 mil empregados, 67% eram mulheres. Houve um movimento para ter lá uma creche. Foram organizados os espaços infantis com a melhor infraestrutura, os melhores materiais e educadores. Abriram as inscrições. Em uma semana, houve três inscritos. Passaram-se três semanas e houve 10 inscritos. Sabe por quê? A presidente não mandou seus filhos porque não queria que se juntassem com a filha da senhora que varre o piso. A senhora que varre o piso não quis matricular a filha porque não tinha para ela sapatos e roupas suficientemente elegantes para que a filha da presidente não a desprezasse.
O senhor está dizendo que as mazelas da educação não são culpa exclusiva dos governos?
Alguns colocam a culpa nos professores, outros, no governo ou na falta de dinheiro. Não é isso. A questão é que não queremos um sistema educativo único, de todos.
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bruna.porciuncula@zerohora.com.br
Reportagem por BRUNA PORCIÚNCULAO colombiano não usou meias palavras para reforçar a crença de que educação de qualidade depende de uma mobilização da sociedade e que as mazelas no setor não devem ser creditadas aos conhecidos problemas de infraestrutura nas escolas e salários defasados dos professores. Ele aposta que, se os países se empenhassem em um sistema único de educação, sem a distinção de qualidade entre escolas públicas e privadas, seria possível alcançar a excelência no ensino.
Decano acadêmico da Faculdade de Educação da Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá, Bernardo Toro conversou com Zero Hora sobre os desafios da educação no Brasil e na América Latina.
Como o senhor avalia, de modo geral, a educação brasileira e a forma como é conduzida?
Creio que o Brasil e todos os países da América Latina têm os mesmos problemas na educação. Nenhum tem uma solução importante. A diferença básica da educação brasileira talvez esteja no Ensino Superior (em que ocorreram medidas para ampliar a inclusão, como as cotas), e ainda assim há um problema: o vestibular é uma seleção muito difícil, que geralmente favorece aqueles que vêm dos setores mais altos e favorece menos os que vêm de colégios estaduais. Nos demais problemas, como rendimento, retenção, níveis de leitura e escrita, os estudantes brasileiros estão nas mesmas condições do que os colombianos, mexicanos, em uma comparação entre países grandes. O que está um pouquinho melhor é o Chile e em alguns aspectos, mas, no resto, não há diferenças importantes. Em alguns conhecimentos, em alguns níveis, a ciência do Brasil é melhor do que a mexicana, mas o México é melhor do que o Brasil em outros pontos, e a Colômbia é melhor em certos aspectos do que outros países. Desde os anos 2000, há 15 anos, temos o Laboratório Latino-Americano de Evolução da Qualidade Educativa (LLECE, na sigla em espanhol). A cada 10 anos, faz-se a medição dos níveis de educação nos países para que possamos compará-los. Antes disso, não podíamos fazer essa comparação porque as variáveis não eram comparáveis. Entre 1998 e 2006, houve o trabalho de homologar os currículos e se fez uma medição para todas as crianças da América Latina de 14 países. Aí, notou-se que o único país que tem dados distintos de todos os outros da América Latina é Cuba. As crianças de menor desempenho em Cuba têm rendimento igual aos melhores alunos do resto dos países, porque as crianças de Cuba têm resultados comparáveis aos alunos de países desenvolvidos.
Diante de tantas semelhanças, os governos discutem soluções em conjunto e de fato há ações concretas para reverter isso?
Supõe-se que isso seja feito na reunião de ministros da educação. Ocorre que, em toda a América Latina, exceto em Cuba, são aceitos dois sistemas educativos, com qualidades distintas. A maioria das pessoas que tomam decisões no Brasil estudou em colégios privados. As pessoas que têm mais recursos colocam seus filhos em privados, e os outros, no público. Um país é sério na educação quando mantém um sistema educativo para ricos e pobres de igual qualidade. O único país que tem o mesmo sistema educativo para todos é Cuba. Os outros têm esses dois sistemas. Nenhum deles terá uma educação de qualidade com dois sistemas, um de qualidade A, outro de B. Esse é um problema que ninguém quer enfrentar, porque as elites não querem que seus filhos se juntem aos pobres. Um exemplo: o filho do presidente da Volvo em Estocolmo (Suécia) estuda na mesma escola do filho do senhor que vive de vender pescado. Esses alunos têm a mesma oportunidade porque o sistema é o mesmo para todos. Nós, não. A saúde não é igual para todos, o transporte não é igual para todos. Na educação, também é assim. Um país que aceita esse tipo de coisa nunca vai conhecer a excelência. Por exemplo, quando seu filho chega à escola, ele sabe entre 3 mil e 4 mil palavras distintas. Uma criança de sete anos de uma área rural sabe entre 300 e 400 palavras distintas. Se a escola não usar métodos provados para resolver este gap, essa diferença será projetada no tempo, e cada vez a separação entre as possibilidades de cada uma dessas crianças será maior. Se a escola é de uma só qualidade, esse problema não importaria, porque, rapidamente, o filho do vendedor de doces na rua estaria conversando com o filho do dono da companhia e essa convivência iria equilibrar a linguagem, no recreio, nas brigas, na sala. Os dois seriam amigos. Mas temos uma escola fragmentada, cada uma com uma qualidade.
Já separamos as crianças na escola automaticamente.
Sim. A educação é o maior fator de articulação social, política e emocional de um país e, na América Latina, está sendo exatamente o contrário. E ainda queremos países unidos... Não há como.
Nesse contexto, há algum esforço de governos para transformar essa realidade em algum desses países?
Bem, curiosamente Bogotá é a cidade onde mais pessoas começaram a colocar seus filhos em escolas públicas. Há um esforço enorme. A infraestrutura das escolas públicas de Bogotá é de longe superior à infraestrutura dos melhores colégios privados da cidade. São infraestruturas extraordinárias, têm piscina, são muito bonitos. Se, neste momento, aqui em Porto Alegre, fizessem um grande esforço para melhorar a qualidade dos colégios públicos, com a crise econômica, para economizar, muitas famílias começariam a colocar filhos nessas escolas. Mas é preciso combinar as duas coisas porque não é um problema de política, mas de conjuntura. Também temos de levar as escolas para perto da casa dos estudantes. Na América Latina, tiramos a escola das comunidades. É um gravíssimo erro.
Em que aspectos?
Uma criança entra às 7h (na Colômbia é às 7h) e sai da escola lá pelas 14h, 15h. Um colégio grande tem cerca de 1,2 mil estudantes e cerca de 90 professores. Vamos simplificar: em torno de 1,2 mil crianças estão aos cuidados de cem adultos aproximadamente até as 14h. Depois desse horário, os estudantes querem ficar livres, sair. É este momento que o narcotráfico aproveita, que a máfia aproveita, que o trabalho escravo aproveita... Se as crianças fossem educadas dentro do seu bairro, não ficariam soltas, ficariam sob a observação, direta ou indiretamente, dos adultos desse bairro, estariam muito mais seguras. Mas é preciso educar a sociedade para que aprenda a cuidar do filho de todos, porque, na América Latina, somos muito bons para criar nossos filhos, mas não para cuidar das crianças. Nos preocupamos com nossos filhos, não com as crianças.
Temos uma preocupação individualista com a educação?
Não há consciência de que os nossos filhos são filhos da comunidade, da sociedade. Um indivíduo que poderia abusar de uma criança no Japão, nos Estados Unidos, não o faz porque os adultos estão atentos. Isso é uma das razões pelas quais as escolas não podem sair das comunidades. Venderam a ideia de que uma escola desvaloriza o bairro, os prédios vão valer menos porque os estudantes apanham as flores, usam drogas etc. Em Bogotá, cogita-se colocar um colégio em um bairro elegante, os primeiros a se opor são as famílias.
Em Porto Alegre, as escolas públicas dos bairros de classe média quase não são utilizadas pelos moradores.
Por isso, nunca teremos educação de qualidade.
Que caminhos poderiam ser sugeridos?
Os bens públicos dependem das elites, da educação à segurança. Veja Porto Alegre. As elites desta cidade talvez não sejam mais do que 130 pessoas, incluindo banqueiros, industriais, intelectuais. Elite é uma pessoa cujas decisões modificam o modo de pensar, de sentir e de atuar de grandes setores. Se as elites destes países sentarem à mesa e disserem “bem, vamos agora fazer um sistema educativo único para todos”, poderiam mudar isso em uma reunião. O que aconteceria se amanhã todos os líderes de Porto Alegre colocassem seus filhos em escolas públicas? Todos estariam nessa mesma escola e o que iríamos fazer? Não é uma decisão do ministro, é uma decisão de mobilização política. Se não fizermos isso, os resultados da educação na América Latina não mudarão.
Queremos essa distinção?
Vou contar uma história: numa companhia com 10 mil empregados, 67% eram mulheres. Houve um movimento para ter lá uma creche. Foram organizados os espaços infantis com a melhor infraestrutura, os melhores materiais e educadores. Abriram as inscrições. Em uma semana, houve três inscritos. Passaram-se três semanas e houve 10 inscritos. Sabe por quê? A presidente não mandou seus filhos porque não queria que se juntassem com a filha da senhora que varre o piso. A senhora que varre o piso não quis matricular a filha porque não tinha para ela sapatos e roupas suficientemente elegantes para que a filha da presidente não a desprezasse.
O senhor está dizendo que as mazelas da educação não são culpa exclusiva dos governos?
Alguns colocam a culpa nos professores, outros, no governo ou na falta de dinheiro. Não é isso. A questão é que não queremos um sistema educativo único, de todos.
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bruna.porciuncula@zerohora.com.br
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4912113.xml&template=3898.dwt&edition=27892§ion=3593
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