Alguém
alertava por estes dias quanto a indiferença é um perigo maior nas
sociedades ocidentais hoje. Na verdade, as mortes por centenas correm
todos os dias nas televisões sem sobressalto cívico evidente. Apenas a
morte à porta de casa ainda consegue mobilizar por momentos a dor. E, no
entanto, neste mundo que é o nosso, volta a ser necessário separar as
águas entre quem quer viver connosco e quem que se exclui do convívio
humano do século XXI.
Foi
há menos de trinta anos que na Europa os regimes onde o arbítrio era
lei se desmoronaram. Duraram quase cinquenta anos, e enquanto duraram,
mesmos para aqueles que acreditaram na verdade das palavras, a esperança
foi morrendo, levada pela espera de um paraíso que nunca chegou.
Transcrevo hoje dois poemas de Günter Kunert (1929)
poeta alemão que viveu adulto no que foi até 1989 a Alemanha de Leste
(RDA), a qual deixou em 1979 fixando-se perto de Hamburgo na RFA. São
poemas escritos num contexto de desilusão e perda de ideais, e disso dão
conta de forma exemplar.
A Pergunta
Esperar o quê
os mortos calam-se ou são silenciados
só nas bichas para lojas vazias
se verifica crescimento contínuo:
A agitação não traz
senão benção
fraternidade em papel de jornal
para embrulhar
Nenhuma hora regressa
e cada novo dia executa
o anterior com maior esforço:
Uma história curta e brutal
cheia de longas promessas
que já não conseguem abafar
as tuas perguntas
Tradução de Ana Tönnies
(DE)MISSÃO
Demitir-se da esperança
como uma carta sem endereço
impossível de entregar e
não dirigida a ninguém
Como um peso
Como aquele bloco de mármore
que sempre me fugia
até que eu percebi que não
fazia sentido o esforço
de o empurrar continuamente
para a minha boa consciência
Uma esperança incurável
por fim dolorosamente
insuportável
um corpo estranho enquistado
encrostado e endurecido
monstruosidade
que me não pertence e a que
não quero pertencer
A mais difícil missão é:
saber demitir-se
Aqueles que começam pela esperança
já aprenderam a sua
lição
Tradução de João Barrento
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in 90 Poemas de Günter Kunert, tradução colectiva, com seis desenhos de Mário Botas e um ensaio de João Barrento, edição apáginastantas, Lisboa, 1983.
Fonte: http://viciodapoesia.com/2015/11/17
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