No dia 7 de novembro de 1996, René Girard, o antropólogo e filósofo francês falecido no último dia 5 em Stanford (EUA), proferia na Universidade Estatal de Milão a sua conferência sobre "Violência e verdade nos Evangelhos e na mitologia", primeira contribuição da 9ª edição da "Cátedra dos não crentes", promovida pelo cardeal Carlo Maria Martini e dedicada naquele ano justamente ao tema "Fé e violências".
O texto da conferência, até agora inédito, aparece agora na coletânea Le Cattedre dei non credenti, recém-publicado com edição de Virginio Pontiggia, pela editora Bompiani (1.256 páginas).
Publicamos aqui o trecho inicial. Naquela noite, em Milão, Girard,
que na época tinha 72 anos, tentou pela primeira vez fazer uma densa
síntese do seu pensamento, centrada – como se sabe – na teoria do "bode
expiatório", a vítima inocente sobre a qual, por um mecanismo de
mimetismo social, se desencadeia a violência coletiva.
O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 06-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Muitos mitos se assemelham aos Evangelhos. Comecemos
com uma catástrofe qualquer, um "caos" mais ou menos original, uma
grande crise que, para além dos aspectos fantásticos, não seja talvez
muito diferente da crise religiosa, social, política de que tratam os
Evangelhos.
Nos mitos, essa crise muitas vezes desemboca na mais brutal violência
coletiva, no assassinato em massa, no linchamento. Muitas vezes, a
violência, mesmo sem ser efetivamente coletiva, é de inspiração
coletiva: é o caso, sabemo-lo, da crucificação, decretada apenas por Pilatos,
certamente, mas sob a pressão da multidão. Tudo acaba com um retorno
triunfal da vítima, muitas vezes comparável a uma ressurreição.
Observando essas semelhanças, os defensores do paganismo antigo já
negavam a singularidade do cristianismo. O debate se reacendeu no século
XIX, com a descoberta no mundo inteiro de cultos arcaicos,
fundamentados também eles em uma violência coletiva ou de inspiração
coletiva.
Com base nessas semelhanças, a etnologia tentou por muito tempo
demonstrar a natureza mítica do cristianismo. Fracassou, mas, no
entanto, conseguiu convencer grande parte da opinião, e hoje também
muitos cristãos estão persuadidos de que é insustentável reivindicar uma
singularidade absoluta ao cristianismo.
A visão mítica do cristianismo é reforçada por todos os sincretismos que, como a teoria de Jung, enfatizam a unidade simbólica do religioso.
Essa visão é falsa; e a sua falsidade pode ser demonstrada a partir dos Evangelhos. Neles, há uma concepção do desejo, da violência e da organização social que permite compreender aqueles que são os mitos e que permite recusar a sua assimilação ao cristianismo.
Quando Jesus nos ordena a segui-Lo e a imitá-Lo, Ele
não nos pede para adotar os Seus modos de fazer ou os Seus hábitos
pessoais, dos quais não sabemos nada; ao contrário, é o seu desejo mais
intenso que Ele nos pede para assumir. Esse desejo, no entanto, não Lhe
pertence propriamente, pois consiste em imitar o desejo de Deus, o Pai.
Uma vez satisfeitos os nossos apetites naturais, todos desejamos
intensamente, mas não sabemos exatamente o que, já que é ao invisível e
ao inacessível a que aspiramos. De acordo com São Paulo, nós não sabemos nem o que queremos pedir a Deus e "o Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis" (Rm 8, 26).
Para orientar o nosso desejo, procuramos por toda a parte modelos
capazes de nos guiar. Muitas vezes, acontece que o modelo escolhido vem
perturbar a nossa existência, sobretudo se não é muito diferente de nós.
Imitando o nosso vizinho, o nosso próximo, desejamos o que ele deseja
e, não querendo ou não podendo possuir ambos o objeto desse desejo,
lutamos por ele. Em vez de desencorajar os desejos que se opõem, esse
tipo de conflito os alimenta, porque reforça a imitação e a torna
recíproca.
Quanto mais os rivais se chocam com o obstáculo que se tornaram um ao
outro, mais estão obcecados e mais insistem no choque. Para designar o
obstáculo do desejo rival, os Evangelhos têm um termo específico:
"escândalo", em grego, skandalon.
Isso não significa tanto o obstáculo comum, com o qual nos chocamos
uma vez só, porque logo aprende a evitá-lo, mas sim o obstáculo contra o
qual se retorna continuamente. Quanto mais nos faz mal, mais nos parece
desejável; quanto mais nos rejeita, mais nos atrai.
A tradução antiga – pedra sobre a qual se tropeça – sugere a dimensão
repetitiva ou cumulativa dos escândalos, mal substituída pelas
traduções recentes, do tipo "ocasião de pecado". O escândalo é o que
acontece com o desejo humano quando o modelo que o inspira se transforma
em rival e em obstáculo, pelo próprio fato de que ele o imita: é o
modelo/obstáculo do desejo imitativo ou mimético.
Melhor do que toda teoria moderna, os textos evangélicos sobre o
escândalo explicam a violência humana e o seu extraordinário poder de
contágio e de penetração.
Embora o escândalo nos ameace continuamente, não devemos generalizar
na condenação do desejo. À sua natureza imitativa, mimética, não devemos
atribuir apenas o pior dos homens, mas também a sua parte melhor, o seu
impulso a Deus. Se nós imitarmos Cristo ou os Seus
discípulos, nenhuma rivalidade nos ameaça, porque o Filho e o Pai são
alheios a todo desejo, a toda vontade de açambarcamento egoísta.
Jesus, no entanto, não tem ilusões sobre o sucesso
das suas advertências sobre o escândalo. Prova disso é a famosa frase:
"É inevitável que ocorram escândalos" (Mt 18, 7). E, uma vez ocorridos,
os escândalos se reproduzem e se intensificam muito rapidamente.
Se não houvesse nada para interromper a sua ascensão, chegaríamos
diretamente à destruição de todas as comunidades. O que interrompe a
corrida ao abismo, paradoxalmente, são os próprios escândalos.
Reproduzindo-se e exasperando-se, eles acabam provocando a crise
decisiva, que os remove não para sempre, mas por um tempo mais ou menos
longo.
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Fonte:http://www.ihu.unisinos.br/noticias/548766-rene-girard-o-escandalo-da-violencia-texto-inedito
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