UMA QUESTÃO DE CLASSE
Lya Luft*
Há alguns anos,
um vento novo varreu o Brasil numa grande mudança para os menos favorecidos,
novos planos do governo provocando uma energia febril: a subida de milhões de
famílias das classes D e E para a classe C, isto é, a classe média, através de
programas sociais e outros benefícios. A
ordem do governo era comprar, a onda era “consumir”. Mais ou menos assim: “A
elite branca não quer que você tenha nada ( como se pobre fosse só negros e
mulatos, ou brancos todos ricos...), mas isso está mudando. Comprem carro.
Troquem a geladeira, comprem tevê plana, andem de avião, botem os filhos na
faculdade, comprem casa, mobília novinha, eletrodomésticos modernos, façam
seguro-saúde, porque vocês são classe C”. A correria e o entusiasmo foram
enormes. Pouquíssimos duvidaram, como não acreditar? Créditos quase a perder de
vista, juros baixos, podia haver coisa melhor?
Mas os bons
ventos de fartura sopraram pouco tempo. O crédito que possibilitou tudo isso
encolheu, ou se fechou. Subiram os juros e os impostos, e continuam a crescer.
As prestações, até noventa meses para um carrinho, ficaram impossíveis de
manter. O salario congelou, e o fantasma do desemprego se tornou uma
assustadora realidade que não para de crescer. Milhões de desempregados, grande
parte do povo inadimplente. Só na construção civil, esperam-se mais 500 000
empregos formais cancelados até o fim do ano. A informalidade explode.
Casinhas são
retomadas, crianças tiradas da escola melhor, milhares de alunos que entraram
numa universidade através do Fies são avisados: não há mais dinheiro. “E o
empréstimo que eu fiz, como vou pagar, e meu sonhado curso superior, quando vou
voltar?” Jovens mandados ao exterior com o tão alardeado e elogiado projeto
Ciência sem Fronteiras logo viram também esse dinheiro terminou – se é que
existiu. Muitíssimos não têm como pagar alojamento, alimentação, curso nem
pensar, e nada para a passagem de volta. “Não há mais dinheiro”, explicação
pura e simples para dramas dolorosos. Onde foi parar? Foi o real ou invenção
interesseira? Crescem as dívidas: na prática, o que fazer? Escolher as contas
indispensáveis e ficar devendo outras, aconselham as autoridades. Quais são
indispensáveis?
Não há dinheiro
em caixa para socorrer a saúde agonizante, a segurança falida, e o resto do
país que visivelmente apodrece. Para as estradas intransitáveis, que movem a
economia e poderiam deter o atraso em que mergulhamos, “não há dinheiro nem pra
tapara buracos”. Um hospital sem condições traz muitas mortes que seriam
evitadas; escolas e faculdades fechando porque não há dinheiro para retirar o
lixo dos corredores, deixam jovens sem estudo, às vezes sem ocupação nem
futuro. Nos shoppings, deprimentes tapumes substituem lojas grandes ou
pequenas: fechou, desistiu (mais desemprego). Todo um exército de empregadas
domésticas que passam a trabalhar no comércio, por exemplo, agora demitidas,
quer retornar à função anterior. Porém,
novo espectro: muitíssimas famílias desistem dessas funcionárias diante dos
problemas trazidos pela nova lei do empregado doméstico, que, como tantas leis
mal projetadas, tem o resultado inverso.
A nova onda, a das demissões, chega a funcionários de todos os setores e
níveis de qualquer empresa, dos mais simples aos executivos. Ninguém está seguro
de seu cargo. O medo dessa situação – que é resultado de inacreditável
incompetência, péssima administração, inverdade, febre de poder, e omissão com
relação ao povo enganado – deixa todos acuados. Também se desse da classe alta
para a média, e desta para a inferior. Se na onda de consumo mais de 3 milhões de
famílias subiram degraus D e E para o C, agora milhões fazem o caminho inverso.
Todos caem, nesse melancólica mudança, sem enxergar no horizonte figuras
confiáveis que nos liderem, sem plano sensato ou ação concreta que nos deem
esperança: as previsões são as piores possíveis. Com veem, nem tudo é questão
de classe.
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*Escritora
Fonte: Revista Veja impressa – 11 de novembro de 2015, pág.24.
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