Entrevista com José Bernardo Toro
Monica Weinberg
Um
dos grandes pensadores da América Latina diz que o Estado não é o
salvador da pátria e que, quando a população se organiza, o país se
torna mais livre, desenvolvido e inovador
JOSÉ BERNARDO TORO Filósofo e educador social colombiano |
Formado
em filosofia, física e matemática, o colombiano Bernardo Toro, 70 anos,
notabilizou-se como um dos maiores pensadores da América Latina em duas
áreas em que a região é altamente deficiente: educação e mobilização popular.
Na
educação, foi dos primeiros a enunciar os princípios fundamentais, como
o de que é na base, nos anos iniciais do ensino, que devem atuar os
melhores professores. Na mobilização popular, imprimiu uma visão
moderna, científica e pragmática a uma atividade frequentemente
manipulada para fins menos nobres.
«A
população da América Latina sempre põe a culpa no Estado e espera que
ele resolva tudo, em vez de se organizar para mudar o que está errado», avalia.
Ex-consultor
do Banco Mundial e assessor do comitê estratégico da função suíça
Avina, Toro estará nesta semana no Brasil – onde já atuou na reforma da
educação em Minas Gerais – para conhecer a ONG gaúcha Parceiros Voluntários, inspirada justamente nas suas ideias de participação social.
Eis abaixo a entrevista que foi concedida em seu escritório em Bogotá antes da viagem:
Por que tantas manifestações de rua, como as que eclodiram no Brasil em 2013, não dão em nada?
Bernardo Toro:
A história mostra que as melhores mobilizações são silenciosas,
constantes no tempo e não produzem heróis. Elas são fruto de sociedades
verdadeiramente organizadas, que se norteiam não por um pleito
instantâneo, vago, mas por uma ideia maior que domina o imaginário de
grupos ou até de uma população inteira. E têm metas claras. Nos pós-II
Guerra, por exemplo, o povo japonês se moveu em direção a um objetivo:
conquistar por meio do mercado quem o havia derrotado pelas armas. Aí
iniciativas afluíram das mais diferentes pessoas e áreas, públicas e
privadas, em prol de um plano que consumiu décadas e deu certo. Nada a
ver com o assembleísmo inócuo nem com o heroísmo de momento.
É isso que se percebe nos países da América Latina onde o senhor atua?
Bernardo Toro:
Ocorre, sim. A ação do militante reforça um comportamento típico de
sociedades caudilhistas. Ele está sempre se perguntando: «Quem virá aqui
acabar com essa situação que tanto me incomoda?». Não toma a
responsabilidade para si nem se articula com eficácia para mudar a ordem
das coisas. Grita mais do que age e espera as soluções do Estado, que
vê como o dono da ordem e um ente superprotetor. Esse é o terreno
perfeito para que se disseminem o populismo autoritário e o clientelismo institucional, duas marcas indissociáveis dos países da América Latina.
As raízes para essa visão de Estado são históricas?
Bernardo Toro: São.
Os países da América Latina receberam nos primórdios instituições já
prontas de seus colonizadores. Essas instituições continham em seu caldo
de cultura a forte ideia de que pairavam sobre as pessoas, dizendo-lhes
o que fazer, o certo e o errado, o que é digno de prêmio e o que merece
castigo. Em outras palavras, constituía-se desde o princípio nesses
países uma relação de dependência do Estado. Foi o contrário do que se
verificou nos Estados Unidos, por exemplo, um país que se ergueu e
prosperou sobre bases completamente diferentes.
Quais as diferenças mais relevantes?
Bernardo Toro:
No século XVII, desembarcou nos Estados Unidos uma leva de imigrantes
que fugia da perseguição religiosa na Europa, essas pessoas construíram
suas instituições públicas do zero, à própria imagem, como um espelho
das demandas da sociedade que se formava. Eles se organizaram para isso.
Foram criadores e responsáveis por aquela engrenagem que surgia.
Quais são os problemas enfrentados por países onde a sociedade é pouco organizada e muito dependente do Estado?
Bernardo Toro: Eles
são menos desenvolvidos, menos livres e democráticos, menos educados e
inovadores. Acreditam que seu destino depende da sorte, não de esforço e
treino. A culpa do fracasso é sempre dos outros. São também países que
tendem a ser mais corruptos, já que dispõem de menos mecanismos de
vigilância e cobrança sobre a classe política e o próprio Estado. Em
suma, a desorganização civil de uma sociedade é seu grande indicador de pobreza.
Seus
estudos mostram que a falta de mobilização em um país é determinante
para explicar a ineficiência dos serviços públicos. Como?
Bernardo Toro:
Todos os bens estatais deveriam ser por definição públicos, mas nos
países da América Latina eles são engolidos por corporações e grupos
movidos por intresses específicos. Há uma classe de funcionários
públicos que se alimenta da máquina como se ela fosse sua. Em países
desenvolvidos e formados não só por organizações sindicais e políticas,
mas também por associações de bairros, de profissionais e tantas outras,
a exigência de qualidade é permanente. Exigência, aliás, é a palavra-chave quando a sociedade tem realmente força.
Muitas iniciativas de mobilização social, inclusive no Brasil, foram inspiradas em seu trabalho. O que elas têm em comum?
Bernardo Toro: Ressalto
primeiro que, ao falar de mobilização da sociedade, não estou tratando
de algo romanceado nem ideológico, mas de uma ciência que faz a
engrenagem de um país funcionar melhor, tornando-o mais produtivo e
próspero. Cheguei a algumas conclusões importantes nessas décadas:
- A primeira é que é preciso atrair as pessoas com ideias poderosas, sim, só que não adianta restringir-se apenas ao terreno do imaginário. Isso é demagógico e gera angústia.
- Por outro lado, ações isoladas conduzem ao ativismo passageiro e a movimentos sem rumo nem resultado.
- Finalmente, é preciso ter no horizonte metas bem definidas e dar visibilidade ao que foi alcançado. Quando o objetivo de um pleito é ambíguo, não leva a nada.
Os líderes são necessários?
Bernardo Toro: Ao
longo da história, grandes líderes, como Martin Luther King, Gandhi, De
Gaulle, foram os responsáveis por decifrar e embalar em discursos e
slogans ideias que estavam no ar. Dito isso, a experiência mostra que, quanto
mais organizada e institucionalizada é uma sociedade, menos
protagonistas ela requer para se mobilizar e andar para a frente.
Qual é sua opinião sobre programas em que o Estado distribui benefícios à população, como o Bolsa Família?
Bernardo Toro: Se
não há organização entre as famílias beneficiadas e exigências do
Estado em troca do dinheiro, a situação não muda. Agora, se o Estado diz
aos pais que, em contrapartida pela verba recebida, seus filhos devem
passar de ano e ir com regularidade a um posto de saúde, começa a se
vislumbrar um horizonte. Uma associação de mães ou de bairros também
pode dar vida nova a esse tipo de iniciativa, levando adiante rodas de
estudo, de leitura e trocando saberes e experiências. Às vezes, é
preciso ter fôlego e coragem para mudar o arcabouço institucional de um
programa de modo a obter mais resultados.
O senhor poderia dar algum exemplo concreto de sua própria experiência?
Bernardo Toro: Há
pouco mais de uma década me chamaram para ajudar na educação em Minas
Gerais. Todo mundo sabia que o acesso à escola era um direito
constitucional, mas, mesmo assim, os pais ali se sentiam pedindo um
favor ao tentar vaga para os filhos. Os diretores, por sua vez, agiam
como se estivessem fazendo esse favor. A criação da figura do juiz
escolar fez toda a diferença para garantir lugar às crianças. Percebo no
Brasil o mesmo tipo de problema que ocorre em outros países da América
Latina: por mais que se diga e se repita, a educação ainda não é
vista verdadeiramente como uma questão estratégica pra o desenvolvimento.
Quais são as evidências disso?
Bernardo Toro: Primeiro,
olhe nosso atraso histórico. A maioria dois países da América Latina,
incluindo o Brasil, só começou a montar seu sistema escolar quando em
muitas outras nações no mundo já existiam universidades bem estruturadas
e de qualidade. Mesmo assim, era um privilégio para poucos. Apenas nos
anos 1970 e 1980 começou na América Latina a discussão sobre a educação
ser um direito de todos. Mas claramente ainda nos falta a percepção
moderna de que esse é um fator estratégico para o avanço. Se buscamos uma sociedade ancorada no conhecimento, tudo, absolutamente tudo, deve se voltar para a escola.
Falta dinheiro?
Bernardo Toro: Antes de qualquer coisa, falta um plano para ontem.
Neste
momento, o Brasil está empenhado em pôr de pé o primeiro currículo
nacional, que vai estabelecer metas de aprendizado nas salas de aula do
país. É um bom passo?
Bernardo Toro: Pode
até ser, mas cabe uma pergunta fundamental: como saber o currículo que
deve ser implantado se não há sequer um projeto para o país? Isso
precisa ser levado em consideração na hora de ponderar quais
conhecimentos são de fato relevantes e quais podem ser descartados. Foi
assim na Finlândia, um caso exemplar de ensino de qualidade e com um
norte bem claro.
O que depreender do exemplo finlandês?
Bernardo Toro: Sem
grandes recursos naturais e espremidos entre potências como Rússia e
Suécia, os finlandeses entenderam que a boa educação poderia levar o
país a se tornar inovador, a competir globalmente, e apostaram todas as
fichas nisso, desde os primeiros anos escolares, talhando mentes
voltadas pra a criatividade e a resolução de problemas. Já o Brasil e seus vizinhos continuam a enfrentar a competição global com base em commodities [produtos de origem agrícola, pastoril e mineral], sem uma estratégia de médio e longo prazos rumo a uma sociedade fincada sobre o conhecimento.
Nas
últimas décadas, acumulou-se muito saber sobre o que funciona de
verdade em uma escola, mas ainda se faz pouco uso das conclusões. Por
quê?
Bernardo Toro: Reforço
aqui aquela ideia de que, quando a sociedade não está suficientemente
organizada, os bens públicos são usurpados por grupos guiados pelos
próprios interesses. Ocorre com a educação. É evidente que ela não
pertence a professores ou sindicatos, mas frequentemente as
reivindicações e causas desses profissionais se sobrepõem ao interesse
geral. Assim, boas práticas de ensino chanceladas por pesquisas acabam sendo ofuscadas e postas de lado.
Quais são os MITOS SOBRE A EDUCAÇÃO que seus estudos derrubam?
Bernardo Toro: Um deles é que:
- a raiz da ineficiência das aulas está na indisciplina dos alunos. Na verdade, é justo o contrário: a lição mal dada é que fomenta a indisciplina.
- Um segundo ponto tem a ver com a escolha dos professores que vão lecionar em cada ano. Em geral, os melhores assumem as classes mais avançadas, quando deveriam ficar, isso sim, com as primeiras séries.
Qual é a lógica?
Bernardo Toro: Os
nós que se acumulam nos primeiros anos de escola refreiam o
desenvolvimento do estudante nas etapas que se seguem e, com o passar do
tempo, se tornam cada vez mais difíceis de ser desatados. É necessária a
perícia de um bom professor para evitar que as lacunas se aprofundem
logo de saída. E que ele ponha os alunos para ler: está provado que quem lê mais tem maiores aspirações na vida.
Que mudanças de mentalidade poderiam trazer melhorias consistentes à educação?
Bernardo Toro: Falta
aos professores entender de uma vez por todas que eles não são donos de
nada e que devem fazer como já se faz em outros meios: praticar o
trabalho cooperativo nas escolas, trocando conhecimento e experiências
com os colegas para avançar mais rápido. Se quisermos uma sociedade
democrática e inovadora para valer, precisamos aprender a trabalhar em
time, a nos sentir responsáveis pelos resultados que obtemos e deixar de
culpar o sistema, o Estado e os outros por nossos fracassos. Esse é um bom começo para criar mentes e países vencedores.
OBSERVAÇÃO
O filósofo Bernardo Toro
elaborou uma lista onde identifica as sete competências que considera
necessário desenvolver nas crianças e jovens para que eles tenham uma
participação mais produtiva no século XXI. São os Códigos da Modernidade:
1) Domínio da leitura e da escrita;
2) Capacidade de fazer cálculos e resolver problemas;
3) Capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações;
4) Capacidade de compreender e atuar em seu entorno social;
5) Receber criticamente os meios de comunicação;
6) Capacidade de localizar, acessar e usar melhor a informação acumulada;
7) Capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo.
Para um comentário acerca de cada um desses códigos, clique aqui.
Fonte: Revista VEJA – Edição 2452 – Ano 48 – Nº 46 – 18 de novembro de 2015 – Páginas 13, 16-17. Edição impressa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário