Ando piegas. Tenho pensado na vida. A
pieguice é o estado que acomete os homens quando eles se sentem
ridiculamente verdadeiros e pensam no sentido da existência justamente
quando esse tal sentido ganha a solidez de um cubo de gelo. Na próxima
vez, tratarei de viver sem medo da vida, que a morte é somente uma
estranha na sala de visitas que se apresenta sem ser anunciada nem tem a
educação de telefonar antes ou de mandar um torpedo, salvo se o torpedo
for apenas a sua presença tão indesejada quanto um vírus de computador.
Na próxima vez, prometo que sorrirei para a vizinha que sempre me
brinda com a sua simpatia quando nos cruzamos na esquina cinza ou
ensolarada, ela a caminho do ar do manhã, eu a passos largo para o que
suponho serem as minhas tantas e inadiáveis responsabilidades.
Na próxima vez, pararei para sentir o cheiro de uma goiaba madura na
placidez do cair da tarde, esse aroma que me fascina desde a infância e
para o qual ainda não tive um segundo de atenção por estar sempre
correndo para alcançar o horizonte, o que hoje se chama de atingir metas
e cumprir objetivos. Na próxima vez, pedirei bolas de todos os sorvetes
que adoro: maracujá, doce de leite, limão, uva, frutas exóticas, tão
exóticas quanto a minha vontade de ser o mesmo mudando todo o tempo. Na
próxima vez, ajudarei o cego a subir no ônibus. É incrível como vamos
perdendo a percepção das coisas realmente importantes: subir em árvore,
rir de si mesmo, brincar de Alice no país das maravilhas, vestir
fantasia e se esbaldar até o amanhecer. Vivemos uma terceirização da
brincadeira. Não jogamos, vemos jogar. Na pulamos carnaval, assistimos
ao desfile. Viramos uma sociedade de espectadores.
Delegamos a outros o gozo da existência.
Na próxima vez, ouvirei Caymmi, Beethoven, Fagner, Bob Dylan, José
Mendes, Mozart, Chico Buarque, Elis, Belchior e Paulinho da Viola numa
playlist barroca e deliciosamente livre sem me preocupar com os
modernos, com os fashion e com os fiscais do gosto. Na próxima vez,
jogarei futebol na chuva, usarei paletó de linho branco, chapéu panamá e
sapatos sem meias ou meias de cores diferentes. Na próxima vez,
expulsarei o hipercoerente que habita em mim e me cobra convicções que
me parecem sinônimos de teimosia e acertos que me impressionam como
grandes erros. Na próxima vez, direi o que penso a quem me diz o que não
pensa, mas calarei se for para não magoar quem pensa o que diz ou diz
sem pensar o que sente sem maldade nem inveja.
Na próxima vez, ficarei com o Belchior em casa por um mês, não
brigarei por futebol, mesmo que minhas brigas sejam pura encenação para
quebrar a rotina, não calarei diante das injustiças oficiais, mesmo que
isso me custe a zona de conforto, e abraçarei com mais força os amigos
que não vejo desde muito tempo. Na próxima vez, não deixarei para a
próxima vez o que deve ser feito na eternidade efêmera do segundo que
nunca mais se repetirá. Na próxima vez, farei o gol, correrei para o
abraço, farei até coraçãozinho e amarei como nunca quem me ama como
sempre. Na próxima vez, será a primeira vez.
--------------
* Sociólogo. Prof. Univer. Escritor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/18/11/2015
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário