O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos - Arquivo/Custodio Coimbra/28-1-2005
No Rio para lançamento e palestra, sociólogo português enfrenta pessimismo com crise global
RIO - Tarefas impossíveis aparecem já no título
do novo livro de Boaventura de Sousa Santos, “139 epigramas para
sentimentalizar pedras” (Confraria do Vento). Comover os minerais,
porém, pode parecer até pouco diante do desafio que o sociólogo
português enfrenta em alguns poemas da obra: refletir, em tempos de
crise global, sobre novas formas de utopia. Talvez por isso, o décimo
livro de poesia de Boaventura, um dos criadores do Fórum Social
Mundial (com seu lema “Outro mundo é possível”), é descrito
por ele mesmo como “intimista” e “pessimista”. Usando a forma
medieval do epigrama, com versos curtos de moral surpreendente, ele
define a Europa ora como um grande sistema de vigilância (“decidi
instalar a europa em toda a casa/ uma questão de segurança/ e
também de conforto”) ora como “uma cozinha absurda/ de
ingredientes tóxicos”. Boaventura conversou com o GLOBO por
telefone a caminho do Rio, onde lança o livro dia 5, às 18h30m, no
Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), no Centro. Antes disso,
dia 3, às 19h, faz a conferência “O ato criador na arte, na
ciência e na política”, encerrando o ciclo Ato Criador, na Escola
de Circo Crescer e Viver, na Praça Onze.
‘Nunca foi tão difícil pensar numa
alternativa. Eu me considero um otimista trágico. Só que nos
últimos tempos tem sido mais fácil ser trágico.’
Este é seu décimo livro de poemas. Qual
é o lugar da poesia no seu trabalho? Ela permite expressar algo que
o ensaio não permite?
A poesia acompanhou-me ao longo de toda a vida.
Publiquei meu primeiro livro de poemas quando estava no último ano
da faculdade. E sempre entendi as Ciências Sociais como um trabalho
criativo. Na modernidade, criamos uma distinção entre ciência e
arte. A ciência foi considerada o terreno da racionalidade
instrumental: ela ensina-nos a fazer coisas, não pergunta sobre o
sentido da vida, não tem como objetivo a beleza. Já a arte foi
deixada para o terreno do simbólico, busca o belo e não o útil.
Chegamos a tal ponto que Adorno dizia que um cientista que escreve
bem é suspeito (risos). Eu desde sempre me insurgi contra isso.
Tentei manter uma tensão entre a criação científica e a
artística.
O que diferencia este livro de “epigramas”
dos seus livros de poemas anteriores?
Meus livros de poesia sempre buscam a
transgressão. Em “Escrita INKZ” (Aeroplano) havia um cão poeta,
que assumia a palavra em parte do livro. “Rap global” (Aeroplano)
surgiu de um impulso sociológico que não consegui responder: por
que os jovens não participam da politica, mas são os protagonistas
do melhor discurso de protesto nas nossas sociedades, o hip hop?
Então misturei referencias filosóficas e sociológicas com a
cultura urbana e o rap. Já o epigrama é um poema medieval curto,
com uma moralidade surpreendente, revelada nos últimos versos.
Recuperar essa forma, que já quase não é mais usada, também é
uma transgressão. Mas os poemas deste livro são mais intimistas.
Sou um intelectual público, minhas aulas e palestras estão sempre
cheias, mas às vezes sinto uma grande solidão. Estes são poemas de
silêncio.
‘Estamos hoje em busca daquilo que Paulo Freire
chamava de 'utopia concreta'. Vejo isso em todo lado. A utopia hoje
para mim é o que está a ser feito.’
Apesar desse tom intimista, os poemas
também expressam preocupações políticas comuns no seu trabalho.
Um deles descreve a Europa como “uma cozinha absurda/ de
ingredientes tóxicos”. É um livro mais pessimista?
Sou um sociólogo comprometido com a transformação
social, um intelectual que tem vindo a público sempre defender uma
ideia de alternativa. Não podemos continuar com uma situação em
que 50% da população detém só 1% da riqueza mundial. Precisamos
de uma alternativa, mas nunca foi tão difícil pensar numa
alternativa. Eu me considero um otimista trágico. Não posso deixar
de ver a tragédia das dificuldades, mas não posso deixar de pensar
que há uma solução para a pobreza e a fome. Só que nos últimos
tempos tem sido mais fácil ser trágico. Por isso os poemas talvez
tenham um tom mais pessimista.
A crise econômica também está presente
no livro, como no poema em que um homem, ao chegar em casa, descobre
que ela foi transformada em um banco.
Às vezes, um poema cínico e pessimista transmite
a mensagem melhor do que um ensaio cientifico (risos). O mundo está
a se transformar em um lugar sem alternativa, onde os cidadãos se
vão convencendo de que estão num caminho suicida. Não há ideia
crível para nos tirar da situação em que estamos. Precisamos de
uma revolução epistemológica. Quer na Europa, quer no Brasil,
estamos num modelo de desenvolvimento dominado pelo capital
financeiro. Nesse estágio, como já não há compromisso com a
produção, nem com o trabalhador, o capitalismo torna-se
antissocial. Isso produz concentração da riqueza, desigualdade,
cortes em direitos sociais e também uma crise ecológica sem
precedentes. Este modelo tem que ser alterado, a menos que pensemos
que estamos no Titanic e já não há nada a fazer.
Você sempre trabalhou com a ideia de
utopia. Diante desse quadro que descreve, o que pode ser a utopia
hoje?
Estamos hoje com dificuldade em relação à
utopia. Ela não é mais uma metanarrativa, uma aspiração a um
sistema político que venha resolver os problemas de todos para
sempre. Estamos hoje em busca daquilo que Paulo Freire chamava de
“utopia concreta”. Vejo isso em todo lado. Na economia solidaria,
na agricultura comunitária, nos experimentos de democracia direta,
em grupos que buscam fugir à tirania do mercado, na Europa, na
América, na África. São utopias concretas que as pessoas estão a
construir. Procuro aprender com essas iniciativas, ver o que elas
podem trazer de novo em termos de organização econômica, direitos
humanos e democracia. A utopia hoje para mim é o que está a ser
feito.
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Reportagem por Guilherme Freitas
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/boaventura-de-sousa-santos-lanca-poemas-de-otimismo-tragico-1-17926559
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