sábado, 28 de novembro de 2015

Franz Kafka: “Tinok Shenishbá”,



Desde a aurora até o anoitecer, caminhei pelo quarto, de um lado para o outro. A janela estava aberta, era um dia quente. Ruídos subiam da rua estreita sem cessar. À força de tanto mirar as paredes, em minhas idas e vindas, eu já conhecia cada reentrância, cada detalhe do quarto. Estudei com o olhar todos os cantos, percorri até as últimas ramificações o desenho da almofada e seus sinais de velhice. Muitas vezes medi a mesa de centro com os dedos e mostrei a língua ao  retrato do defunto marido da dona da pensão. Antes do amanhecer, sentei-me no peitoral da janela. Então pela primeira vez, abarquei com uma só visada, e sem sair de meu lugar, o interior do quarto e o céu raso.

Finalmente, se não estava me enganando, a habitação começava a se mexer, depois que eu tentei fazê-la estremecer de várias maneiras. Começou pelas bordas do céu raso, coberto por uma delgada capa branca de gesso. Alguns pedacinhos de estuque se desprenderam e caíram no chão, como que por acaso, com um golpezinho bem definido. Eu estendia a mão e também nela caíam alguns pedaços. Joguei-os na rua, por cima da minha cabeça, sem me virar, tamanha era a minha tensão. As rachaduras no teto ainda não mostravam maior relação entre si, embora, de alguma forma, isso já pudesse ser imaginado. No entanto, deixei de lado esses jogos mentais quando vi que um violeta azulado começava a mesclar-se com o branco do céu raso. Nascia do centro mesmo do teto, ainda branco –  mais que isso –, era de um branco radiante, e estava aplicado quase que diretamente sobre a pobre lâmpada elétrica. Todo o tempo, às secudidas, seu calor se esparzia – ou era uma luz? – sobre as bordas agora escurecidas. Não me assustaria se dali se desprendesse e saltasse argamassa, como que sob a pressão de uma ferramenta aplicada com toda precisão. 

            As violetas das bordas logo começaram a se misturar matizes amarelos, de um amarelo dourado, mas o céu raso não se coloria, as cores apenas o tornavam, de certo modo, mais transparentes. Sobre ele pareciam flutuar coisas que queriam irromper, já quase se via o contorno da pressão – um braço estendido, uma espada prateada que oscilava. Era para mim, não havia dúvida. Preparava-se uma aparição  que me libertaria. Saltei sobre a mesa para ajudar a apressar esse evento. Arranquei a lâmpada de seu suporte de bronze e joguei tudo no chão. Em seguida, empurrei a mesa do meio do quarto até a parede. Isso que queria aparecer podia descer tranquilamente sobre a almofada, e anunciar-me o que tinha para me anunciar. Mal eu tinha empurrado a mesa e o céu raso se rompeu. Ainda muito no alto, porque eu havia calculado mal, descendia, lentamente, e na penumbra, um anjo com vestimentas violáceas e azuladas, envoltas em cordões de ouro; um anjo suspenso sob umas asas grandes e brancas, reluzentes como seda, com uma espada estendida na horizontal. “Um anjo, então”, pensei. “Esteve voando em  minha direção durante todo o dia, e eu, com minha pouca fé, não percebi. Agora, falará comigo.” Abaixei a vista, mas quando voltei a levantá-la, o anjo continuava ali, pendia do teto, que tinha voltado a fechar-se, mas não era um anjo vivente, era uma carranca de proa, de madeira, e pintada, como essas que pendem das tavernas dos marinheiros, nada mais que isso. A cruz da espada servia de suporte, e como depósito para recolher cera derretida. Como eu tinha arrancado a lâmpada elétrica, e não  queria ficar na escuridão, busquei uma vela, subi numa cadeira, coloquei a vela na crua da espada, acendi-a, e fiquei sentado à fraca luz do anjo até muito tarde da noite.

*Escritor Charles Kiefer traduz um conto de Franz Kafka ( 1883-1924) para o Caderno de Sabado.

Releitura de um tradutor.

            Charles Kiefer.

Ao ler os “Diários”, de Franz Kafka, deparei-me com um procedimento construtivo muito interessante: neles, nas suas páginas íntimas, o autor como que “treinava” frases, fragmentos, parágrafos, que depois acabavam fazendo parte de suas obras ficcionais. No entanto, um desses “treinamentos” me pareceu completo, inteiro, com as “três unidades” perfeitamente ajustadas. Pelo fantástico da cena, embora o próprio Kafka fosse estudante de Kabbalah, ficava claro que aquilo era um conto, com começo, meio e fim. A cada releitura que eu fazia, mais me convencia de que estava diante de mais uma obra-prima kafkiana. Nos últimos anos, como Kafka, tornei-me, também, um mekubal, e só por isso sou capaz de entender do que ele estava tratando nesse texto que “escondeu” em seus diários, e ao qual eu dei o título de Tinok Shenishbá, que significa “aprendiz” ou estudante desastrado, atrapalhado.
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Fonte: Jornal Correio do Povo impresso, Caderno de Sábado, 28/11/2015, pág. 
Foto: Tela 'Franz Kafka', de autoria do artista plástico Antônio Soriano. 

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