Desde a aurora até o anoitecer, caminhei pelo
quarto, de um lado para o outro. A janela estava aberta, era um dia quente.
Ruídos subiam da rua estreita sem cessar. À força de tanto mirar as paredes, em
minhas idas e vindas, eu já conhecia cada reentrância, cada detalhe do quarto.
Estudei com o olhar todos os cantos, percorri até as últimas ramificações o
desenho da almofada e seus sinais de velhice. Muitas vezes medi a mesa de
centro com os dedos e mostrei a língua ao
retrato do defunto marido da dona da pensão. Antes do amanhecer,
sentei-me no peitoral da janela. Então pela primeira vez, abarquei com uma só
visada, e sem sair de meu lugar, o interior do quarto e o céu raso.
Finalmente, se não estava me enganando, a habitação
começava a se mexer, depois que eu tentei fazê-la estremecer de várias
maneiras. Começou pelas bordas do céu raso, coberto por uma delgada capa branca
de gesso. Alguns pedacinhos de estuque se desprenderam e caíram no chão, como
que por acaso, com um golpezinho bem definido. Eu estendia a mão e também nela
caíam alguns pedaços. Joguei-os na rua, por cima da minha cabeça, sem me virar,
tamanha era a minha tensão. As rachaduras no teto ainda não mostravam maior
relação entre si, embora, de alguma forma, isso já pudesse ser imaginado. No
entanto, deixei de lado esses jogos mentais quando vi que um violeta azulado
começava a mesclar-se com o branco do céu raso. Nascia do centro mesmo do teto,
ainda branco – mais que isso –, era de
um branco radiante, e estava aplicado quase que diretamente sobre a pobre
lâmpada elétrica. Todo o tempo, às secudidas, seu calor se esparzia – ou era
uma luz? – sobre as bordas agora escurecidas. Não me assustaria se dali se
desprendesse e saltasse argamassa, como que sob a pressão de uma ferramenta
aplicada com toda precisão.
As
violetas das bordas logo começaram a se misturar matizes amarelos, de um
amarelo dourado, mas o céu raso não se coloria, as cores apenas o tornavam, de
certo modo, mais transparentes. Sobre ele pareciam flutuar coisas que queriam
irromper, já quase se via o contorno da pressão – um braço estendido, uma
espada prateada que oscilava. Era para mim, não havia dúvida. Preparava-se uma
aparição que me libertaria. Saltei sobre
a mesa para ajudar a apressar esse evento. Arranquei a lâmpada de seu suporte
de bronze e joguei tudo no chão. Em seguida, empurrei a mesa do meio do quarto
até a parede. Isso que queria aparecer podia descer tranquilamente sobre a
almofada, e anunciar-me o que tinha para me anunciar. Mal eu tinha empurrado a
mesa e o céu raso se rompeu. Ainda muito no alto, porque eu havia calculado
mal, descendia, lentamente, e na penumbra, um anjo com vestimentas violáceas e
azuladas, envoltas em cordões de ouro; um anjo suspenso sob umas asas grandes e
brancas, reluzentes como seda, com uma espada estendida na horizontal. “Um
anjo, então”, pensei. “Esteve voando em
minha direção durante todo o dia, e eu, com minha pouca fé, não percebi.
Agora, falará comigo.” Abaixei a vista, mas quando voltei a levantá-la, o anjo
continuava ali, pendia do teto, que tinha voltado a fechar-se, mas não era um
anjo vivente, era uma carranca de proa, de madeira, e pintada, como essas que
pendem das tavernas dos marinheiros, nada mais que isso. A cruz da espada
servia de suporte, e como depósito para recolher cera derretida. Como eu tinha
arrancado a lâmpada elétrica, e não
queria ficar na escuridão, busquei uma vela, subi numa cadeira, coloquei
a vela na crua da espada, acendi-a, e fiquei sentado à fraca luz do anjo até
muito tarde da noite.
*Escritor Charles Kiefer traduz um conto de Franz
Kafka ( 1883-1924) para o Caderno de Sabado.
Releitura de um tradutor.
Charles
Kiefer.
Ao ler os “Diários”, de Franz Kafka, deparei-me com
um procedimento construtivo muito interessante: neles, nas suas páginas
íntimas, o autor como que “treinava” frases, fragmentos, parágrafos, que depois
acabavam fazendo parte de suas obras ficcionais. No entanto, um desses “treinamentos”
me pareceu completo, inteiro, com as “três unidades” perfeitamente ajustadas.
Pelo fantástico da cena, embora o próprio Kafka fosse estudante de Kabbalah,
ficava claro que aquilo era um conto, com começo, meio e fim. A cada releitura
que eu fazia, mais me convencia de que estava diante de mais uma obra-prima
kafkiana. Nos últimos anos, como Kafka, tornei-me, também, um mekubal, e só por
isso sou capaz de entender do que ele estava tratando nesse texto que “escondeu”
em seus diários, e ao qual eu dei o título de Tinok Shenishbá, que significa “aprendiz”
ou estudante desastrado, atrapalhado.
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Fonte: Jornal Correio do Povo impresso, Caderno de
Sábado, 28/11/2015, pág. Foto: Tela 'Franz Kafka', de autoria do artista plástico Antônio Soriano.
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