Márcio Tavares D'Amaral*
A Humanidade precisava dele. Mas ele, sobretudo ele, precisava da Humanidade. Abandonou-a
É
Nietzsche quem nos conta. Zarathustra passara 20 anos na montanha, na
companhia dos seus animais sagrados, a serpente e a águia. Meditara
sobre o sofrimento e suas causas. Um dia sentiu que seu trabalho estava
feito e seu tempo, chegado. Decidiu descer para as cidades dos homens.
Na encosta da montanha encontrou um velho. E pensou, no silêncio do seu coração: “Esse pobre velho certamente reza a Deus, e não sabe que Deus morreu. O homem, que criou Deus, igualmente o matou. Foi o momento culminante da história da Humanidade. Pobre velho”.
O velho viu o jovem que descia apressado. E pensou, no silêncio do seu coração: “Esse moço que vai com pressa crê que eu rezo para um Deus morto. Eu tenho coisas doces para lhe dizer. Mas ele tem pressa” — e se calou.
No vale, Zarathustra quis ensinar aos homens o salto acima deles mesmos, os demasiadamente humanos, os que carregam todos os pesos em suas corcovas de camelo. Quis lhes ensinar o além-homem. Pensava nas transfigurações do homem na direção da suprema liberdade. Primeiro o camelo, que carrega nas corcundas as obrigações do belo, do bom, do justo e do verdadeiro, criadas pelos filósofos, sacerdotes e moralistas para submeterem, julgarem e condenarem a Humanidade. Era chegada a hora de sacudirem os pesos e urrarem pela liberdade. Hora de o camelo devir leão. Um grande passo. Mas ainda brigado, negativo. Lutar com esses “valores superiores” é caminho e passagem. Não o fim da estrada. Nele estará a criança, que não tem passado, não vive de ressentimentos. Sua força é a inocência do devir. Todo o tempo é seu, sem sofrimento, para sempre. Devir-criança é a salvação do fraco demasiadamente humano. É a afirmação máxima da potência da vida.
A vida, pensava Zarathustra, desde Sócrates perdera a tensão trágica, a força de se sustentar entre a demasia embriagada de Dionísio, deus do vinho, e a disciplina luminosa de Apolo, o sol. Durante um par de séculos os gregos tinham suportado jubilosamente esse dilaceramento, superabundância de potência. Depois os medrosos da vida deixaram de aguentar tamanha força e eliminaram Dionísio, adotaram a luz apolínea como lei. Fizeram dela um absoluto e condenaram a Humanidade a carregar seu peso. Culpa de Sócrates. Era chegado o momento de vencer Sócrates e restaurar o reino da potência. Resgatá-la da humilhação de tanta subserviência desfibrante. Zarathustra olhava para os homens como se fossem os últimos, o último homem, o que deseja morrer. Assim pensava Zarathustra. Ia lhes ensinar a potência de viver além de bem e mal, acima dos valores vazios da humilhação da vida.
Tentou. De cidade em cidade foi e pregou. Ensinou o além-humano, o super-homem. Convidou os homens a recuperarem a inocência das crianças. Ensinou-lhes que só se tornariam grandes quando ousassem sua própria travessia para fora da servidão. Bradou contra os valores que são impostos à vida e a humilham até o ponto de ela se tornar uma vontade de nada. Rugiu pela vida. Como se fosse já o leão. Os homens, estarrecidos com aquela coisa extraordinária, não o receberam. Cuspiram-no. Atiraram-lhe pedras. Vaiaram seus discursos. Expulsaram-no. E Zarathustra viu que não estavam preparados. Abatido, voltou para a sua montanha e seu soberbo isolamento, acima da Humanidade que não o merecera. Na subida, encontrou de novo o velho que rezava. Esse estava a meio caminho entre o alto e o baixo. Zarathustra passou sem mesmo olhá-lo com piedade. Ia pesado. Ansiava pela sua águia orgulhosa, pela sabedoria da sua serpente.
Foi o erro de Zarathustra. A Humanidade precisava dele. Mas ele, sobretudo ele, precisava da Humanidade. Abandonou-a. Devia ter ficado. E aprendido. Não sabia que o mais alto vem do mais baixo, e a alegria não tem a si mesma como padrão. A alegria precisa do sofrimento. Zarathustra teve medo do sofrimento. A coragem que o trouxera para baixo foi se esterilizar na solidão do alto. Zarathustra não tinha esperança. Não estava preparado para a Humanidade, que caminha na sua própria história. Por uma estrada que não tem fim. Não é para ser superada, é para ser andada. Levará, quem sabe, a um lugar que os homens poderão amar. E Zarathustra não estará lá para acompanhá-los. Pena, Zarathustra desistiu.
A vida não é fácil. É preciso vivê-la para sabê-lo. E ter a ingenuidade das crianças para, todos os dias, recomeçar. A esperança é teimosa. Zarathustra se cansou da teimosia da Humanidade. Perdeu.
_____
* Jornalista. Colunista do jornal O Globo
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/o-erro-de-zarathustra-18165252 - 28/11/2015
Na encosta da montanha encontrou um velho. E pensou, no silêncio do seu coração: “Esse pobre velho certamente reza a Deus, e não sabe que Deus morreu. O homem, que criou Deus, igualmente o matou. Foi o momento culminante da história da Humanidade. Pobre velho”.
O velho viu o jovem que descia apressado. E pensou, no silêncio do seu coração: “Esse moço que vai com pressa crê que eu rezo para um Deus morto. Eu tenho coisas doces para lhe dizer. Mas ele tem pressa” — e se calou.
No vale, Zarathustra quis ensinar aos homens o salto acima deles mesmos, os demasiadamente humanos, os que carregam todos os pesos em suas corcovas de camelo. Quis lhes ensinar o além-homem. Pensava nas transfigurações do homem na direção da suprema liberdade. Primeiro o camelo, que carrega nas corcundas as obrigações do belo, do bom, do justo e do verdadeiro, criadas pelos filósofos, sacerdotes e moralistas para submeterem, julgarem e condenarem a Humanidade. Era chegada a hora de sacudirem os pesos e urrarem pela liberdade. Hora de o camelo devir leão. Um grande passo. Mas ainda brigado, negativo. Lutar com esses “valores superiores” é caminho e passagem. Não o fim da estrada. Nele estará a criança, que não tem passado, não vive de ressentimentos. Sua força é a inocência do devir. Todo o tempo é seu, sem sofrimento, para sempre. Devir-criança é a salvação do fraco demasiadamente humano. É a afirmação máxima da potência da vida.
A vida, pensava Zarathustra, desde Sócrates perdera a tensão trágica, a força de se sustentar entre a demasia embriagada de Dionísio, deus do vinho, e a disciplina luminosa de Apolo, o sol. Durante um par de séculos os gregos tinham suportado jubilosamente esse dilaceramento, superabundância de potência. Depois os medrosos da vida deixaram de aguentar tamanha força e eliminaram Dionísio, adotaram a luz apolínea como lei. Fizeram dela um absoluto e condenaram a Humanidade a carregar seu peso. Culpa de Sócrates. Era chegado o momento de vencer Sócrates e restaurar o reino da potência. Resgatá-la da humilhação de tanta subserviência desfibrante. Zarathustra olhava para os homens como se fossem os últimos, o último homem, o que deseja morrer. Assim pensava Zarathustra. Ia lhes ensinar a potência de viver além de bem e mal, acima dos valores vazios da humilhação da vida.
Tentou. De cidade em cidade foi e pregou. Ensinou o além-humano, o super-homem. Convidou os homens a recuperarem a inocência das crianças. Ensinou-lhes que só se tornariam grandes quando ousassem sua própria travessia para fora da servidão. Bradou contra os valores que são impostos à vida e a humilham até o ponto de ela se tornar uma vontade de nada. Rugiu pela vida. Como se fosse já o leão. Os homens, estarrecidos com aquela coisa extraordinária, não o receberam. Cuspiram-no. Atiraram-lhe pedras. Vaiaram seus discursos. Expulsaram-no. E Zarathustra viu que não estavam preparados. Abatido, voltou para a sua montanha e seu soberbo isolamento, acima da Humanidade que não o merecera. Na subida, encontrou de novo o velho que rezava. Esse estava a meio caminho entre o alto e o baixo. Zarathustra passou sem mesmo olhá-lo com piedade. Ia pesado. Ansiava pela sua águia orgulhosa, pela sabedoria da sua serpente.
Foi o erro de Zarathustra. A Humanidade precisava dele. Mas ele, sobretudo ele, precisava da Humanidade. Abandonou-a. Devia ter ficado. E aprendido. Não sabia que o mais alto vem do mais baixo, e a alegria não tem a si mesma como padrão. A alegria precisa do sofrimento. Zarathustra teve medo do sofrimento. A coragem que o trouxera para baixo foi se esterilizar na solidão do alto. Zarathustra não tinha esperança. Não estava preparado para a Humanidade, que caminha na sua própria história. Por uma estrada que não tem fim. Não é para ser superada, é para ser andada. Levará, quem sabe, a um lugar que os homens poderão amar. E Zarathustra não estará lá para acompanhá-los. Pena, Zarathustra desistiu.
A vida não é fácil. É preciso vivê-la para sabê-lo. E ter a ingenuidade das crianças para, todos os dias, recomeçar. A esperança é teimosa. Zarathustra se cansou da teimosia da Humanidade. Perdeu.
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* Jornalista. Colunista do jornal O Globo
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/o-erro-de-zarathustra-18165252 - 28/11/2015
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