Luis Fernando Veríssimo*
Dizem que Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil inteiro.
Não sei se a estatística é correta, mas, se for, a capital argentina
ainda perde para Óbidos, em Portugal, que tem 70 habitantes fixos e 12
livrarias. (O Google desmente a informação orgulhosa que me deram lá e
diz que são 2 mil habitantes fixos, o que não diminui o espanto e a
inveja com a proporção população/livrarias da cidade). As poucas ruas de
casas brancas de Óbidos descem de um castelo medieval e de uma igreja
antiga – que não é mais igreja, é livraria – situados na sua parte mais
alta. A cidade normalmente se enche de turistas todos os dias, mas
estava excepcionalmente cheia para o seu primeiro Festival Literário
Internacional, do qual participei, há um mês, junto com outros
brasileiros, como Ruy Castro, Nelson Motta, Gregório Duvivier, Francisco
Bosco, João Paulo Cuenca e Sérgio Rodrigues, e portugueses (ou
afro-portugueses), como os grandes Mia Couto e José Eduardo Agualusa,
este o curador da parte literária e um dos idealizadores do encontro.
Também houve música, com artistas como Miúcha e Georgiana de Moraes e o
grupo do Moreno Veloso, para ficar só nos brasileiros, e um show
fantástico da portuguesa Cristina Branco cantando Chico Buarque com o
trio do pianista Mário Laginha. Minha participação foi junto com Ricardo
Araujo Pereira, jovem cômico popularíssimo em Portugal que começa a
conquistar o Brasil (sua entrevista com o Jô, há algum tempo, foi
ótima).
Nosso hotel ficava fora da muralha que cerca a cidade. Era um antigo convento, e seu interior fora totalmente redecorado com livros. Livros por toda parte. Livros do chão até o teto. Livros e mais livros. Lembrando daqueles livros agora, depois do acontecido em Paris, e do que ainda pode acontecer em qualquer lugar deste insensato mundo, pensei: os livros de Óbidos também pareciam uma muralha. Mas não nos protegiam da loucura.
KALASH
Os rifles AK criados por Mikhail Kalashnikov têm um apelido carinhoso na Rússia: “Kalash”. O primeiro modelo do “Kalash” foi o AK-47, um sucesso de vendas instantâneo. Tornou-se o mais usado fuzil automático do mundo e chegou a ser o produto mais exportado da União Soviética. Sua simplicidade e eficiência foram responsáveis pela sua adoção universal depois do aparecimento do primeiro protótipo. O modelo atual, provavelmente o que portavam os terroristas de Paris, é o AK-102.
Imagino que Mikhail Kalashnikov já tenha morrido. Vivia uma aposentadoria tranquila nos Urais, cercado pelas filhas. Fora a surdez, resultado dos anos testando armas, não ficou com nenhuma sequela do seu trabalho. Certamente nenhum remorso. Orgulhava-se do que tinha feito pela pátria. Se seu fuzil foi usado em guerras sujas, massacres e assassinatos em todo o mundo, inclusive na Rússia, isto não era da sua conta. Só estava fazendo seu trabalho. Nenhum fantasma shakespeariano perturbou o seu sono nos Urais, como os fantasmas que visitaram Ricardo III antes da sua batalha final para lhe dizer “Desespere e morra”.
Testemunhas dos atentados em Paris se surpreenderam com o sangue-frio dos terroristas, que saíam dos locais dos massacres caminhando calmamente. Os que sobreviveram e os que se imolaram só estavam fazendo seu trabalho, o de aterrorizar uma cidade justamente com a tranquilidade de quem sai de um bar e vai pra casa. Sem pressa e sem remorso. É justamente isso – a ausência de qualquer coisa parecida com remorso quando se está matando por uma causa sagrada – que impossibilita qualquer apelo à razão, ou compreensão, no trato com o terror. A distância entre um terrorista e a consciência do horror dos seus atos é quase a mesma distância de Kalashnikov do gatilho de um “kalash”.
Nosso hotel ficava fora da muralha que cerca a cidade. Era um antigo convento, e seu interior fora totalmente redecorado com livros. Livros por toda parte. Livros do chão até o teto. Livros e mais livros. Lembrando daqueles livros agora, depois do acontecido em Paris, e do que ainda pode acontecer em qualquer lugar deste insensato mundo, pensei: os livros de Óbidos também pareciam uma muralha. Mas não nos protegiam da loucura.
KALASH
Os rifles AK criados por Mikhail Kalashnikov têm um apelido carinhoso na Rússia: “Kalash”. O primeiro modelo do “Kalash” foi o AK-47, um sucesso de vendas instantâneo. Tornou-se o mais usado fuzil automático do mundo e chegou a ser o produto mais exportado da União Soviética. Sua simplicidade e eficiência foram responsáveis pela sua adoção universal depois do aparecimento do primeiro protótipo. O modelo atual, provavelmente o que portavam os terroristas de Paris, é o AK-102.
Imagino que Mikhail Kalashnikov já tenha morrido. Vivia uma aposentadoria tranquila nos Urais, cercado pelas filhas. Fora a surdez, resultado dos anos testando armas, não ficou com nenhuma sequela do seu trabalho. Certamente nenhum remorso. Orgulhava-se do que tinha feito pela pátria. Se seu fuzil foi usado em guerras sujas, massacres e assassinatos em todo o mundo, inclusive na Rússia, isto não era da sua conta. Só estava fazendo seu trabalho. Nenhum fantasma shakespeariano perturbou o seu sono nos Urais, como os fantasmas que visitaram Ricardo III antes da sua batalha final para lhe dizer “Desespere e morra”.
Testemunhas dos atentados em Paris se surpreenderam com o sangue-frio dos terroristas, que saíam dos locais dos massacres caminhando calmamente. Os que sobreviveram e os que se imolaram só estavam fazendo seu trabalho, o de aterrorizar uma cidade justamente com a tranquilidade de quem sai de um bar e vai pra casa. Sem pressa e sem remorso. É justamente isso – a ausência de qualquer coisa parecida com remorso quando se está matando por uma causa sagrada – que impossibilita qualquer apelo à razão, ou compreensão, no trato com o terror. A distância entre um terrorista e a consciência do horror dos seus atos é quase a mesma distância de Kalashnikov do gatilho de um “kalash”.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4912221.xml&template=3916.dwt&edition=27892§ion=70
Imagem: Da Literatura
de Óbidos observam livros numa antiga adega requalificada, onde a ordem
é “Ler devagar”, tal como o nome da livraria ai instalada.
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