Por MARCELO RIDENTI*
Trechos selecionados pelo autor do romance recém-lançado
Apresento aos leitores do site A terra é redonda breves trechos de meu romance de estreia, Arrigo (Boitempo). Revisito pela ficção cem anos de história da esquerda brasileira, tramada na trajetória de Arrigo e seus companheiros no país e no exílio, numa mescla de realismo e fantasia.
1917 – Um rato
Quem já matou um rato? Pode-se prendê-lo numa ratoeira e jogar no tanque para se afogar. Também molhar com combustível e pôr fogo em seu rabo, depois soltá-lo para correr como nunca rumo à morte. Algumas crianças se divertiam assim, descontando no rato as humilhações e os sofrimentos pelos quais passavam na fábrica e em casa; ou quem sabe fosse pura maldade injustificada. Melhor um gato, animal menos nojento.
Mais gostoso: esmagar o rato com o pé, encurralando-o junto à parede. Apertar com força suficiente para ele não fugir, sem o trucidar de imediato. Depois ir apertando devagar, sentir seus ossos se quebrarem lentamente sob o calçado, um estalo por vez, em meio aos grunhidos de desespero, até o sangue escorrer de cada orifício, carne mole sob o sapato, com técnica, para evitar a sujeira das tripas na sola.
Soldados já foram crianças, seguem humilhados, agora sob a farda e com as armas que os distinguem das gentes de baixo de suas origens, liberados para nelas sentar o pau. O deleite era evidente no rosto do policial, cuja bota apertava devagar o peito do menino Arrigo contra o chão naquela noite fria de julho.
1924 – Revolta em São Paulo
Foi nesse ambiente de festa e revolução, real ou imaginária, arrebatado pela bebida dos deuses, que Arrigo pegou nas mãos de Carmen e a puxou para si aos pés da escadaria, beijando-a pela primeira vez. Depois a segunda, a terceira e muitas mais, incerto feito um bêbado. Carmen nem pensou em gritar ou chamar alguém. Estava encantada com Arrigo, seus modos finos, sua beleza, seu olhar de desejo. Nunca entrara numa casa tão grande e bonita como a dele, em bairro assim nobre, nem mesmo quando era chamada para ajudar na cozinha ou trabalhar na limpeza de outras moradias. Logo percebeu que o garoto era fogoso, mas inexperiente, e a sensação de ser professora lhe dava prazer. Que aluno! Aprendia depressa.
Arrigo nunca esqueceu os dias que passaram juntos na casa ocupada, antes que o pai voltasse para retomá-la e acabar com a festa, furioso sobretudo com o assalto à adega.
Ao perdedor, as bananas
Arrigo recordou o episódio da visita a Machado de Assis muitos anos depois, quando foi usado na campanha de libertação do ex-secretário, preso após o golpe de 1964. O veterano Astrojildo Pereira já não era um comunista poderoso, apenas um homem que amava o escritor, a exemplo de tantos então no governo – militares, empresários e juízes, além de intelectuais que davam ar de respeitabilidade cultural ao regime militar. Assim como o episódio fora usado por Arrigo para se livrar da punição do pai, serviu também para ajudar os advogados a tirarem o comunista da cadeia.
Arrigo imaginava Machado sorrindo de tudo isso, sem se dar ao trabalho de ajeitar o pincenê no escurinho do túmulo. Tornara-se o ponto de consenso entre o próprio Arrigo, seu pai, Astrojildo, Lino e até golpistas militares. Virou objeto de amor de rivais, como Flora, disputada por Pedro e Paulo. Esaú e Jacó numa única pessoa, que não era ela mesma.
Diga-se, a bem da verdade, que Arrigo e Lino nunca espalharam notícia do caso – não só por solidariedade ao secretário, mas também porque eles mesmos eram machadianos e tinham a cabeça a prêmio. Arrigo ainda no partido, Lino já expulso. O castigo chegaria para todos. Eles estariam fora da agremiação antes que começasse o que os paulistas gostam de chamar de Revolução de 1932.
Astrojildo, quarentão, enfrentou alguns problemas com a polícia, mas foi logo liberado. Teve o bom senso de casar-se com a jovem Inês, filha mais velha de Everardo, que, precavido, não a apresentara a Arrigo. O casal retirou-se para o seio dos negócios familiares de produção e distribuição de bananas em Rio Bonito, interior do Rio de Janeiro, onde o antigo secretário teve muito tempo para estudar a obra de Machado de Assis e outros temas literários. A democratização após o Estado Novo marcaria seu retorno ao partido como fundador histórico que nunca mais influiria nos rumos da organização.
Nas bastilhas de Bernardes
Doutor Vital conseguiu transferir Arrigo do presídio da Ilha Grande. A partir de então, o jovem fez um périplo por outras prisões cariocas em que já estivera. Ficou um tempo na Casa de Detenção, onde recuperou a saúde e conviveu com muitos presos políticos acusados de pertencer à Aliança ou ao partido, alguns dos quais seus conhecidos. Um coletivo organizava o cotidiano dos prisioneiros. O maior incômodo era o ataque de percevejos, combatidos com afinco, sem êxito. Nas celas e no espaço nomeado praça Vermelha, realizavam-se de cursos educativos a rodas de samba, de jogos de xadrez a sessões espíritas. Os detentos improvisavam um noticiário noturno, lido alto à moda das transmissões radiofônicas. Era a Rádio Libertadora a divulgar notícias, inclusive internacionais, como a situação na guerra civil espanhola. Lembrava os dias no presídio Maria Zélia.
Mal se acostumara com o coletivo, Arrigo foi transferido para a Casa de Correção, outra velha conhecida e de onde sairia rapidamente. Com o fim do estado de guerra, o novo ministro da Justiça cedeu a pressões e liberou centenas de presos políticos sem processo formado, Arrigo entre eles. Doutor Vital aconselhou o cliente a deixar o país quanto antes, antevendo a implantação de uma ditadura aberta, que de fato viria em novembro, após o fechamento do Congresso e o início do Estado Novo.
Arrigo ferido na Guerra Civil Espanhola
Certa noite, Carmella entrou em silêncio no quarto, logo depois que ele apagara a luz. Arrigo ajeitou-se para exibir as feridas e trocar o curativo, mas ela não iluminou o recinto. Quando ele fez menção de dizer algo, entreviu na penumbra o vulto tocar os próprios lábios com o indicador, a pedir silêncio. Discretamente, deitou-se a seu lado. Surpreso, sem se sentir forçado, pousou a mão no ombro dela com espontaneidade e quis dizer algo. Desta vez sentiu o dedo sobre sua boca, não era ocasião de conversa. Momento de retribuir, não seria sacrifício. O corpo falava por ela. Usando a mesma língua, o rapaz tampouco proferiu palavra, prazer em dar prazer. Também ficou mudo na noite seguinte, ao receber a visita de Marcella, a irmã. Mistérios do desejo.
Antes, durante e depois da recuperação do paciente, elas rezavam diante da cópia em miniatura de uma escultura de Bernini conhecida como O êxtase de Santa Teresa, em que ela aparece desfalecida, com a boca entreaberta diante do anjo e sua flecha dourada. A inspiração estava na autobiografia da santa, leitura de cabeceira das duas. Teresa revelava o prazer divino sentido ao ter o coração e as vísceras penetrados pela lança do anjo que a deixou em fogo, doçura de uma dor excessiva que a fez gemer e da qual não queria se livrar. Convergência do físico com o espiritual, o céu na terra pela flecha abençoada. Arrigo, anjo que a providência divina colocara no quintal das irmãs para terem a graça de viver o êxtase de santa Teresa de Ávila.
Elas se revezavam dia e noite no tratamento do paciente e de si mesmas. Deixavam os corpos se entenderem; eles não precisam de palavras para chegar ao gozo divino. Pouca coisa verbalizada. Arrigo sequer tinha certeza de que elas se chamavam Carmella e Marcella, embora tenham se apresentado assim. Ele percebia o carinho pelo tratamento e pela qualidade da comida, mas elas não se sentavam com ele para compartilhá-la. Jamais esclareceram por que o ajudavam, como fora parar ali ou quando partiria. Tampouco ele ousava perguntar. Um ateu nas mãos de Deus.
Fugindo do nazismo
A última leva que puderam proteger saiu da França no fim de setembro de 1940. O grupo de judeus fora impedido pela polícia espanhola de entrar em seu território e teve de voltar ao solo francês. Arrigo ligou a Derville; Luna ativou seus contatos secretos do outro lado da fronteira. Os esforços conjuntos foram bem-sucedidos, e o grupo entrou na Espanha no dia seguinte, para depois fugir da Europa conflagrada, muitos para os Estados Unidos.
Dois acontecimentos turvaram o êxito da operação. Primeiro, um dos fugitivos apareceu morto misteriosamente no hotel para onde o grupo foi dirigido após a recusa da entrada. Ao que tudo indica, suicidou-se por não aguentar a ideia de ser capturado por cúmplices franceses dos nazistas, que o entregariam à Gestapo. Derville disse a Arrigo que se tratava de intelectual judeu alemão importante, seu amigo, que estava morando em Paris e decidiu fugir diante da perseguição a judeus e marxistas.
A morte atraiu a atenção da polícia, que acabou descobrindo as atividades secretas de Arrigo e Luna. Ambos foram alertados por um companheiro cujo irmão trabalhava na delegacia da pequena cidade. Fugiram de carro em direção a Marselha, onde eram esperados por madame e seu marido, que haviam se mudado para lá após a tomada de Paris pelos alemães. A partir de então, Arrigo assumiu o codinome Marcel. Luna ficou com o que já tinha escolhido desde que sepultara Doroteia.
Pesadelo em Portbou
Cerca de um mês antes do suicídio que o forçaria a deixar Portbou, Arrigo teve um pesadelo que o perturbou por vários dias. Às vezes se repetia. Caminhava sozinho em cidade desconhecida, por uma rua deserta que terminava num beco sem saída, embalado por um vento quente. Entrou na única casa com as portas abertas. Bateu, sem resposta. Foi entrando até o escritório, no fundo do corredor, onde certo senhor grisalho trabalhava em sua escrivaninha, de costas para ele. Arrigo olhou a parede crivada de marcas de bala, ao lado de fotos de família judia e de revolucionários russos posando para a posteridade.
Imagens amareladas pelo tempo. Chegou perto de uma das fotos, parecia alguém conhecido, época de dona Imma. Ao tentar se concentrar na imagem, um homem saltou sobre ele armado com picareta de metal, ferramenta de alpinista. Defendeu-se, atracaram-se, depois o homem fugiu, deixando-o com a picareta na mão. Arrigo olhou ao redor e viu o senhor grisalho ainda de costas, agora com o crânio partido, balbuciando por socorro, uma poça de sangue em volta. Pessoas entraram na sala, acusando-o de assassino. Um menino acudiu o velho, amparando-o nos braços, permitindo ver o rosto da vítima. Era Lino, que se voltou ao amigo e repetiu: “Assassino!”. Em desespero, Arrigo gritou que era inocente, a picareta não era dele. Ao baixar os olhos, viu as próprias mãos encharcadas de sangue. Tentou fugir, gritando, mas muitos braços não o deixavam sair do lugar, até que acordou ao lado de Luna, dormindo tranquila.
A escada e a muralha (pesadelo do guerrilheiro)
Arrigo sonhou que subia uma longa escada de madeira, dessas que se veem nos filmes sobre a Idade Média, usadas pelos guerreiros para invadir castelos. Não tinha certeza do motivo de galgar os degraus, mas sabia que era urgente. No começo pensou que o objetivo era entrar no castelo, depois prevaleceu a sensação de que estava escapando do confinamento em suas muralhas, cujo topo precisava atingir.
No fim da subida, olhou para baixo a uma altura de trinta metros ou mais. Vertigem. Companheiros vinham atrás, pressionando para seguir o caminho. Não dava para retroceder, e ainda sobravam alguns palmos para chegar ao objetivo. Teria de saltar para o alto, pulo pequeno, mas um erro levaria à queda fatal. Começou a sentir a escada balançar com o movimento dos que o seguiam. Seu corpo tremia em calafrios. Soldados aproximavam-se no topo da muralha. Indeciso, Arrigo ficou paralisado, agarrando-se à escada tremulante que podia cair a qualquer momento. Acordou em desespero, abraçado às grades de sua cela.
Nos porões da ditadura militar
Sima já tinha ouvido rumores sobre o uso de animais em sessões de tortura. Usavam até cobras e jacarés, em especial com os corpos femininos. Nunca imaginou que isso pudesse acontecer com ela. Antes de uma sessão, foi obrigada a dançar pelada para deleite de alguns policiais, que logo lhe colocaram o capuz na cabeça, a seguir uma corda no pescoço, atada às mãos atrás do corpo nu, de modo que, caso se mexesse para defender a intimidade, se enforcasse.
O agente conhecido pelo codinome de Gegê guardava baratas com carinho numa caixa, cada uma batizada com nome de atriz de novela: Glória, Regina, Eva, Dina, Yoná. Prendia finos barbantes em suas carcaças, cada qual de cor diferente, verde, azul, amarelo, branco, para melhor identificar as criaturas e também manipular seus movimentos, tarefa delicada, cumprida com destreza e desenvoltura. Não era homem só para o trabalho bruto dos choques e pancadas. Caprichava no que fazia, era profissional. E sensível, um carcereiro contou que o colega levava os insetos amestrados para exibir à mulher e aos filhos. Seu sonho era trabalhar com um ornitorrinco.
Gegê admirava a capacidade das baratas de sobreviver a chineladas e outras adversidades. Seus experimentos comprovavam a resistência delas a mais de meia hora debaixo d’água, em pouco tempo conseguem até regenerar patas arrancadas, podem ficar semanas sem comer e aguentam mais de um mês sem cabeça. Por sua vez, separada do resto do corpo, a cabeça pode se manter viva e mexer as antenas por horas. Era o que sussurrava nos ouvidos de Sima enquanto os colegas davam choques na moça e ele preparava seus bichinhos para entrar em ação.
Sima teve calafrios quando o tipo convidou as baratas para brincar sobre sua pele nua na sala de tormentos. Suportava, enojada, mas tremeu ao ver uma gaiola cheia de ratos. Percebendo a fraqueza, primeiro o torturador colocou delicadamente um camundongo para passear em busca de esconderijo nas cavidades do corpo da moça. Passado que voltava em pesadelos e delírios da exilada.
*Marcelo Ridenti é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O segredo das senhoras americanas (Unesp).
Referência
Marcelo Ridenti. Arrigo. São Paulo, Boitempo, 2023, 256 págs.
Fonte: https://aterraeredonda.com.br/arrigo/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2023-03-01
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