quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Internet: o Desafio Morozov

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Não basta controlar as corporações que a sequestraram, diz pensador em SP. É preciso reconstruir a rede, resgatando uma arquitetura de espaço solidário, desmercantilizado e aberto à cooperação. Sul Global pode liderar processo

O bielorusso Evgeny Morozov, um dos principais pensadores de tecnologia da atualidade, visitou o Brasil nos últimos dias de agosto. Durante sua passagem por São Paulo, participou de uma reunião organizada pela Coalizão Direitos na Rede para um grupo de pesquisadores e ativistas1 e realizou uma apresentação pública a convite do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) no auditório da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), entre outras atividades. Em ambos os espaços, foi enfático ao defender que, para melhor compreender o contexto contemporâneo das tecnologias, é preciso considerar relações políticas e econômicas a partir do capitalismo neoliberal. Também destacou a necessidade de imaginar e desenvolver infraestruturas e políticas públicas estatais, dada a necessidade de grandes investimentos seja para a criação de infraestruturas voltadas à conexão seja para o desenvolvimento de Inteligência Artificial, por exemplo.

Ao abordar estes temas, Morozov provocou: precisamos pensar para além da regulação das tecnologias digitais. Não que este debate não seja importante; é, mas sua chamada foi para construir também alternativas para um mundo tecnológico, onde seja possível avançar com imaginários que criam uma mentalidade da relação do homem com a tecnologia para além das mediações neoliberais. “A regulamentação é importante, mas não podemos apenas discutir o que fazer com relação ao WhatsApp ou ao Facebook. Precisamos pensar o que fazer a respeito dessas enormes infraestruturas digitais que empresas privadas estão vendendo de volta às instituições públicas e aos cidadãos”, disse em entrevista à Folha de S.Paulo.

A provocação de Morozov sobre a necessidade de criar alternativas e pressionar as políticas públicas para não abraçar o mundo tecnológico tal como está posto por grandes interesses do capital talvez seja o ponto mais forte de seu discurso atual. Enfatizar a necessidade de construir soberanias tecnológicas e diminuir assimetrias de dependência é consequência desse discurso. Morozov é insistente nesse ponto. Seus dois livros lançados no Brasil, Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política, publicado pela editora Ubu em 2018, e A cidade inteligente: Tecnologias urbanas e democracia, coedição de Ubu e Fundação Rosa Luxemburgo em 2020, são ambos críticas ácidas, irônicas e bem fundamentadas.

No primeiro, o bielorusso trata do crescente poder das grandes empresas de tecnologia, que desequilibram o jogo democrático em todo o mundo. No segundo, escrito em parceria com a italiana Francesca Bria, disseca e desmonta a ideia de smart cities, procurando chamar a atenção para a fragilidade de conceitos que se espalham rapidamente baseados no “solucionismo tecnológico”, conceito que ele vem trabalhando há dez anos, segundo o qual a tecnologia é o pacote que resolve todos os problemas do mundo, sem necessariamente informar ao mundo quais são os custos e interesses envolvidos nisso.

Já em 2018, no livro Big Tech, alertava: “o Vale do Silício destruiu a nossa capacidade de imaginar outros modelos de gestão e de organização da infraestrutura da comunicação. Podemos esquecer os modelos que não se baseiam em publicidade e que não contribuem para a centralização de dados em servidores particulares instalados nos Estados Unidos. Quem sugerir a necessidade de considerar outras opções – talvez até mesmo modelos já publicamente disponíveis – corre o risco de ser acusado de querer “quebrar a internet”.

Olhar o passado para imaginar o futuro

Para defender a necessidade de imaginar alternativas, Morozov insiste na necessidade de considerar a dimensão econômica, social e histórica das novas tecnologias. Para falar do futuro, defendeu o uso de referências do passado, ancorado no seu recém-lançado podcast The Santiago Boys, projeto que trata do resultado de uma investigação de dois anos sobre o Projeto Cybersyn do governo de Salvador Allende (1970-1973), no Chile, uma tentativa de criar uma rede baseada em telexes e computadores na administração federal, contrapondo a empresa International Telephone and Telegraph Corporation (ITT) e seus interesses.

O podcast tem nove episódios de uma hora cada, e um site com a transcrição de várias entrevistas realizadas. É um trabalho que joga luz a uma iniciativa que, mesmo que não tenha “dado certo”, mostra as possibilidades e dificuldades na construção de outros imaginários de arquiteturas tecnológicas que não as baseadas no capitalismo neoliberal. Morozov está negociando a possibilidade de transformar The Santiago Boys em filme, já que acredita que é necessário propor outras narrativas e mitos para se opor aqueles já bem conhecidos ligados ao empreendedorismo startupeiro do Vale do Silício. Daí também a escolha do produto final de sua investigação, mais palatável a audiências maiores do que um livro ou artigos em publicações jornalísticas.

Em sua pesquisa sobre o Cybersin, o escritor voltou seu olhar para os anos 1960 e 1970 da América Latina e reconheceu a importância da Teoria da Dependência. Gestada na América Latina e popular nesse período, a partir de autores como André Gunder Frank, Rui Mauro Marini e Fernando Henrique Cardoso (todos citados por Morozov em suas falas brasileiras), a teoria entende que a caracterização de países como “atrasados” decorre da relação do capitalismo mundial de dependência entre países “centrais” e países “periféricos – algo que, agora, se dá também a partir das empresas do Vale do Silício, que assumiram um papel-chave em um novo jogo de relações de poder econômico, político e internacional, onde os governos se encontram cada vez mais reféns de suas soluções.

Morozov ressaltou que as plataformas digitais têm feito uma apropriação do futuro, bloqueando possibilidades e ampliando dependências geopolíticas. Fazem isso ao impor uma lógica de uso e, consequentemente, de aquisição dessas tecnologias aos países dependentes do Sul Global como o Brasil, numa também reprodução (ou ampliação) da lógica colonial que pode ser chamada de Colonialismo Digital (ou Colonialismo de Dados).

O interesse do bielorusso em compreender este contexto na América Latina se dá, segundo suas falas, por acreditar que a resistência a esse cenário poderá vir dos países periféricos, seja por seus contextos históricos de desenvolvimento tecnológico, seja pelo quanto serão afetados. Assim, conceitos como o de soberania tecnológica devem ser entendidos, na visão apresentada por Morozov, como parte de políticas tecnológicas e industriais nacionais. Necessariamente.

Morozov em reunião organizada pela Coalizão Direitos na Rede, Data Privacy Brasil e Rede LatinoAmericana de Estudos sobre Vigilância (Lavits), com mediação de Ana Mielke, do Intervozes, e Leonardo Foletto, do Creative Commons Brasil. Foto: Daniel Santini

Falsa dicotomia: soluções de mercado x planejamento centralizado

Com cuidado, escolhendo as palavras em um esforço notável para falar português, Morozov fez questão de, ao tratar do papel do Estado, desmontar a falsa binariedade entre soluções de mercado e planejamento centralizado.

Em sua fala pública, que pode ser assistida na íntegra no canal do Comitê Gestor de Internet, argumentou que precisamos de outros caminhos que não passem pela ausência de regras e dependência de grandes corporações tecnológicas, de um lado, ou pelo controle total de governos de outro. São alternativas que, não estando prontas, precisam ser imaginadas e construídas – tarefa em que podem contribuir a sociedade civil, pesquisadores e pesquisadoras, jornalistas e ativistas.

Morozov parte da premissa de que inovação tecnológica não é neutra, mas sim um processo político. Daí a importância de se repolitizar o discurso sobre inovação a partir também de um criticismo tecnológico. No encontro que antecedeu a apresentação pública, destacou que a “esquerda tradicional não tem uma visão construtiva sobre tecnologia, mas sim defensiva”, e reafirmou a ideia de que os movimentos sociais, como o MST e o MTST, podem ajudar a disputar a inovação (e a discussão sobre soberania) também a partir de um ponto de vista popular, já que seus arranjos políticos e organizacionais hoje são inovadores e de grande alcance territorial.

Na reunião organizada pela Coalizão Direitos na Rede, Morozov ainda foi categórico ao chamar a atenção de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros para a importância de pesquisas e estudos críticos para ampliar o debate político frente ao desenvolvimento, à evolução e à aplicação de novas tecnologias digitais, trazendo à sociedade civil os insumos necessários para pressionar as políticas públicas existente sobre o tema rumo ao desenvolvimento de uma soberania tecnológica brasileira.

Referências históricas e um novo imaginário, essas são as premissas para avançar nesse cenário. Essa é a combinação recomendada por Morozov em sua breve passagem por São Paulo.

1 A atividade foi realizada a partir da iniciativa de organizações integrantes da da Coalizão Direitos na Rede, entre as quais Artigo 19, Creative Commons Brasil, Data Privacy Brasil, DiraCom, Instituto Vero, Instituto Aaron Swartz, Intervozes e LAVITS.

 Publicado 31/08/2023 às 19:51 - Atualizado 31/08/2023 às 20:16 

Fonte: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/internet-o-desafio-morozov/ 

“Se a Igreja ordenasse mulheres, nada de fundamental na fé mudaria”

| Ago 30, 2023

A Última Ceia de Jesus celebrada também com mulheres, na visão do polaco Bohdan Piasecki (1998).

A Última Ceia de Jesus celebrada também com mulheres, na visão do polaco Bohdan Piasecki (1998).

“Todos os seres humanos são à imagem e semelhança de Deus; todos os cristãos são à imagem e semelhança de Cristo. Dizer que uma mulher não pode representar Cristo seria minar a nossa compreensão fundamental do batismo e a condição para a ordenação não é o género, mas precisamente a fé e o Batismo”.

A conclusão é do teólogo e frade agostiniano irlandês Kieran J. O’Mahony que, além de biblista, especialista em S. Paulo, e pároco, tem desempenhado na diocese de Dublin cargos ligados à formação dos ministérios ordenados e laicais. Foi igualmente presidente das duas associações de estudos bíblicos do seu país.

Este teólogo acaba de publicar um artigo no jornal La Croix International intitulado Learning from the women of St Paul [Aprender com as mulheres de S. Paulo] que constitui um contributo para a reflexão que o lugar das mulheres na Igreja certamente terá no Sínodo sobre a Sinodalidade, em outubro próximo.

Como o autor refere logo no início do texto, dos 70 membros do Sínodo que não-bispos com direito de voto, metade são mulheres, facto que, parecendo em si mesmo irrelevante, reveste-se, no seio da Igreja, de um caráter “revolucionário e (provavelmente) irreversível”, observa O’Mahony. Para ele, como salienta o artigo, estando a questão do papel das mulheres na Igreja institucional já firmemente inscrita na agenda sinodal, “a verdadeira questão é ouvir a voz das mulheres, através da Igreja, não por graça e favor, mas por direito”.

Então que nos ensinam as “mulheres de S. Paulo”? O biblista – é nessa qualidade que escreve – começa por traçar um quadro evolutivo dos ministérios nos primeiros cem anos do cristianismo. Paulo, recorda ele, viveu naquilo a que chama “o período do carisma”, grosso modo situado entre os anos 30 e 60. Como se pode ver em Romanos, 16, ele estava acompanhado por mulheres em funções ministeriais, em coerência com o seu ensinamento de que “já não há judeu nem grego; já não há escravo nem livre; já não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3,28).  Essas mulheres têm nome: Febe, diácono (significa líder local) da igreja de Cencréia; Prisca (uma colaboradora de Paulo) e Júnia (uma parente de Paulo, chamada por ele nada menos que apóstolo). Mas há outros nomes: Maria, Trifena, Trifosa e a amada Pérside. Todas elas são descritas como “trabalhadoras no Senhor”, uma expressão que, explica o biblista, significa que exerciam funções de ensino ou de evangelização.

As mulheres não estiveram caladas, foram caladas

Em jeito de aparte jocoso, O’Mahony acha que não era de esperar que estas mulheres “ficassem caladas na Igreja”, em referência àquilo que ele alegadamente escreveu em 1 Coríntios 14:34-36 e que, aduz, é hoje geralmente reconhecido como interpolação não paulina. Isto é, um inciso inserido no texto quando a coleção das suas cartas ficou disponível, “uma tentativa de fazer o grande apóstolo dizer o que ele nunca, jamais, teria dito”.

O texto refere-se, depois, a uma geração seguinte (anos 60-90), designado “o tempo da memória”, de caraterísticas mais conservadoras, que o autor deteta na atitude face ao lar e à escravatura, que surge nas cartas chamadas deutero-paulinas (por serem atribuídas não ao punho de S. Paulo, mas a discípulos ou a uma tradição a ele ligada, especificamente, neste caso, Colossenses e Efésios. E propõe também um período seguinte, até ao ano 120, dito o “tempo da institucionalização”, no qual a busca de “uma maior conformidade com as expetativas da sociedade” leva cartas deutero-paulinas como 1 e 2 Timóteo e Tito, a proibir as mulheres até de falar na igreja, coisa que só mostra que elas falavam: “não há necessidade de proibir o que não está a acontecer!”, nota o autor.

 

A hierarquia da Igreja não remonta ao Jesus histórico

Santa Febe, mulher diácono

Ícone ortodoxo representando Santa Febe, uma das mulheres diáconos identificadas nos textos de São Paulo.

Foi nesta altura que começou também a surgir o ministério triplo de supervisor (episcopos, mais tarde bispo), ancião (presbyteros, mais tarde presbítero) e servidor (diakonos, mais tarde diácono).

Assim sendo, temos que “os ministérios evoluíram nos primeiros cem anos do cristianismo e podem ser encontrados nas igrejas paulinas” e que “o ministério triplo que acabou por surgir [no virar do primeiro para o segundo século da era cristã] não remonta ao Jesus histórico”.

O processo de separação da Igreja face à religião-mãe (o judaísmo) foi problemático, “em parte, explica Kieran J. O’Mahony, porque não havia qualquer ensinamento ou expetativa de Jesus sobre O Caminho como uma entidade religiosa separada”.

A ter sido assim, algumas consequências tornam-se significativas: “Será que Jesus ordenou apenas homens? Na realidade, Jesus não ordenou ninguém – é anacrónico ler a evolução muito posterior da vida e do ministério de Jesus. A questão de quem pode ordenar é, por conseguinte, mais aberta do que poderíamos imaginar! Esta visão evolutiva só é possível se acreditarmos no trabalho contínuo do Espírito, mesmo hoje”.

A verdade é que – lembra o teólogo – “a longa tradição da Igreja é que só os homens podem ser ordenados”. Mas a tradição tem forma (ordenação de homens) e conteúdo (significado). “Qual é o significado de limitar a ordenação aos homens?”, questiona, então o autor, para responder de seguida: “se confinar a ordenação a homens faz parte da ‘economia da salvação’ e se, como sabemos, tudo na economia da salvação promove os valores e a visão do Reino de Deus, então, como é que a exclusão das mulheres promove o Reino? Dificilmente uma resposta a esta pergunta deixará de ser objeto de uma crítica muito dura”.

O frade irlandês traz à liça, neste quadro, “a nova doutrina das dimensões petrina e mariana”, que tem servido ao Papa Francisco para justificar a tradição de ordenar apenas homens, formulada numa entrevista à revista America, em 22 de novembro de 2022, visando dar ao problema uma dimensão ou fundamentação teológica.

“Nessa doutrina, explica O’Mahony, a igreja ‘doadora’ é representada pelo princípio masculino e a igreja ‘recetora’ é representada pelo princípio feminino. Este é um terreno perigoso. Levado ao extremo, então todos os homens da Igreja deveriam ser ordenados e todos os leigos deveriam ser mulheres! A Bíblia ensina o contrário. Todos os seres humanos são criados à imagem e semelhança de Deus, sem distinção de género (Génesis 1,26-27)”. Por isso, uma mulher não poder representar Cristo seria “minar a nossa compreensão fundamental do Batismo”; “a condição para a ordenação não é o género, mas precisamente a fé e o Batismo”.

Pode a Igreja evoluir doutrinariamente?

O artigo termina com uma questão de fundo, vital para os membros que participarão no Sínodo e para todos os fieis: “pode a Igreja desenvolver a – e crescer na – sua doutrina?” Ou seja, a doutrina é imutável ou pode evoluir?

A resposta, para o teólogo, só pode ser afirmativa. “A Igreja Católica tem, para ele, uma doutrina de desenvolvimento da doutrina. Podemos ver isso nos sacramentos, na Eucaristia, no Matrimónio, em Maria, na doutrina social, no diálogo inter-religioso e, não menos importante, no ecumenismo (que começou fora da Igreja Católica). A Igreja está sempre a crescer e a responder às solicitações do Espírito. Não há provas de que essa evolução tenha de alguma forma parado, congelada num momento idealizado do passado. Não temos de pensar que estamos no fim do cristianismo – estamos mesmo no início, com apenas 2000 anos!”

E remata deste modo:

“Imaginemos por um momento que as mulheres pudessem ser ordenadas. Que doutrina fundamental da fé mudaria? A Trindade? A encarnação? A salvação? A graça? Sacramentos? Nenhuma grande doutrina seria ameaçada; em vez disso, teríamos um enriquecimento do ministério, um verdadeiro desenvolvimento da doutrina. O que é  que há a temer?”

Mas não basta ter em conta o processo da própria Igreja, Para o biblista, há também a questão da credibilidade: “Qualquer instituição que exclua sistematicamente as mulheres das suas estruturas tem um grande problema de credibilidade na sociedade atual. Porquê acrescentar mais um obstáculo à fé? Mais uma vez, a verdadeira questão não é tanto a disponibilização de padres, por muito importante que isso seja. A verdadeira questão é ouvir a voz das mulheres, mesmo através da Igreja, não por graça e favor (com o devido respeito pelo Papa Francisco), mas por direito”.

O Sínodo, que se vai prolongar pelo ano de 2024, representa uma oportunidade para ouvir uma e outra vez o que o Espírito está a dizer às igrejas. Esperemos que o Espírito seja ouvido!”, finaliza Kieran J. O’Mahony.

Fonte:  https://setemargens.com/se-a-igreja-ordenasse-mulheres-nada-de-fundamental-na-fe-mudaria/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

“A tecnologia tende a assumir o lugar dos pais e a ser um entrave à criação de vínculos, com implicações no desenvolvimento neurobiológico, psicológico e social de uma geração “

 Por Clara Soares*

 
 Foto: Nicolas Laborie

O tempo não volta para trás. Em todas as etapas do desenvolvimento da identidade, da gestação ao pós-morte, passando pela infância, adolescência, idade adulta, meia-idade e os chamados “anos dourados”, a pegada digital caminha connosco. Elaine Kasket investiga a interface entre a psicologia e a tecnologia há duas décadas. No livro Reboot, Reclaiming Your Life in a Tech-Obsessed World [Reinício: recuperando a sua vida num mundo obcecado por tecnologia, editado pela Elliott & Thompson Limited], que será lançado a 31 de agosto e que foi escrito a partir do trabalho de campo com entrevistas, casos clínicos e observações de cariz pessoal, propõe-nos reiniciar a forma de lidar com o big data. Como? Moldando os relacionamentos mediados pelos “amigos” digitais de modo consciente. O lema desta psicóloga inglesa dá que pensar: “Que eu tenha serenidade para aceitar o que não posso mudar na tecnologia, a coragem para mudar a forma como a uso e, sempre que possível, a sabedoria para saber a diferença.”

Como surgiu a ideia de escrever sobre o mundo digital ao longo do ciclo de vida?
Tenho 53 anos e uma filha com 13 – estou na crise da meia-idade e ela, na da adolescência. Ainda me lembro de quando tinha essa idade, testemunho os desafios dos meus pais (na casa dos 80) e também acompanho casais com teenagers e pessoas mais velhas. No livro anterior [All the Ghosts in the Machine], sobre o que acontece aos nossos dados digitais quando morremos, descobri que o eu digital surgia antes do nascimento, pela partilha online de dados do feto. Sendo a tecnologia indissociável do quotidiano, quis investigar se as oito fases do desenvolvimento psicossocial – do modelo de Erik Erikson, nos anos 50, que inclui oito etapas e as suas crises – se mantinham na era digital.

E mantêm-se?
Cada uma traz uma crise psicossocial, em que é preciso fazer escolhas. Atualizei o modelo, que ficou com nove etapas, tendo agregado duas, da infância, e adicionado outras duas: a gestação digital e a vida digital após a morte. No seu último trabalho, The Life Cycle Completed, Erikson acrescentou uma nova etapa, com a visão retrospetiva de todas as outras. A identidade é socialmente construída e evolui com os relacionamentos, mediados pela tecnologia, para o bem e para o mal. Apurei quais eram as tecnologias mais relevantes em cada etapa. Na primeira, a gestação digital, abordo a partilha de material nas redes sociais: vídeos, sonogramas e festas de revelação do género da criança antes de ela nascer, que se tornaram virais e trouxeram dissabores a quem as faz. Na fase da infância, tropecei num mundo que desconhecia, como os wearables para bebés: meias inteligentes capazes de quantificar e enviar parâmetros como níveis de oxigénio ou ritmo cardíaco, durante 24 horas, para o smartphone dos pais, ou dispositivos que detetam diferentes tipos de choro. Estes auxiliares da parentalidade têm um impacto psicológico considerável.

E tem-se noção desse impacto?
É muito baixa! A maioria das pessoas fica hipnotizada e normaliza a vigilância e a divulgação de dados, na crença de que o recurso à tecnologia se traduz em mais segurança.

Quais os riscos do sharenting e dos dispositivos de vigilância?
Quando os pais começam a divulgar informações sobre a identidade dos filhos e os sonhos e expectativas que projetam neles – até porque toda a gente o faz –, isso torna-se a regra; é difícil parar, mas a monitorização constante, que acalma os adultos, tem custos. Há um estudo clássico da psicologia, que envolve a interação entre mães e filhos pequenos, em que, a certa altura, se pede [às mães] que não tenham expressões faciais (still face): as crianças ficam agitadas e protestam, no esforço de captar atenção. Não é diferente quando se tem o bebé ao colo e se passa o tempo com os olhos no ecrã. A tecnologia tende a assumir o lugar dos pais e a ser um entrave à criação de vínculos, com implicações no desenvolvimento neurobiológico, psicológico e social de uma geração. Até eu, no início da maternidade, cairia nessa armadilha se tivesse a oferta que há hoje, com gadgets e apps desenhados para reduzir a ansiedade.

Perdemos muito tempo com histórias que contamos a nós mesmos sobre os males da tecnologia, mas temos mais poder do que pensamos.  Somos capazes de fazer escolhas refletidas e conscientes

Os pais confiam demasiado nos recursos de monitorização?
Claro. Mas tecnologias de vigilância, desenhadas para reduzir a ansiedade, tendem a agravá-la. Os pais ficam viciados no bebé cyborg do ecrã e o bebé real fica em segundo plano, perdido, sem a atenção devida. Na investigação que fiz, percebi que, quanto mais cedo se for exposto à cultura de vigilância, mais provável é considerar certos comportamentos normais na idade adulta, das práticas de cyberstalking à monitorização da atividade online ou do telemóvel de terceiros. Isto é a regra para as novas gerações, e percebe-se porquê. Cresceram com os pais em cima deles: “Onde é que andas? Estou a ver que estás no McDonald’s!” Ficam com a ideia de que é assim que as pessoas se tratam umas às outras e que não há muito a fazer acerca disso.

A partilha online de dados infantis é um dado adquirido, mas não devia ser?
Deixei de partilhar informação relativa à minha filha depois de lhe perguntar, aos 9 anos, o que achava disso. Ela manifestou desconforto, mas não me disse nada, por achar que não era tida nem achada e, apesar de não gostar, acreditava que eu não ia deixar de fazê-lo. Mesmo que se pergunte a uma criança se concorda, ela não tem idade nem poder para dar consentimento informado sobre os seus dados. Por isso, apaguei tudo o que tinha, incluindo imagens de aniversários, e parei as partilhas, de um modo geral.

Que implicações teve para si?
A editora e a equipa de marketing do meu livro temiam que os pais se sentissem julgados, mas é uma questão de ética. Ninguém sabe ao certo quais as consequências; porém, sabe-se que os dados pessoais das crianças são valiosos para as empresas que lidam com os comportamentos dos futuros consumidores, que as alimentam. Tirei um peso de cima e, sempre que tinha o impulso de partilhar, passei a questionar-me sobre os motivos: por estar sozinha, precisar de validação, pertença, reconhecimento? Concluí que só tinha que ver comigo, e não era aceitável preencher necessidades nas redes sociais à custa da minha filha.

As leis da proteção de dados e as medidas adicionais de privacidade não bastam?
Sabemos que os dados digitais de alguém falecido que permanecem online podem afetar a fortuna dos descendentes. E que a informação destes que circula na internet os torna mais vulneráveis a situações como falsificação de identidade e fraudes financeiras, se cair nas mãos de pessoas com más intenções, sobretudo agora, com as tecnologias de deepfake e de reconhecimento facial. No Reino Unido, houve problemas com hackers que entraram no sistema informático da escola e pediram resgates, ameaçando divulgar os dados online dos alunos. Essa informação estava ligada a outras plataformas que envolviam avaliação social de comportamentos, e nunca vamos saber quem pode vir a aceder a ela no futuro.

De todas as etapas do ciclo de vida, qual é a que coloca maiores desafios digitais? 
A idade adulta. A maior parte dos casais que acompanho tem sérias dificuldades em falar das expectativas sobre a relação e dos limites de privacidade na esfera sexual e afetiva, por insegurança e medo da rejeição. Dizer ao outro “vamos falar, sinto isto ou aquilo” traz ansiedade e desconforto, é duro e exige coragem. Se os telemóveis nos “salvam” do tédio e da tristeza e nos distraem de coisas de que não gostamos, é mais fácil não expor esses medos e aceder à informação do telefone ou da conta digital e ser espião, em vez de crescer e comunicar melhor.

Como dar a volta a esses dilemas?
É muito difícil. A tentação de aceder à localização, a emails e a tudo o que está disponível online é muita. Com frequência, não encontram pistas sobre o que temem ou ficam a saber algo que não procuravam, mas não podem esclarecer isso às claras, pois o outro ficaria a saber que violaram a privacidade. Um jornal inglês publicou recentemente uma notícia sobre um casal famoso ter estabelecido um acordo na terapia em que podiam exigir ver os telefones um do outro. Mas isso também não é solução: os parceiros ficam numa relação de pai-criança ou de carcereiro-prisioneiro. Este é mais um exemplo de como, muitas vezes, usamos a tecnologia contra nós, em vez de pôr mãos à obra e preservar uma ligação. Porém, temos escolha, podemos comunicar melhor e crescer – sublinho isso nas sessões.

Revela, no livro, que teve um burnout. A que se deveu?
Coincidiu com a pandemia, a aceleração digital, o trabalho remoto e o aumento da vigilância e da Inteligência Artificial (IA). De um momento para o outro, pessoal hospitalar, criativos, designers, escritores, professores e terapeutas que estavam seguros de que o seu trabalho nunca seria posto em causa pela automação ficaram sem chão, até no auge da carreira, na etapa generativa das suas vidas. Não sou imune e deixei de ter certezas. É um sentimento estranho. O meu marido tem 58 anos e trabalha na Ford desde os 20, mas pode ter de se reformar antes do tempo, porque a sua área vai ser extinta. Na meia-idade, a personalidade atinge um pico de estabilidade, e nem sempre se tem o grau de flexibilidade necessária para adaptações de monta. Além disso, há receios, legítimos, de que a IA leve à redução de custos para as empresas.

Na velhice, a IA parece promissora. Até que ponto?
Essa etapa do desenvolvimento está muito ligada à memória biográfica e à consolidação da identidade, e a tecnologia permite manter competências cognitivas e envelhecer melhor na comunidade local, sem sair do seu ambiente. Há coisas fascinantes a acontecer nesta altura: gerações mais jovens descobrem segredos familiares através dos testes de genealogia genética e viram do avesso todo o percurso e narrativa de vida das mais velhas. A genealogia floresce, e isso tem que ver com o nosso desejo de acreditar que somos especiais. Por outro lado, é perturbador o número de fraudes envolvendo idosos vulneráveis, testes de ADN e companhias de seguros, nos Estados Unidos da América.

Hologramas, uso da voz de quem morreu em novos produtos audiovisuais, contacto virtual durante o luto… Onde vamos parar?
Todos estamos vulneráveis a isso, pelo volume de despojos digitais. A identidade dos mortos permanece viva online e pode assombrar-nos. Durante a pandemia, muitas das aulas que dei foram gravadas, e tenho livros e vídeos no YouTube. Basta recorrer a um software de IA com base no meu conhecimento, crenças e opiniões, e, em teoria, o deep learning faz o resto: depois de morrer, posso continuar a dar aulas e a fazer psicoterapia, sabe Deus por quanto tempo e para quem! Estaremos a falar da Guerra das Estrelas ou de Marilyn Monroe como ideal de mulher daqui a 50 anos? Os legados digitais que se conservam e reciclam podem reter a evolução artística e cultural da sociedade.     

Como vai lidar com o seu lastro digital?
Vou acautelar a segurança dos meus dados pessoais, para evitar que sejam alvo de oportunismos e tornem a vida dos herdeiros um inferno, mas nada mais. O luto é um facto da vida, não uma doença a curar ou um problema que precisa de ser resolvido. Quero apenas deixar esta mensagem: perdemos muito tempo com histórias que contamos a nós mesmos sobre os males da tecnologia, mas temos mais poder do que pensamos. Somos capazes de fazer escolhas refletidas e conscientes, e está na altura de o assumir.

* Jornalista

Fonte:  https://visao.pt/ideias/2023-08-27-a-tecnologia-tende-a-assumir-o-lugar-dos-pais-e-a-ser-um-entrave-a-criacao-de-vinculos-com-implicacoes-no-desenvolvimento-neurobiologico-psicologico-e-social-de-uma-geracao/

Os católicos que não somos

 José Brissos-Lino*

 
Getty Images
 
A maioria dos portugueses declara-se católica nos Censos, mas será mesmo assim? De que catolicismo estamos a falar? Ou falamos de outra coisa?

Há poucas décadas Portugal mudou a sua natureza jurídico-religiosa de estado católico-romano para laico, quer por que os tempos mudaram, quer por que a democracia o exige, mas também devido à adesão à União Europeia (antiga CEE), que comporta dentro de si diferentes correntes religiosas cristãs ou mesmo outras religiões, abraâmicas ou não, e ainda devido às migrações e à globalização. Assim, ser católico já não define a condição de ser português.

O problema é que as mentalidades não mudam por decreto nem por textos constitucionais, e em regra demoram gerações a reformular-se. Ainda há uns anos se ouvia na Assembleia da República uma deputada de uma maioria parlamentar de direita afirmar que o estado português era católico. Claro que se retratou logo a seguir e classificou a afirmação como lapso, mas como já dizia Jesus: “do que há em abundância no coração, disso fala a boca” (Mateus 12:34).

O Censo de 2021 reza que 80% da população portuguesa se afirma católica. Mas são os próprios teólogos católicos que admitem que tal manifestação não passa de uma afirmação de natureza identitária ou cultural e não real, uma vez que a esmagadora maioria não é praticante. As missas apresentam cada vez menos assistência, pelo que se trata duma afirmação de fé por exclusão de partes, talvez por que os inquiridos ainda não estão preparados para se assumirem na mais recente categoria de “crentes sem religião”.

Se perguntarmos à maioria dos denominados católicos há quanto tempo não comungam teremos uma ideia mais aproximada da realidade do catolicismo português. Em 2001 só metade dos ditos praticantes eram comungantes.

Mas se os inquirirmos sobre quando foi a última vez que estiveram no confessionário o número ainda reduz mais. E se formos saber se concordam com a moral sexual daquela que dizem ser a sua igreja, ou sobre todos os dogmas, ficaremos nos mínimos. Se ainda assim lhes pedirmos que enumerem quantos são e quais os sacramentos da fé católica, no final ficaremos com a real dimensão do ser católico em Portugal.

De facto, o catolicismo português é sobretudo herdado e face aos fenómenos da desidentificação e da desinstitucionalização religiosas presentes na Europa, como bem revela a francesa Danièle Hervieu-Léger, especialista em sociologia das religiões, resta-nos apenas uma afirmação vazia que nem eles sabem por que razão ainda a invocam.

A autora publicou, em parceria com Jean-Louis Schlegel o seu último livro intitulado Vers l’implosion? Entretiens sur le présent et avenir du catholicisme (“Rumo à implosão? Conversas sobre o presente e o futuro do catolicismo”, em tradução livre, Seuil, 2022), onde aborda em especial a crise do catolicismo francês abalado pelos escândalos.

Ser católico não praticante – tal como sucede em qualquer outra confissão religiosa – não tem comparação, por exemplo, com a condição de ser adepto dum clube de futebol e não ser associado. É muito pior. Ao menos estes vibram com o seu clube de coração, apoiam os seus atletas, acompanham a evolução da sua equipa nas competições, assistem aos jogos – no estádio ou em casa – e torcem pelo seu emblema.

Para muitos denominados católicos não-praticantes o templo é apenas o local para realizar a sua cerimónia de casamento, o batizado dos filhos e o funeral dos pais, mas as motivações são pouco católicas, por assim dizer, como satisfazer o desejo impositivo dos pais ou registar as fotografias do acontecimento.

Já o caso dos funerais é mais específico, talvez por que no fundo são crentes e querem dar um enterro cristão aos entes queridos, embora não se identifiquem com a ortopraxia da confissão religiosa de que se afirmam fiéis nos Censos.

A questão da identidade religiosa é muito séria por que mexe com a história pessoal, a família, a religião e a transcendência.

Afirmar-se católico, num país demograficamente envelhecido e de maioria tradicional dessa confissão religiosa, é uma forma de não parecer diferente aos olhos de terceiros. Ainda que já não pareça tão mal alguém se afirmar como protestante, agnóstico ou mesmo ateu, como sucedia no passado, ainda assim é mais confortável para a pessoa refugiar-se no mainstream quando inquirida.

De todo o modo e de acordo com os especialistas, a tendência geral do país parece ser que no futuro próximo a percentagem de católicos desça e suba a dos “crentes sem religião”, dos evangélicos e de outras minorias.

*Doutorado em Psicologia, é especialista em Ética e em Ciência das Religiões; professor catedrático (ISP Atlântida, Luanda), diretor do Mestrado em Ciência das Religiões (Universidade Lusófona); coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e do NEPRE-Núcleo de Estudos em Psicologia da Religião e Espiritualidade; director das revistas científicas Ad Aeternum (Portugal) e Olhar Científico (Angola); investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Universidade de Lisboa) e do LUSOGLOBE (Lusófona Centre on Global Challenges). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou. Poeta e ficcionista. 

Fonte:  https://visao.pt/opiniao/vestigios-de-azul/2023-08-30-os-catolicos-que-nao-somos/

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Negri, aos 90: “o comunismo não morreu”

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Para ele, uma esquerda autossuficiente não enxergou as mutações do capital, nem buscou respostas. Daí a “derrota colossal” pós-1970. Mas o sistema segue em crise, o poder “é sempre dividido” e o amor “mantém a espécie humana em pé”

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Da infância nos anos de guerra ao aprendizado de filosofia e à militância comunista, de 68 ao massacre da Piazza Fontana, do Poder Operário à Autonomia e de 77 à prisão e ao exílio. E novamente a prisão, antes da liberdade definitiva. Toni Negri – que contou sua trajetória, em parceria com Girolamo De Michele, em três volumes autobiográficos: Storia di un comunista [História de um comunista], Galera e esilio [Prisão e exílio] e Da Genova a Domani [De Gênova ao amanhã] (Ponte alle Grazie) – completou 90 anos no último dia 1º de agosto. 

Nesta entrevista, concedida ao jornal Il Manifesto, o filósofo e militante retoma momentos cruciais de sua vida, como os anos 1960, o 68 italiano, os anos de prisão e exílio. Também coloca em perspectiva o Partido Comunista Italiano, que em determinado momento caiu na armadilha de um justicialismo e delegou a política aos magistrados, processo que está na origem, segundo Negri, do desaparecimento da esquerda no país, nos dias atuais 

A entrevista aborda também os escritos que deram ao filósofo uma renovada projeção internacional, em coautoria com Michael Hardt, professor de literatura na Duke University, nos Estados Unidos, como: Império, Multidão, Comum e O Bem Estar Comum [Record]. E ainda revisita sua aproximação a pensadores como Spinoza, sobre quem escreveu um importante livro – Spinoza Subversivo – quando estava na prisão. 

Por fim, Toni Negri responde a um questionamento a respeito do modo como se refere a São Francisco de Assis, ao qual ele diz se sentir próximo desde muito cedo. Para ele, Francisco é, sobretudo, um modo de trazer o amor, “como uma arma para a vida”, para o campo político. Diz Negri:  

“Francisco é o amor contra a propriedade: exatamente o que poderíamos ter feito na década de 1970, revertendo esse desenvolvimento e criando uma nova maneira de produzir. Francisco nunca foi suficientemente abordado, nem a importância que o franciscanismo teve na história italiana foi devidamente levada em conta. Menciono isso porque quero que palavras como amor e alegria entrem na linguagem política.” 

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Roberto Ciccarelli – Você completou 90 anos. Como vive o seu tempo hoje?

Toni Negri – Lembro-me de Gilles Deleuze, que sofria de uma doença semelhante à minha. A assistência e a tecnologia de que dispomos hoje não existiam naquela época. A última vez que o vi ele se movia com um carrinho com cilindros de oxigênio. Foi muito difícil. Hoje também é para mim. Acho que nessa idade cada dia que passa é um dia a menos. Você já não tem forças para torná-lo um dia mágico. É como quando você come uma boa fruta e ela deixa na boca um gosto maravilhoso. Esse fruto é a vida, provavelmente. É uma de suas grandes virtudes.

Noventa anos são um século breve.

Pode haver vários séculos breves. Há o clássico período definido por Hobsbawm, de 1917 a 1989. Houve o século americano, que foi bem mais curto. Durou desde os acordos monetários e de governança global em Bretton Woods até os atentados às Torres Gêmeas em setembro de 2001. No que me concerne, meu longo século começou com a vitória bolchevique, pouco antes de eu nascer, e continuou com as lutas dos trabalhadores e todos os conflitos políticos e sociais dos quais participei.

Este breve século terminou com uma derrota colossal.

É verdade. Mas eles pensaram que era o fim da história e que havia começado uma era de globalização pacificada. Nada mais falso, como verificamos todos os dias há mais de 30 anos. Estamos em um momento de transição, mas na realidade sempre estivemos. Embora possa passar despercebido, encontramo-nos em uma nova era marcada pelo ressurgimento mundial de lutas, contra as quais existe uma resposta dura. As lutas dos trabalhadores começaram a se cruzar cada vez mais com lutas feministas, antirracistas, em defesa dos imigrantes e pela liberdade de movimento, ou com as lutas ambientais.

Filósofo, você se tornou professor em Pádua ainda muito jovem. Participou da Quaderni Rossi, a revista do operariado italiano. Fez pesquisa e trabalho de base nas fábricas, a começar pela Petroquímica em Marghera. Você fez parte, primeiro, do Potere Operaio, depois da Autonomia Operaia. Você viveu o longo 68 italiano, começando com o impetuoso 1969 dos trabalhadores em Corso Traiano, em Turim. Qual foi o momento político culminante dessa história?

A década de 1970, quando o capitalismo antecipou fortemente uma estratégia para o seu futuro. Com a globalização, precarizou-se o trabalho industrial e todo o processo de acumulação de valor. Nessa transição, foram lançados novos polos produtivos: trabalho intelectual, trabalho afetivo, trabalho social que constrói a cooperação. Na base da nova acumulação de valor também estão, é claro, o ar, a água, a vida e todos os bens comuns que o capital continuou a explorar para neutralizar a queda da taxa de lucro que vinha sofrendo desde os anos 1960.

Por que, desde meados dos anos 1970, a estratégia capitalista triunfou?

Porque faltou uma resposta da esquerda. De fato, por muito tempo houve um total desconhecimento desses processos. Desde o final da década de 1970, foi eliminada qualquer força intelectual ou política, pontual ou de movimento, que tentasse mostrar a importância dessa transformação e que visasse a reorganização do movimento operário em torno de novas formas de socialização e organização política e cultural. Foi uma tragédia. Aqui aparece a continuidade do curto século no tempo que vivemos agora. Havia uma vontade da esquerda de bloquear o quadro político para preservar o que já tinha.

E o que essa esquerda tinha?

Uma imagem poderosa, mas já então insuficiente. Mitificou-se a figura do trabalhador industrial sem perceber que ele mesmo desejava algo muito diferente. Ele não queria se conformar com a fábrica de Agnelli, mas destruir sua organização; ele queria construir carros para oferecer aos outros sem escravizar ninguém. Em Marghera, eles não queriam morrer de câncer ou destruir o planeta. Isso é basicamente o que Marx escreveu em Crítica ao Programa de Gotha: contra a emancipação pelo trabalho mercantil patrocinado pela social-democracia e pela libertação da força de trabalho do trabalho mercantilizado. Estou convencido de que a direção tomada pela Internacional Comunista – de forma óbvia e trágica com o stalinismo, e depois de forma cada vez mais contraditória e impetuosa – destruiu o desejo que mobilizava massas gigantescas. Para toda a história do movimento comunista, aquela foi a batalha.

O que foi enfrentado naquele campo de batalha?

Por um lado, havia a ideia de libertação. Na Itália, foi iluminada pela resistência contra o nazifascismo. A ideia de libertação foi projetada na própria Constituição, como a interpretamos então quando éramos jovens. E aqui eu não subestimaria a evolução social da Igreja Católica que culminou no Concílio Vaticano II. Por outro lado, havia o realismo, herdado da social-democracia pelo Partido Comunista Italiano, aquele de Amendola e dos seguidores de Togliatti, de diferentes origens. Tudo começou a desmoronar nos anos 1970, precisamente quando, pelo contrário, surgiu a possibilidade de inventar uma nova forma de vida, uma nova forma de ser comunistas.

Você continua a se definir como comunista. O que significa isso hoje?

O que significou para mim quando jovem: conhecer um futuro em que teríamos conquistado o poder de ser livres, de trabalhar menos, de nos amar. Estávamos convencidos de que conceitos burgueses como liberdade, igualdade e fraternidade poderiam se materializar em palavras de ordem como cooperação, solidariedade, democracia radical e amor. Pensamos e fizemos, assim pensou a maioria que votou na esquerda e a fez existir. Mas o mundo era e é insuportável, tem uma relação contraditória com as virtudes essenciais do viver junto. No entanto, essas virtudes não se perdem, são adquiridas por meio da prática coletiva e vêm acompanhadas da transformação da ideia de produtividade, o que não significa produzir mais bens em menos tempo, nem travar guerras cada vez mais devastadoras. Pelo contrário, trata-se de alimentar a todos, modernizar, fazer as pessoas felizes. O comunismo é uma paixão coletiva alegre, ética e política que luta contra a trindade da propriedade, das fronteiras e do capital.

As prisões de 7 de abril de 1979, primeiro momento da repressão ao movimento da autonomia operária, marcaram um antes e um depois. Por diversas razões, a meu ver, foi também pela história do Il Manifesto, graças a uma vibrante campanha garantista que durou anos, um caso jornalístico único realizado com militantes do movimento, um grupo de valentes intelectuais e o Partido Radical. Oito anos depois, em 9 de junho de 1987, quando desabou o castelo das acusações cambiantes e infundadas, Rossana Rossanda [fundadora do jornal Il Manifesto] escreveu que foi uma “reparação tardia e parcial de tantas coisas irreparáveis”. O que tudo isso significa para você hoje?

Foi sobretudo o sinal de uma amizade que nunca foi traída. Rossana foi para nós uma pessoa de uma generosidade incrível. Porém, em determinado momento, ela também parou: ela não era capaz de responsabilizar o PCI pelo que o PCI havia se tornado.

Em que ele se tornou?

Em um opressor. Ele massacrou aqueles que denunciaram a situação em que ele se meteu. Naqueles anos, muitos de nós dissemos isso ao partido. Havia outra maneira, que era ouvir a classe trabalhadora, o movimento estudantil, as mulheres e todas as novas formas pelas quais as paixões sociais, políticas e democráticas estavam se organizando. Propusemos uma alternativa de maneira honesta, limpa e em massa. Fazíamos parte de um enorme movimento que investiu nas grandes fábricas, nas escolas e nas gerações. O fechamento do PCI levou ao surgimento do extremismo terrorista. Pagamos por tudo isso e muito caro. Só eu passei um total de 14 anos no exílio e 11 anos e meio na prisão. Il Manifesto sempre defendeu nossa inocência. Era completamente idiota que eu ou outros membros da Autonomia fôssemos considerados sequestradores de Aldo Moro ou assassinos de companheiros. Entretanto, na campanha pela inocência, que se manteve corajosa e importante, um aspecto substancial foi deixado de lado.

Qual?

Fomos politicamente responsáveis ​​por um movimento muito mais amplo contra o “compromisso histórico” entre o PCI e os democratas-cristãos. Houve uma resposta da polícia de direita contra nós, e isso é compreensível. Pelo contrário, o que não se quer perceber é a abrangência que o PCI deu a esta resposta. No fundo, eles temiam que o horizonte da classe política mudasse. Se esse nó histórico não for compreendido, como se poderá lamentar a inexistência de uma esquerda na Itália atual?

A operação de 7 de abril e o chamado “teorema de Calogero” [em referência ao procurador que investigava o caso e que pediu as prisões dos principais líderes da Autonomia Operária] foram considerados um passo para a conversão de uma parte não desprezível da esquerda ao “judiciarismo” e a delegação da política ao poder judiciário. Como foi possível cair em tal armadilha?

Quando o PCI substituiu a centralidade da luta econômica e política pela luta moral, e o fez por meio dos juízes que gravitavam em torno do partido, encerrou sua trajetória. Eles realmente acreditavam que estavam usando o judiciarismo para construir o socialismo? O judiciarismo é uma das coisas mais apreciadas pela burguesia. É uma ilusão devastadora e trágica que nos impede de ver o uso classista da lei, da prisão ou da polícia contra os subalternos. Naqueles anos, os jovens juízes também mudaram. Antes eram muito diferentes. Eram chamados de “preceptores de assalto”. Lembro-me dos primeiros números da revista Democrazia e Diritto [Democracia e Direito], no qual também colaborei. Eles me encheram de alegria porque estávamos falando sobre justiça de massa. Depois a ideia de justiça decaiu de forma bem diferente, voltou aos conceitos de legalidade e legitimidade. E no Judiciário deixou de haver posição política, restando apenas coligações entre correntes. Assim, temos hoje uma Constituição reduzida a um pacote de regras que nem mais correspondem à realidade do país.

Na prisão, você continuou a batalha política. Em 1983, escreveu um documento na prisão, publicado por Il Manifesto, intitulado Do You Remember Revolution? [Você lembra da revolução?]. Falava da originalidade do 68 italiano, dos movimentos dos anos 70 que não podiam ser reduzidos aos “anos de chumbo”. Como você viveu aqueles anos?

Aquele documento dizia coisas importantes com certa timidez. Acho que estava dizendo mais ou menos as coisas que acabei de recordar. Foi um período difícil. Estávamos dentro, tínhamos que sair de alguma maneira. Confesso que em meio àquele imenso sofrimento era melhor para mim estudar Spinoza do que pensar na escuridão absurda em que nos encerraram. Escrevi um longo livro sobre Spinoza e isso foi meio que um ato heróico. Eu não poderia ter mais de cinco livros em minha cela. E estava constantemente mudando de prisão especial: Rebibbia, Palmi, Trani, Fossombrone, Rovigo. Cada vez em uma nova cela, com pessoas diferentes. Esperar alguns dias e recomeçar. O único livro que carreguei comigo foi a Ética de Spinoza. Tive a sorte de terminar meu texto antes do motim na prisão de Trani em 1981, quando as forças especiais destruíram tudo. Fico feliz que esse livro tenha produzido um choque na história da filosofia.

Em 1983 você foi eleito deputado e saiu da prisão por alguns meses. O que você acha do momento em que votaram no parlamento a favor de seu retorno à prisão e você decidiu se exilar na França?

Ainda sofro muito com isso. Se tenho que fazer um julgamento histórico e imparcial, acho que fiz bem em sair. Na França fui útil para estabelecer relações entre gerações e pude estudar. Tive a oportunidade de trabalhar com Félix Guattari e pude entrar nos debates do momento. Me ajudou muito a entender a vida dos “sans papiers” [ou “sem documentos”, referência aos imigrantes ilegais na França]. Eu também estava nessa situação: eu dava aulas, mesmo sem ter uma carteira de identidade. Meus colegas da Universidade de Paris 8 me ajudaram, mas em outros aspectos acho que me enganei. Fiquei profundamente abalado por ter deixado meus companheiros na prisão, aqueles com quem vivi os melhores anos da minha vida e as revoltas em quatro anos de prisão preventiva. Ainda dói tê-los deixado. Aquela prisão destruiu a vida de colegas que eu amava muito e, em muitos casos, também de suas famílias. Tenho 90 anos e fui salvo. Mas isso não me traz mais serenidade diante daquele drama.

Rossanda também o criticou…

Sim, ela me pediu para me comportar como Sócrates. Respondi que corria o risco de acabar como o filósofo. Por causa dos relacionamentos na prisão, eu poderia ter morrido. Pannella me tirou materialmente da prisão e depois jogou toda a culpa em mim porque eu não queria voltar. Muitas pessoas me enganaram. Rossana me alertou naquela época, e talvez ela estivesse certa.

Houve outra ocasião em que ela fez isso?

Sim, quando ela me disse para não voltar de Paris para a Itália em 1997, após 14 anos de exílio. Eu a vi pela última vez antes de partir, em um café perto do Museu Cluny, o museu nacional da Idade Média. Ela me disse que queria me amarrar com uma corrente para me impedir de pegar aquele avião.

Por que você decidiu voltar para a Itália?

Eu estava convencido de que iria lutar pela anistia para todos os companheiros da década de 1970. Na época, isso parecia possível. Fiquei seis anos na prisão até 2003. Talvez Rossana tivesse razão.

Que lembranças você tem dela hoje?

Lembro-me da última vez que a vi em Paris. Ela era uma amiga muito querida que estava preocupada com minhas viagens à China, com medo de que algo de mal se passasse comigo. Ela era uma pessoa maravilhosa, naquela época e sempre.

Anna Negri, sua filha, escreveu Con un piede impigliato nella storia [Com um pé enredado na história] (DeriveApprodi), que conta essa história do ponto de vista de seus afetos e de outra geração.

Tenho três filhos maravilhosos, Anna, Francesco e Nina, que sofreram de forma indescritível o que aconteceu. Assisti à série de Bellocchio sobre Aldo Moro e ainda fico atônito por ter sido acusado dessa incrível tragédia. Penso em meus dois primeiros filhos, que estavam na escola. Alguns os viam como filhos de um monstro. Esses meninos, de uma forma ou de outra, suportaram eventos enormes. Eles saíram da Itália e voltaram, eles mesmos passaram por aquele longo inverno. O mínimo que eles podem ter é uma certa raiva dos pais que os colocaram nessa situação. E eu tenho uma certa responsabilidade nessa história. Nós nos tornamos amigos novamente. Para mim, isso é um presente de imensa beleza.

No final da década de 1990, coincidindo com os novos movimentos globais e, em seguida, com os movimentos contra a guerra, você conquistou uma posição de grande reconhecimento junto com Michael Hardt, começando com a publicação de Império. Como você definiria a relação entre filosofia e militância hoje, em um momento de retorno à especialização e às ideias reacionárias e elitistas?

É difícil para mim responder a essa pergunta. Quando as pessoas me dizem que fiz uma “ópera”, eu respondo: lírica? Dá para acreditar nisso? Tenho de rir. Porque sou mais um militante do que um filósofo. Isso pode fazer algumas pessoas rirem, mas eu me vejo assim, como Papageno… [o personagem pássaro da ópera A flauta mágica, de Mozart]

Mas a verdade é que você escreveu muitos livros.

Tive a sorte de estar a meio caminho entre a filosofia e a militância. Nos melhores períodos da minha vida, passei constantemente de um para o outro. Isso me permitiu cultivar uma relação crítica com a teoria capitalista do poder. Pivô em Marx, fui de Hobbes a Habermas, passando por Kant, Rousseau e Hegel. Pessoas sérias o suficiente para serem combatidas. Em contrapartida, a linha Maquiavel-Spinoza-Marx era uma alternativa real. Para reiterar: a história da filosofia, para mim, não é um tipo de texto sagrado que misturou todo o conhecimento ocidental, de Platão a Heidegger, com a civilização burguesa e transmitiu conceitos funcionais ao poder. A filosofia faz parte de nossa cultura, mas deve ser usada para o que é necessário, ou seja, para transformar o mundo e torná-lo mais justo. Deleuze falou de Spinoza e retomou a iconografia que o retratava como Masaniello. Gostaria que isso fosse verdade para mim. Mesmo agora que estou com 90 anos, ainda tenho essa relação com a filosofia. Viver a militância é menos fácil, mas consigo escrever e ouvir, em uma situação de exílio.

Exilado, ainda hoje?

Um pouco, sim. Mas é um exílio diferente. Depende do fato de que os dois mundos em que vivo, Itália e França, têm dinâmicas de movimento muito diferentes. Na França, o operaísmo não teve um grande número de seguidores, mesmo que esteja sendo redescoberto hoje. O movimento de esquerda na França sempre foi liderado pelo trotskismo ou pelo anarquismo. Na década de 1990, com a revista Futur antérieur, com meu amigo e camarada Jean-Marie Vincent, encontramos uma mediação entre o gauchisme e o operaísmo: funcionou por cerca de dez anos. Mas fizemos isso com muita cautela. Deixamos o julgamento da política francesa para nossos camaradas franceses. O único editorial importante escrito por italianos na revista foi aquele sobre a grande greve dos trabalhadores ferroviários de 1995, que era muito parecida com as lutas italianas.

Por que o operaísmo tem uma ressonância global atualmente?

Porque responde à necessidade de resistência e de um renascimento das lutas, como em outras culturas críticas com as quais dialoga: feminismo, ecologia política, crítica pós-colonial, por exemplo. E também porque não é a costela de nada ou de ninguém. Nunca foi, nem foi um capítulo na história do PCI, como alguns se iludem. Em vez disso, é uma ideia precisa da luta de classes e uma crítica da soberania que coagula o poder em torno do polo patronal, proprietário e capitalista. Mas o poder é sempre dividido e está sempre aberto, mesmo quando parece não haver alternativa. Toda a teoria do poder como uma extensão da dominação e da autoridade, feita pela Escola de Frankfurt e suas evoluções recentes, é falsa, mesmo que infelizmente continue hegemônica. O operaísmo joga por terra essa leitura brutal. É um estilo de trabalho e pensamento. Assume a história de baixo para cima, feita pelas grandes massas que se movem, e busca a singularidade em uma dialética aberta e produtiva.

Suas constantes referências a Francisco de Assis sempre me impressionaram. De onde veio esse interesse pelo santo e por que você o tomou como exemplo de sua alegria em ser comunista?

Desde jovem, riam de mim porque eu usava a palavra amor. Eles me tomavam por um poeta ou um iludido. Pelo contrário, sempre achei que o amor era uma paixão fundamental que mantém o gênero humano de pé. Pode se tornar uma arma para seguir vivendo. Venho de uma família que foi miserável durante a guerra e me ensinou uma afeição com a qual vivo até hoje. No fundo, Francisco é um burguês que vive em uma época em que percebe a possibilidade de transformar a própria burguesia e criar um mundo em que as pessoas se amem e amem os viventes. O apelo a ele, para mim, é como o apelo a Ciompi feito por Maquiavel. Francisco é o amor contra a propriedade: exatamente o que poderíamos ter feito na década de 1970, revertendo esse desenvolvimento e criando uma nova maneira de produzir. Francisco nunca foi suficientemente abordado, nem a importância que o franciscanismo teve na história italiana foi devidamente levada em conta. Menciono isso porque quero que palavras como amor e alegria entrem na linguagem política.

 Por Toni Negri em entrevista a Roberto Ciccarelli para Il Manifesto | Tradução: Maurício Ayer

Fonte:  https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/negri-aos-90-comunismo-nao-morreu/

As últimas palavras do Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude

| 27 Ago 2023

Capa da versão espanhola do livro ‘Hermanito’

As últimas palavras do Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, já no voo de regresso a Roma, foram estas: Recomendo que não vos esqueçais: Hermanito, Fratellino, o livro do migrante.[1]

Procurei-o. Não existe ainda a versão traduzida para o português. Li-o então em espanhol.

O livro nasceu assim: «Estou na Europa, mas eu não queria vir para a Europa

É a história de Ibrahima, um jovem guineense, da sua viagem de esperança pelo deserto e pelo mar, pelas torturas, pelo tráfico, pela exploração, pela sede e pela fome. Guiné. Mali. O Sahara. Argélia. Líbia. Argélia de novo. Marrocos. O mar. Espanha. É poeticamente pesado, duro e triste. Não sei se se poderá dizer alto que um livro assim é bonito. É dolorosamente bonito.

Um livro escrito a quatro mãos. Ibrahima redigiu o livro com a sua voz e com a poesia que trouxe consigo desde Thiankoi e que nenhum traficante lhe conseguiu roubar. Amets Arzallus, jornalista basco, deu-lhe forma com palavras escritas.

Os dois conheceram-se quando Amets fazia uma ronda como voluntário da Rede de Acolhimento de Irún. Impressiona-me sempre descobrir histórias assim: vividas a quatro mãos, improváveis, que tornam palpável essa reciprocidade e horizontalidade que o verdadeiro acolhimento exige.

Comoveu-me e inquieta-me que o Papa Francisco tenha feito questão de deixar ‘Hermanito’ como a sua última mensagem da JMJ.

‘Hermanito’ é um livrinho que se lê em poucas horas. Mas, tem o poder de desconstruir as histórias únicas e simplistas que contamos sobre o drama das migrações e que institucionalizamos nessa manta de retalhos de pactos, regulamentos e diretivas. A vida de Ibrahima – como quase todas as vidas de quem chega às nossas comunidades – extravasa as fronteiras jurídicas e políticas que temos construído: migrante vs refugiado ou pobreza vs guerra ou migrações forçadas vs migrações voluntárias.

Ibrahima não partiu por causa de uma guerra. Não partiu por ser perseguido. Nem por ter nascido numa família profundamente pobre. Ibrahima tinha planeado o seu futuro:  ser condutor de camiões na Guiné e ajudar a mãe a cuidar dos irmãos pequenos. Mas, Ibrahima deixou a Guiné. Viajou até ao norte de África para procurar desesperadamente o irmão mais novo. Era responsável por ele e perdeu-o. Onde cabem a culpa e a responsabilidade nos critérios rígidos que traçamos para conceder asilo, títulos de residência e passagens seguras?

 Precisamos de ler devagar histórias assim: que dão voz, coração, alma, carne e osso às massas de pessoas aparentemente anónimas que lutam, sofrem e morrem a caminho.

Hermanito

Na última página da edição italiana do livro, um mapa marca os muitos lugares e caminhos que Ibrahima percorreu na sua jornada.

 

A quem, como eu, participou na Jornada ou acompanhou à distância, pode ter-nos parecido que o Papa Francisco optou por deixar o drama das migrações de fora da agenda da JMJ 2023. Os grandes discursos dos eventos centrais, onde falou diretamente ao coração de cada jovem, de facto e bem, a meu ver, não foram políticos. Mas, com um olhar atento, rapidamente descortinamos que assim que aterrou em Lisboa e antes ainda de aterrar em Roma, Francisco tocou nesta ferida perante a qual continuamos incapazes e indiferentes.

Acabado de chegar, às autoridades políticas, ao corpo diplomático e aos representantes da sociedade civil, Francisco foi assertivo:

Para onde navegais, Europa e Ocidente, com os muros de arame farpado, as mortandades no mar? [2]

Evitamos reforçar números, porque desumanizam, ocultam a singularidade de cada pessoa migrante e distanciam-nos de rostos concretos. Mas, estou certa de que o Santo Padre aceitará que traduza com evidências este seu grito em forma de pergunta para despertar consciências. Este ano de 2023, morreram já 2264 pessoas a tentar atravessar o Mar Mediterrâneo.[3] 28013 mortes desde 2014. 28013 túmulos sem nome, nem lugar.[4]

Permitam-me que diminua esta distância e que partilhe convosco um nome. Ou então, voltem a este último parágrafo depois de lerem Hermanito.

Não vos esqueçais de Hermanito. Do livro e, principalmente, de Alhassane, o nome do hermanito de Ibrahima, que descansa eternamente num dos muitos túmulos guardados pelo Mar.

 

[1] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2023/august/documents/20230806-portogallo-voloritorno.html 
[2] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2023/august/documents/20230802-portogallo-autorita.html 
[3] https://missingmigrants.iom.int/region/mediterranean?region_incident=All&route=All&year%5B%5D=11681&month=All&incident_date%5Bmin%5D=&incident_date%5Bmax%5D=
[4] https://missingmigrants.iom.int/region/mediterranean

 

Isabel Martins da Silva, cofundadora da ONGD MEERU, jurista inquieta com a proteção da dignidade humana das pessoas em movimento no mundo, comprometida a transformar fronteiras em caminhos.

Fonte:  https://setemargens.com/as-ultimas-palavras-do-papa-francisco-na-jornada-mundial-da-juventude/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

Os pés da Barbie

 Por Heloísa Buarque de Almeida,*

Aquecimento Barbie: 5 coisas para fazer até o lançamento do filme - Refresh

Você sabia que, se uma jovem começa a usar saltos altos o tempo todo, seus pés não conseguirão mais ficar descalços, parecendo com a cena do filme Barbie? Não vi o novo filme ainda, mas vou lembrar aqui o que a Barbie representou para algumas gerações e que ainda faz parte da construção imagética da boneca, assim como a miríade de subprodutos a ela ligados, com a predominância da cor rosa.

Na minha infância, nos anos 1970, Barbie era uma boneca caríssima e importada que eu – de classe média e branca, mesmo vivendo uma situação confortável – não podia comprar. Depois de alguns anos, ela passou a ser feita no Brasil e tornou-se um pouco mais acessível, mas ainda assim era bem mais cara que outras bonecas. A Susi era a “nossa” boneca – brasileira, da Estrela, nem tão magra, nem tão esbelta, nem tinha os seios tão demarcados. Nessa década, Susi era sempre branca, mas não exclusivamente loira. E não usava saltos altos.

Pessoalmente, eu não gostava de brincar de bonecas, e nunca liguei muito para nenhuma das duas, porque tinha em mente outras brincadeiras. Me recordo bem que, ao longo dos anos, a Barbie foi se tornando o desejo das meninas mais novas, além de produzir a representação do que foi se tornando um padrão de beleza: loira, magra, esbelta, jovem. Mais do que isso, os brinquedos eram uma forma de entrada no mundo do consumo. Estar na moda, comprar roupas, trocar de roupas, estar sempre maquiada e de saltos altos, cabelos louros e lisos ao vento, e para dar um ar mais “moderno”, com ares de uma mulher que tem uma carreira e um trabalho do qual se orgulhar, Barbie passou a ter profissões. Se a empresa que a produziu passou a fazer muitas Barbies com várias profissões, foi porque as mulheres de camadas médias e altas foram ganhando outros espaços e a empresa teve que atualizar um pouco suas representações de feminilidade para não ficar “fora de moda”.

A escolha dos brinquedos não é um ato inofensivo. Dar bonecas apenas para as meninas não é algo que se possa reproduzir sem nenhuma reflexão, especialmente quando algum menino também quer brincar de boneca. Os brinquedos são modelos de ação e de comportamento e fazem parte das construções de gênero da sociedade em que vivemos.

Há, decerto, brincadeiras sem gêneros demarcados: correr, esconde-esconde, balanços e gangorras, jogos de vários tipos, a correria no parquinho. Mas conforme a sociedade de consumo se desenvolveu no país, nos anos 1980 e 1990, os brinquedos industrializados ficaram cada vez mais marcados por gênero: basta entrar numa loja de brinquedos e ver a divisão entre um lado predominantemente cor de rosa e outro lado muito mais colorido, demarcando os brinquedos a partir do gênero.

Se neste filme novo (pois há outros), a Barbie ganhou emprego e passou a questionar a desigualdade entre homens e mulheres, pelo que li e pelo que contam do filme, há outras diferenças e desigualdades que a Barbie nunca vai enfrentar: de classe, raça, sexualidade, geração. Usar saltos altos foi por muito tempo um sinal de distinção de classe, que também acabava por limitar a mobilidade das mulheres, e que impõe um tipo de habilidade e uso corporal que é insustentável para alguém que tenha que caminhar muito para ir e vir do trabalho, que trabalhe em uma fábrica ou na roça. A feminilidade da Barbie vem junto com um padrão de classe e raça. E se mais recentemente apareceram Barbies negras, ou com outros sinais de diversidade, como bonecas com deficiência física, deve ter sido por pressão social, pela percepção das empresas – no Brasil, muito tardia e recente – de que pessoas negras também são consumidoras.

O filme novo pode ser divertido e questionar até algumas desigualdades de gênero, mas continua sendo um produto de sociedade de consumo, para fazer vender mais e mais bonecas e um sem-número de outros produtos em torno do filme – modas, a insuportável predominância do cor-de-rosa nos brinquedos e nos quartos das meninas. Relembro que o rosa não era assim predominante nos anos 1970, nas infâncias daquela época. Vale lembrar também que, bem antes desse filme que agora faz sucesso, a Disney fez uma coleção de filmes de produção barata e desenhos de qualidade ruim dos anos 1990 e 2000 protagonizados pela Barbie, sempre a loira, fazendo fadinhas, ou dançando o quebra nozes. Quero destacar que a indústria cultural poderosa vem a reboque dos movimentos sociais, sempre um tanto atrasada, pois não quer chocar e nem ser rejeitada pelos mais conservadores. Assim, não inova quase nada, porque nem tem a pretensão de inovar. O que ela faz, e muito bem, é vender produtos e outros bens de consumo ligados aos filmes.

Talvez eu veja o filme, e me divirta com ele – dizem que, mais que tudo, é uma comédia pastelão. No entanto, não posso esquecer que Barbie faz parte de um amplo sistema de produção e reprodução da binariedade de gênero, dos padrões de beleza marcados por distinções de raça, classe, sexualidade, geração. A verdadeira boneca deverá estar sempre de saltos altos. E de cima dos saltos altos, ela não tem compromisso nenhum com justiça social.

Imagem da Internet

professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP 

Fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/heloisa-buarque-de-almeida/os-pes-da-barbie/

O canivete suíço de Haddad

 Cláudio de Oliveira

Ele vai usar a tesourinha também?


A charge mostra o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conversando com Lula. Haddad fala para o presidente: - Tenho várias medidas para aumentar a arrecadação e tapar o rombo das contas em 2024! Haddad segura um canivete suíço com várias ferramentas. Lula diz: - OK, só não use a tesourinha de cortar gastos! Atrás de Lula está Arthur Lira, presidente da Câmara, segurando uma grande mamadeira com as palavras “Emendas parlamentares”. Ele grita: - Ueba!
Quais gastos? - Cláudio/Folhapress
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/blogs/claudio-hebdo/2023/08/o-canivete-suico-de-haddad.shtml