Leonídio Paulo Ferreira*
Myeong-dong Cathedral - Seul
07 Agosto 2023 — 00:01
Visitar a Catedral de Myeong-dong é tão obrigatório para quem vai a Seul como os antigos palácios reais ou os templos budistas. Aliás, as cruzes no topo das igrejas juntam-se aos outdoors gigantes da Samsung e da LG para construírem o cenário da capital da Coreia do Sul, sobretudo à noite, quando estão iluminadas.
Igrejas em capitais asiáticas não é algo de incomum, basta pensar em Manila ou Díli ou até Pequim, mas a história do cristianismo coreano é única, pois não chegou via colonização europeia, como nas Filipinas ou em Timor-Leste, mas sim por curiosidade intelectual, com os primeiros contactos com essa nova fé a ocorrerem através dos emissários que iam à China e lá contactavam com missionário jesuítas, incluindo portugueses. Escusado dizer que houve perseguições aos primeiros crentes, pois a Dinastia Joseon não só queria manter o país fechado a todas as influências exteriores, como desconfiava muito de uma "filosofia ocidental" que pregava a igualdade, algo em choque com a hierarquização tradicional confucionista. André Kim Taegon, que estudou em Macau, tornou-se o primeiro padre coreano e foi martirizado perto de Seul em 1846.
A escolha agora de Seul para a próxima Jornada Mundial da Juventude, em 2027, tem assim toda a lógica, até porque ao longo dos tempos a perseguição das autoridades foi desaparecendo e o cristianismo se impôs como algo natural na Coreia. Hoje os cristãos são um terço dos 50 milhões de sul-coreanos (povo que em boa parte se declara não-religioso), e graças à tradição democrática a liberdade de culto é vastíssima, pelo que proliferam várias correntes cristãs. Os católicos serão cerca de 10%, mas com uma visibilidade muito grande, dada a antiguidade da sua relação com o país. Na Coreia do Norte comunista não existem dados sobre a prática religiosa dos 26 milhões de habitantes, e provavelmente muitos dos crentes escondem a fé, mas antes da divisão da Península Coreana no final da Segunda Guerra Mundial Pyongyang tinha tantas igrejas que havia quem a chamasse Jerusalém do Oriente.
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João Paulo II tornou-se em 1984 o primeiro Papa a visitar a Coreia do Sul, numa época em que o prestígio da Igreja Católica na sociedade tinha crescido muito pela defesa dos Direitos Humanos perante um regime militar que acabaria por cair por pressão da população, cada vez mais educada e próspera. Houve uma segunda visita de João Paulo II, em 1989, e o Papa Francisco também já esteve na Coreia do Sul, em 2014. Num dos momentos de aparente normalização das relações entre Seul e Pyongyang surgiu mesmo a ideia de uma visita papal à Coreia do Norte, sugestão do então presidente sul-coreano Moon Jae-in, ele próprio um católico. Várias figuras de relevo na história recente da Coreia do Sul são católicas e até há o caso muito interessante de Park Geun-hye, que, antes de ser eleita presidente em 2013, esteve em Portugal e fez questão de visitar o Santuário de Fátima.
O grande legado já do pontificado de Francisco, nascido na Argentina e primeiro Papa não-europeu em mais de mil anos, é ter feito refletir no Colégio de Cardinais que escolherá o seu sucessor a diversidade geográfica do catolicismo. E se os católicos asiáticos ainda são pouco mais de 10% do 1400 milhões de crentes, o potencial de crescimento no continente é enorme, por via natural ou por conversões e muitos dos missionários hoje são de países como as Filipinas, o que realça o valor da Ásia para o Vaticano.
Ora, como a última Jornada Mundial da Juventude num país asiático aconteceu em 1995 em Manila, capital das Filipinas, esta aposta em Seul é tão natural que praticamente não surpreendeu quando foi anunciada em Lisboa, mesmo que toda a gente tivesse ouvido a celebração de felicidade dos 1100 membros da delegação sul-coreana. Conhecendo o sentido de organização dos coreanos, é fácil imaginar que tudo vai começar já a ser preparado ao pormenor para a visita papal, mesmo a quatro anos de distância. E a catedral de Myeong-dong voltará a ganhar o destaque que merece pela singularidade da história do cristianismo no país.
Diretor adjunto do Diário de Notícias
Fonte https://www.dn.pt/edicao-do-dia/07-ago-2023/um-cristianismo-que-nasceu-da-curiosidade--16818208.html
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