Marcelo Coelho*
Foto: Reprodução/Pixabay
Deputados americanos querem saber o que o governo federal pode ter ocultado do público, mas toda a transparência do mundo será incapaz de encerrar a questão
Para a alegria de muitos, o Legislativo americano resolveu nestes dias abrir uma comissão para investigar o aparecimento de ovnis na atmosfera do planeta.
Vamos colocar a coisa em termos mais sóbrios. A House of Representatives (o equivalente à nossa Câmara dos Deputados) está interessada em saber o que o governo federal pode ter ocultado do público, ao longo de tantas décadas de especulação sobre os discos voadores.
Além dos depoimentos à comissão parlamentar, espera-se a divulgação de um relatório do Ministério da Defesa e de outro, feito pela Nasa, para os próximos meses.
Não tenho nada contra a máxima transparência do governo nesses assuntos. Mas é óbvio que toda a transparência do mundo será incapaz de encerrar a questão. Quem acredita em teorias conspiratórias sempre vai achar que ainda existem “evidências” que o mais completo relatório oficial preferiu omitir.
E, levando em conta o estado de saúde mental da população americana, o que vem por aí pode ter todo tipo de consequências – até sobre a eleição do próximo presidente.
Na época de Obama, disseminou-se de modo exaustivo a teoria de que ele não tinha nascido nos Estados Unidos – e, portanto, não podia ser presidente.
Quando Hillary Clinton era candidata, surgiu a crença de que ela liderava, a partir de uma modesta pizzaria, uma rede de pedofilia internacional. Antes de ser acusado de pertencer a um esquadrão de alienígenas, Joe Biden se empenha, portanto, em “abrir os arquivos” relacionados ao tema.
É assim que, com toda a seriedade do mundo, um ex-oficial da Força Aérea americana, David Gruesch, compareceu a uma audiência para responder às dúvidas dos deputados federais.
Ele diz ter ouvido, nos corredores de Washington, a informação de que o governo mantém há décadas os restos biológicos de “não humanos”, recolhidos depois de uma nave ter colidido com nosso planeta.
Começo a me irritar. Veja-se a burrice da terminologia, supostamente técnica e neutra. O ex-oficial não quis dizer “alienígena”. Escolhe “non-human”. Quem ouve fica intrigado. “Não humano?? Então... então só pode ser extraterr...”
A imaginação trabalha, seguindo a isca. Ora essa, “não humano” não significa nada. Quando os soviéticos lançaram a cachorrinha Laika no espaço, tratava-se de uma tripulação “não humana”.
Uma aranha, um chimpanzé, um cachorro, são “não humanos”. Mas não é nisso que se quer acreditar. Quer-se acreditar no nosso velho amigo, o alienígena de cabeça gigante e olhos de Lamborghini.
Uma velha teoria conspiratória com discos voadores, padres católicos e cavaleiros templários é bem melhor que uma com pizzarias, Hillary Clinton e redes de pedofilia. Ou com vacinas, ecologistas e o PCC
Antigas crenças se confirmam. Eufórico, um deputado americano declara: “não quero simplificar demais a coisa, mas como é que vão pilotar um disco voador? Tem de ter alguém dentro. Me parece óbvio”.
Esse parlamentar vota créditos para a construção de drones e mísseis teleguiados. Deve ter ouvido falar de robôs e de inteligência artificial.
Mas deve ter dificuldade – como tanta gente — em colocar os fatos contra as próprias crenças. “Existem discos voadores, logo há pilotos, logo o governo esconde os não humanos acidentados na colisão”.
Você sabe, e eu não preciso dizer, que esse deputado, Tim Burchett, é republicano.
E ainda falta investigar melhor o caso! O ex-oficial que depôs em 26 de julho no Congresso já afirmou, em outra ocasião, que os destroços de um ovni foram transportados para os Estados Unidos na década de 1940, depois de terem caído na Itália, nas barbas de Mussolini.
O ditador fascista só concordou com a transferência do objeto para as terras de Mickey Mouse depois da intervenção direta do papa Pio 12.
Toda boa conspiração tem de ter o dedo do papa, como sabemos. Mas com isso eu volto à minha calma habitual.
Uma velha teoria conspiratória com discos voadores, padres católicos e cavaleiros templários é bem melhor que uma com pizzarias, Hillary Clinton e redes de pedofilia. Ou com vacinas, ecologistas e o PCC.
Estaríamos voltando a um conspiracionismo mais de velha guarda, do tipo que prevalecia em 1950? Para mim, a explicação desse “revival” é das mais simples.
Talvez os Estados Unidos já se preocupem mais com um novo inimigo externo, a China, do que com adversários locais. Acredita-se que a China lança balões de espionagem sobre o espaço americano.
Pois bem, é claro como dois mais dois que a China tem interesse em disfarçar suas investidas teleguiadas no território inimigo.
Como fazer os americanos pensarem que a China não está espionando? Resposta óbvia: fazer com que pensem que não são os chineses, mas sim os extraterrestres, a real ameaça.
Concluo, de modo inapelável: quem falar em discos voadores, hoje, é agente chinês. E peço a prisão imediata do deputado republicano Tim Burchett. Está traindo, evidentemente, os valores de seu próprio país.
Marcelo Coelho é jornalista, com mestrado em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo). Escreveu três livros de ficção (“Noturno”, “Jantando com Melvin” e “Patópolis”), dois de literatura infantil (“A professora de desenho e outras histórias” e “Minhas férias”) e um juvenil (“Cine Bijou”). É também autor de “Crítica cultural: teoria e prática” e “Folha explica Montaigne”, além de três coletâneas com artigos originalmente publicados no jornal Folha de S.Paulo (“Gosto se discute”, “Trivial variado” e “Tempo medido”).
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