quarta-feira, 9 de agosto de 2023

O Estado laico e as religiões

Luís Castro Mendes*

Não haver Deus
é um deus também
Fernando Pessoa

A religião é o suspiro dos oprimidos,
o coração de um mundo sem coração,
a alma das nossas condições sociais
sem alma
Karl Marx

Para um agnóstico como eu, que não rejeita a ideia de Deus, mas que nada tem que ver com as dogmáticas das diferentes religiões, nem esquece a Igreja da sua infância, que lhe ensinava a venerar Salazar e a desconsiderar teorias condenadas pela Igreja, como a da evolução das espécies, começa a parecer inadequado, injusto e desproporcional todo este clamor de um laicismo militante e agressivo, herdeiro direto do Mata-Frades, que imaginava ter desaparecido com o 25 de Abril. O curioso é que ninguém se lembrou de contestar a ordem jurídica concordatária vigente no nosso país e ninguém protestou, nem protesta, pelas despesas obscenas com que a outra maior religião do país (o futebol) nos tem brindado.

Desde que Mário Soares proclamou a paz entre o Estado laico (ou secular) republicano e a Igreja Católica (e, por força da liberdade religiosa, esta atitude estende-se a todas as religiões), a tensão com os dogmas católicos, surgida na aprovação de leis que claramente definem a prevalência dos Direitos Humanos de liberdade individual sobre o seu próprio corpo e a sua vida acima de regras morais de natureza religiosa (começando com o divórcio e culminando na despenalização do aborto e da eutanásia), esta tensão tem vindo a encontrar uma atitude não-passiva, nem conivente, mas tranquila e comedida, da nossa Igreja face a estes diferendos - compare-se com todas as manifestações públicas hostis que desencadeou em França a legislação do casamento entre pessoas do mesmo sexo...

O modelo francês de laicidade, hostil a todas as religiões, tem sido posto em causa, quer pelos multiculturalistas como Charles Taylor (mas a defesa extrema do respeito pelo pluralismo das culturas conduziria, no limite, à aceitação da política dos talibãs em relação às mulheres ou do casamento precoce das meninas ciganas, por respeito aos valores culturais dos outros), quer pela tese pós-secularista defendida por Jürgen Habermas, que me parece abrir um caminho mais interessante para pensar as relações entre o Estado moderno, necessariamente secular, e as diferentes religiões organizadas. Acresce que, tal como o senhor Jourdain fazia prosa sem o saber, a nossa prática social e jurídica me parece estar a ir nesse mesmo sentido.

Habermas não abdica da conquista histórica do Iluminismo que culminou no princípio da separação entre as igrejas e o Estado. É inadmissível, em termos democráticos e liberais, a assunção pelo Estado de qualquer dogmática religiosa. O problema que ele levanta é o da convivência democrática no espaço público entre laicos e religiosos. E aí duas ordens de questões podem surgir: uma relativa aos limites da aceitação pelos nossos Estados seculares de religiões que pretendem impor na moral pública valores excluídos pelas regras e princípios fundamentais das nossas sociedades; outra relativa à contribuição que pode trazer à nossa axiologia laica valores cristãos, como a compaixão e a solidariedade, valores em contradição com os princípios, que tendem crescentemente a ocupar o nosso espaço público, de indiferença ao humano e ao social, exemplificados na famosa fórmula de Milton Friedman "a única obrigação social das empresas é dar lucro" ou na descoberta da Sra Thatcher de que "there is not such a thing as a society". Num "mundo sem coração", o apelo a todos os valores que contrariem esta ideologia dominante não é de forma alguma descabido.

O pós-secularismo traria assim, não qualquer rejeição do Estado secular, mas sim um avanço na convivência entre laicos e religiosos dentro das democracias pluralistas em que queremos viver. Remando contra o fechamento identitário defensivo dos diferentes discursos laicos e religiosos, vai-se procurar um diálogo entre os seus respetivos conceitos e princípios no âmbito do espaço público. Não para misturar o que não é misturável, mas sim para abrir as convicções e os discursos em diferendo ao desejável e necessário estabelecimento de uma base de valores comuns.

*Diplomata e escritor

Imagem da Internet

Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/o-estado-laico-e-as-religioes--16823944.html


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