segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Em defesa do vazio.

Por Vito Mancuso


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"Neste silencioso e vazio feriado de agosto de uma cidade deserta, refletindo sobre você, caro vazio, entendi que a verdade sobre mim depende de você: de como eu lhe mantenho limpo, de como cuido de você e o protejo de todos os charlatães que continuamente procuram lhe preencher com mil sugestões sedutoras, e para eles lucrativas e convenientes".

A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 15-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

No dia de feriado em que todos corremos para fazer algo divertido que nos faça sentir vivos e completos, vale uma reflexão sobre a importância de manter um espaço interior que não seja preenchido por nada: é aí que nascem os desejos e a criatividade. Alguns dos maiores filósofos argumentaram que o início do pensamento humano se origina de aparecimento súbito e admirado na mente desta pergunta: “Por que existe o ser, e não o nada?". Assim afirmaram Leibniz, Schelling, Heidegger. Neste feriado de agosto, sozinho no meu apartamento na cidade, com as ruas desertas que propiciam um silêncio irreal, sinto surgir na mente, com igual rapidez e admiração, esta outra pergunta: por que existe esse vazio dentro de mim?

Assim começo a investigar a natureza desse meu vazio interior, abordando-o como se fosse algo vivo dentro de mim.

Caro vazio interior, eu lhe chamo de "vazio" e não de "nada", porque você não se contrapõe ao ser. O nada é não-ser, e se ele estiver presente é impossível que exista o ser, como decretou Parmênides nos albores do pensamento ocidental: “O ser é e não pode não ser; o não-ser não é, e não pode ser”.

Você, vazio, no entanto, não coincide com o nada e significativamente os físicos para descrever a realidade primordiais falam de "vazio quântico", e dizem que, longe de ser equivalente ao nada que é desprovido de energia, tal vazio quântico possui sua própria energia peculiar e o descrevem como "estado de energia mínima". Dele, dizem eles, eventualmente surgem flutuações das quais emergem partículas, e que foi justamente de uma flutuação desse tipo que o universo se originou. De forma que tudo, caro vazio, nasce de você.

O mesmo acontece comigo: quando estou cheio, nada de novo brota em mim, apenas repetição do idêntico, um “eterno retorno do mesmo”; é quando estou vazio, quando você assume o controle, que algo novo, criativo, inesperado, gratuito pode nascer em mim. Você, vazio, é a condição da minha criatividade e da minha liberdade.

Mas atenção: na maioria das vezes você age como uma espécie de motor que gera um impulso para o interior que tende a levar tudo de volta para você, você é um vórtice que produz uma sucção contínua, uma cavidade, às vezes um abismo, de onde emana uma tensão ininterrupta. Então, o que sou eu que lhe carrego em meu âmago?

Tenho peculiaridades físicas como estatura ereta, neocórtex, código genético; tenho outras de tipo psíquico como emoções, sentimentos, paixões; e algumas do tipo intelectual, como inteligência analítica e razão sintética. Todas essas características, no entanto, não são tais que me encerrem em uma definição exaustiva porque há algo ainda mais essencial em mim: existe você.

Presente em minha profundidade, por sua causa eu resulto estruturalmente não-acabado, indefinido, imprevisível e, portanto, criativo. Você faz com que minha peculiaridade consista na possibilidade singular de ser e, ao mesmo tempo, de não ser o meu corpo, os meus sentimentos, o meu intelecto. Você me oferece a possibilidade de me identificar com minhas propriedades fundamentais ou me distanciar delas, para que eu possa resultar unificado ou dividido, sentindo-me em casa dentro de mim ou vice-versa no exílio.

De você, vazio, procede minha tensão psíquica chamada desejo, gerada por você por sua necessidade estrutural de ser preenchido. Spinoza identificava a essência específica dos seres humanos no desejo (“Cupiditas est ipsa hominis essentia”), mas é claro que só se pode sentir desejo porque primeiro se sente a necessidade de algo, e se sente a necessidade porque há uma falta. Então na origem está a privação, a falta; está você, caro vazio.

Como eu disse, você age em mim como um motor que tende a levar tudo de volta a si, e o que vale para mim o vejo à obra também nos meus semelhantes, todos mais ou menos habitados por essa tensão que não os deixa ficar tranquilos consigo mesmos. Pascal observava: “Descobri que toda a infelicidade dos homens deriva de uma única causa: de não conseguir ficar quieto, no seu quarto”. Continuava o matemático e filósofo francês: “Eles não percebem a natureza insaciável de sua ganância. Acreditam sinceramente que estão buscando o descanso, mas buscam apenas a agitação. Existe neles um instinto secreto que os leva a buscar fora de si mesmos a distração e a ocupação”.

Tudo isso vem de você, caro vazio. Você é a armadilha estrutural em que nascemos e com a qual temos que conviver até a morte, depois quem sabe. Por isso quero dar a vocês uma das mais belas definições de religião, obra do matemático e filósofo inglês Alfred North Whitehead: "A religião é o que o indivíduo faz de sua solidão." Solidão é outro nome para você, caro vazio, e nesse sentido ser religiosos, longe de professar doutrinas estabelecidas antigamente por outros e de participar de ritos celebrados por outros, significa vivenciar você como sentimento de estar na presença de algo ou de alguém mais importante do que eu. E significa entender o que Santo Agostinho afirma ao seu Deus no início das Confissões: "Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti".

Neste silencioso e vazio feriado de agosto de uma cidade deserta, refletindo sobre você, caro vazio, entendi que a verdade sobre mim depende de você: de como eu lhe mantenho limpo, de como cuido de você e o protejo de todos os charlatães que continuamente procuram lhe preencher com mil sugestões sedutoras, e para eles lucrativas e convenientes. Devo lhe proteger das ervas daninhas que sempre tendem a atacar você como se fosse um jardim, até porque você é realmente o meu jardim, o solo de onde brotam minhas flores e frutos, ou seja, meu pensamento e minha vontade. Se eu souber lhe cultivar, resistindo à tendência de preenchê-lo a todo custo para não sentir sua sucção, terei alcançado a independência espiritual. E como ensina Montaigne: “A melhor coisa do mundo é saber como pertencer a si mesmo”.

O jogo da vida é jogado dentro de mim, lutando com você, caro vazio. Por isso novamente Montaigne ensina: "é preciso reservar um canto todo nosso, todo livre, e lá estabelecer nossa verdadeira liberdade e nosso principal retiro e solidão". Se eu o mantiver limpo e arrumado, você deixará de agir como um redemoinho de onde vem uma constante sucção e se tornará o meu refúgio mais seguro. É o ensinamento de todas as grandes tradições espirituais, hinduísmo e budismo, confucionismo e taoísmo, judaísmo, cristianismo e islamismo, e obviamente da grande filosofia clássica assim sintetizada por Marco Aurélio, dirigindo-se a si mesmo: “Lembre-se de que seu princípio orientador se torna invencível quando, fechado em si mesmo, contenta-se consigo mesmo e não faz nada que não queira. A mente livre de paixões é uma fortaleza: pois o ser humano não tem nada mais seguro para o qual possa se refugiar e para o qual o futuro seja inexpugnável”.

Adquirir a prática de conviver com você significa aprender a ficar parado no meu abismo, a olhar a cratera do meu vulcão interior, a ficar na escuta, a silenciar a mente, a ouvir o som do meu silêncio. Esse é o trabalho certo a se fazer. A partir daquele feriado de agosto, com as ruas desertas quase sorrindo em seu silêncio surreal.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/631535-em-defesa-do-vazio-artigo-de-vito-mancuso

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