quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Os olhares de Milan Kundera

 José Brissos-Lino

 Milan Kundera em Paris a 17 setembro de 1982 Francois LOCHON/Gamma-Rapho via Getty Images

No romance que o tornou famoso - A Insustentável Leveza do Ser, publicado em 1984 e depois adaptado para o cinema - Milan Kundera (1929-2023) fala de quatro categorias de olhar

Soube da morte do escritor checo, aos 94 anos, quando já estava a preparar este texto.

Na sequência da condenação de Kundera por ter criticado a invasão soviética da Checoslováquia em 1968, emigrou para França em 1975, desencantado com a Checoslováquia. Em 1981 adquiriu a nacionalidade francesa e passou a identificar a sua produção literária com o novo país passando a escrever em língua francesa.

Tornou-se então um dos mais importantes e premiados escritores do séc. XX, em especial por utilizar as suas personagens para fazer o contraste entre a vida quotidiana e o mundo das ideias. Kundera foi traduzido em cerca de 40 línguas, tornando-se assim um dos autores mais traduzidos em todo o mundo.

Juntamente com Václav Havel foi um dos artistas e intelectuais checos que se envolveram na Primavera de Praga, em 1968 antes da invasão soviética. O Partido Comunista da Checoslováquia, então no poder, retirou-lhe a nacionalidade em 1979, quando o escritor já vivia em França, e só em 2019 viria a reavê-la.

Kundera diz que “todos temos necessidade de ser olhados”, e fala de quatro categorias de olhar. O primeiro é o olhar do público em geral. Como é que as pessoas nos vêm? Quem não nos conhece tende a julgar pela aparência, por uma primeira impressão, por um simples momento em que nos viu ou ouviu mesmo sem ter interagido connosco.

O olhar dos outros, dos anónimos, fala mais deles, os que nos analisam, do que de nós, os sujeitos analisados. Esse olhar repousa sobre uma história de vida, um percurso único e um conjunto de instrumentos e condicionantes psicológicos e culturais do observador. Essa é uma razão muito forte para não deixarmos que o nosso locus de controlo seja externo, o que pode ser fatal à nossa autoestima.

A segunda forma de olhar que Kundera avança é o olhar familiar. O autor diz que alguns “não podem viver sem o olhar de uma multidão de olhos familiares”. Aqui já falamos dum universo social muito mais restrito mas ainda assim condicionado por uma estória de família, por eventuais incidentes de percurso, por uma hierarquia de valores, por uma estrutura talhada pela cultura e tradição de família, por um sistema de competição de natureza emocional ou económica, por sentimentos reactivos e movimentos que afastam ou aproximam. O olhar que provém da família pode ser um estímulo ou uma maldição, pois toca muito mais fundo do que o olhar dos estranhos, que não são do mesmo sangue.

O terceiro olhar é aquele dos que nos amam. É um olhar mais protegido, digamos assim, que não nos alarma nem faz desconfiar. O olhar de quem nos quer bem contribui para baixarmos os mecanismos de defesa e permite que olhemos para dentro de nós mesmos com maior liberdade e autonomia. Essa capacidade e circunstância torna-se assim caminho de cura emocional porque permite lidar mais livremente com o nosso interior e enfrentar os fantasmas pessoais.

O autor diz que os tais “precisam de estar sempre sob o olhar do ser amado”, o que constitui um risco quando esses olhos se fecham.

Finalmente, o humanista Kundera fala num outro olhar, o olhar imaginário “que são aqueles que vivem sob os olhares imaginários de seres ausentes”. Afinal, são os sonhadores, uma condição muito mais rara e que tem o condão de fazer o mundo avançar.

Mas talvez o mais decisivo dos olhares, afinal, seja outro, isto é, o nosso próprio olhar. A forma de avaliarmos honestamente o que somos e como estamos, sem estarmos parasitados por outros olhares circunstanciais do mundo à nossa volta. No fundo este será o olhar mais importante pois é através dele que afinamos o nosso ser, sem pressões nem constrangimentos.

E se formos pessoas de fé, então ainda podemos ir mais longe e ter a coragem de formular a pergunta que realmente interessa neste caso, acima de qualquer outra: e como é que Deus me vê?


*Doutorado em Psicologia, é especialista em Ética e em Ciência das Religiões; professor catedrático (ISP Atlântida, Luanda), diretor do Mestrado em Ciência das Religiões (Universidade Lusófona); coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e do NEPRE-Núcleo de Estudos em Psicologia da Religião e Espiritualidade; director das revistas científicas Ad Aeternum (Portugal) e Olhar Científico (Angola); investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Universidade de Lisboa) e do LUSOGLOBE (Lusófona Centre on Global Challenges). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou. Poeta e ficcionista.

Fonte: https://visao.pt/opiniao/vestigios-de-azul/2023-07-19-os-olhares-de-milan-kundera/

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