Alicia Kowaltowski*
Desvios servem como maus precedentes e abrem as porteiras para outros membros da comunidade acadêmica realizar atos questionáveis
É comum e esperado para uma professora universitária e cientista como eu encontrar com alunos em lojas, restaurantes ou outros espaços de vivência social no dia a dia. Quase invariavelmente, vejo em suas expressões significativa surpresa por me ver ali. Para nossos estudantes, somos figuras que não transcendem o ambiente da sala de aula; portanto nunca imaginariam nos encontrar no supermercado comprando itens cotidianos como arroz e papel higiênico. Não são só os estudantes que têm essa impressão; professores universitários e cientistas muitas vezes são retratados no imaginário comum como seres afastados da vida cotidiana, enclausurados em seus laboratórios e em esferas mentais próprias, com pouca conexão com o resto do mundo. Cientistas raramente são vistos como seres humanos, mas sim sobre-humanos, talvez um tanto excêntricos, mas tocantes à perfeição em suas atuações profissionais.
A verdade é que somos humanos, e como humanos existimos em toda a gama de personalidades e desempenhos que se espera da vasta diversidade humana. E como qualquer atividade feita por humanos, haverá, ocasionalmente e por parte de uma pequena fração destes, desvios éticos. Por isso, não é surpresa que se tenha comprovado que tais desvios existem entre cientistas, incluindo problemas graves, como apresentação de resultados de experimentos laboratoriais completamente inventados. Também não é surpreendente que, à medida que avança a tecnologia capaz de determinar que existam alterações em dados ou imagens de trabalhos científicos, mais desses casos venham a público. Não é um problema limitado ao Brasil, nem a grupos de pesquisa com pouca influência, qualidade ou apoio financeiro. Ocorre mundialmente, em todos os níveis (há evidências de desvios éticos até mesmo em trabalhos laureados com Nobel).
Graves desvios éticos que chegam a ser denunciados são frequentemente tratados de maneira a pouco impactar a vida dos seus praticantes
É importante notar que não há nenhum motivo para acreditar que esses desvios éticos são mais comuns na área acadêmica que na experiência humana como um todo. Pelo contrário, conjecturo que, por ser uma área que não é atraente por causa de altos salários ou prestígio, mas principalmente pelo prazer do ato de descobrir, a pesquisa científica possivelmente atraia menos pessoas com tendência a cometer menos desvios éticos graves. Mas isso não faz o problema ético na academia ser inexistente, nem desimportante. Pelo contrário, a atividade de pesquisa básica deveria agir como um exemplo de como promover resoluções rigorosas para seus próprios desvios éticos. Ciência é, afinal de contas, um mecanismo para resolver problemas, que também é realizada predominantemente com uso de verbas públicas e ocorre em grande parte em universidades, centros de formação de futuros jovens profissionais. Ocorrendo em tal ambiente, exemplos de atitudes antiéticas graves por parte de cientistas e professores, como forjar dados ou praticar assédio, servem como maus precedentes e abrem as porteiras para outros membros da comunidade acadêmica realizar atos graves, como administradores que desviam verbas ou estudantes que forjam conhecimentos em avaliações. Por conseguinte, esses indubitáveis e graves desvios éticos, embora felizmente raros, favorecem indivíduos a cometer desvios menores e muito mais comuns, como professores que não preparam aulas adequadamente, cientistas que deixam de citar trabalhos que contradizem seus resultados, administradores que advogam em causa própria em vez de focar nas atividades-fim da universidade e estudantes que estudam apenas o necessário para serem aprovados, não utilizando todo o seu potencial de aquisição de conhecimento durante a experiência universitária.
Dada sua importância, pensar-se-ia que as universidades focariam muita atenção e cuidado em coibir de forma exemplar seus raros mas importantes problemas éticos, evitando assim todas as indesejáveis consequências decorrentes. Mas mundialmente se nota o contrário, ou seja, uma enorme dificuldade de as instituições de ensino superior e pesquisa lidar com denúncias e evidências desses desvios de comportamento profissional. Os motivos para isso são complexos, mas me parecem passar por vários temores. Há medo de judicialização com prejuízo de tempo e dinheiro universitário. Existe o medo de que agir no combate ao problema possa destacá-lo e torná-lo público para além dos muros da universidade. Há o medo de se aprofundar no entendimento do problema e descobrir o quão nefasto é. Se teme, justificadamente, que medidas resolutivas tomadas para problemas resultem em maior burocratização, amarras e proibições para os inocentes. Finalmente existe o medo, circunstanciado historicamente, de que denunciar graves problemas resulte em ser atacado por ser o denunciante. O resultado é que graves desvios éticos que chegam a ser denunciados são frequentemente tratados de maneira a pouco impactar a vida dos seus praticantes, com longos tempos de tramitação e consequências muito pequenas e tardias nas vidas dos seus protagonistas. Exemplos incluem docentes que praticam assédio em sala de aula serem afastados apenas de dar aulas e continuarem recebendo salários de forma igual, com menos trabalho a realizar, ou estudantes que “colam” em provas terem apenas a nota da prova em questão anulada. Quando o problema é combatido dessa maneira, cometer desvios éticos passa a valer a pena.
Como comunidade universitária, temos a responsabilidade de lidar com a ética de forma ética. Precisamos perder os temores e pensar em como proteger denunciantes para que não sejam punidos indiretamente por colocar desvios éticos em foco. Precisamos criar mecanismos para coibir desvios éticos graves praticados por qualquer membro da comunidade universitária, sem encargo para os seus demais membros. Precisamos que esses mecanismos sejam realizados por análise circunstanciada, célere e resolutiva. A universidade, ao qual cabe dar exemplos de melhores práticas para o restante da sociedade, tem que resolver como responder aos seus próprios problemas éticos, ou perderá respeito ao cobrá-las no restante das atividades da nossa comunidade.
*Alicia Kowaltowski é médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/%C3%89tica-uma-%C3%A1rea-em-que-as-universidades-deveriam-ser-exemplo - Imagem da Internet
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